Nas décadas de 30 e 40, John Wayne fazia tantos filmes que os produtores andavam sem imaginação para criar títulos. Foram 66 filmes entre Men Without Women, o primeiro de 1930, e Alleghny Uprising, o último de 1939, e 32 entre Dark Command, o primeiro de 1940, e Sands of Iwo Jima, o último de 1949.
Era tanto título a ser inventado que se recorria aos nomes dos Estados americanos, que, como se sabe, são numerosos, e também das cidades. E então houve California Straight Ahead, Santa Fe Stampede, Three Texas Sisters, Wyoming Outlaw, Lady From Louisianna, In Old California, Pittsburgh, Dakota…
Entre Pittsburgh, de 1942, e Dakota, de 1945, houve In Old Oklahoma, de 1943. Passado algum tempo, resolveram renomear este In Old Oklahoma, que passou a se chamar War of the Wildcats, guerra dos gatos selvagens. Entre os gatos selvagens em guerra na trama, há uma gata – e então os exibidores brasileiros, gente de imaginação fantástica, capaz de criar títulos como Depois Daquele Beijo para Blow-up e Noivo Nervoso, Noiva Neurótica para Annie Hall, inventaram para In Old Oklahoma, também conhecido como War of the Wildcats, o título de Quando a Mulher se Atreve.
Tive a sorte de pegar Quando a Mulher se Atreve ainda nos créditos iniciais, durante uma zapeada – estava passando no Telecine Cult.
Não é, de forma alguma, um grande filme, ou um filme importante. Talvez seja um dos menos conhecidos entre os 98 feitos pelo Duke entre 1930 e 1949. Mas é fascinante, interessantíssimo, uma delícia de se ver.
Tem dramaticidade, fatos, eventos, subtramas para uns quatro filmes
Se é difícil de titular, imagine como é duro classificar. Quando a Mulher se Atreve é em parte um western, em parte uma comédia, em parte um romance, em parte um drama político-econômico-social, em parte uma comédia dramática sobre a luta das mulheres pela igualdade de direitos.
Há filmes com apenas fiapinhos de história, uma tênue conjunção de fatos. Este aqui tem histórias demais, tramas, subtramas, fatos novos, surpresas, reviravoltas. Tem dramaticidade, fatos, eventos, para uns quatro ou cinco filmes. Ainda não havia LSD naquela época, mas ou os roteiristas Ethel Hill e Eleanore Griffin eram super imaginativos demais da conta, ou o alucinógeno que tomavam era dos bons. Bem, o deles ou o de Thomson Burtis, creditado como autor da história original.
A história se passa no Oklahoma do primeiro título original do filme, no iniciozinho do século XX, ali por 1905. Um sujeito chamado Jim Gardner (Albert Dekker) achou petróleo no interiorzão do velho Oklahoma – e virou um magnata, um tycoon, um Rockefeller, um Paul Getty. É dono da estrada de ferro que cruza aquela parte do interiorzão da velha e boa América. É dono de tudo, é um manda-chuva, é o homem que faz chover. Tem o seu próprio vagão particular, e nele e dele volta e meia entram e saem mulheres airosas.
Numa pequenininha cidade perdida naquele interiorzão em que o trem com Jim Gardner faz uma parada, está para subir a bordo uma jovem que as demais mulheres do lugar querem ver pelas costas. Chama-se Catherine Elizabeth Allen (Martha Scott), é daquele lugar, dava aulas na escola da cidade – mas é totalmente diferente de todas as demais. É independente. Acha que não precisa de homem nenhum para dizer o que ela deve fazer – quer fazer o que bem entender na vida. Quer ser igual aos homens, ter os mesmos direitos que eles.
Gente, isso no interiorão bravo de Oklahome, em 1905, ou por aí, em um filme de 1943! É sensacional!
Cathy, ou Katie, ou seja o for, Cat, que é gata, teve a ousadia de escrever um livro! Um livro sobre uma mulher que teve seu coração dividido entre dois homens – um que parecia oferecer a ela muita segurança, tranquilidade, uma boa vida burguesa, digamos assim para simplificar, e o outro um aventureiro, que oferecia o inesperado, o não previsto, o novo, o sabe-se lá o quê.
Ultraje, horror, heresia! As madames da cidade não a queriam mais. Ela também não queria mais aquele lugar interiorano, provinciano, e então sobe no trem para conhecer algo além da pequenina cidade em que sempre havia vivido – pretende ir para Kansas City, onde tem uma tia.
Um improvável mas interessante triângulo entre o magnata, a mocinha e o cowboy
Os vagões do trem estão absolutamente abarrotados: centenas, milhares de homens querem tentar a vida naquele lugar em que foi descoberto petróleo. Querem tentar ter o seu próprio poço. Uma espécie de corrida do ouro all over again, agora pelo que o mau gosto já chamou durante muito tempo de ouro negro.
Só um vagão tem lugar para uma jovem tão bela quanto ela: a do dono de tudo, Jim Gardner.
O magnata comedor de tudo quanto é mulher convida Catherine para seu vagão – e, pela primeira vez na vida, se apaixona. De cara, à primeira vista, perdidamente.
Não mais que de repente, entra naquele vagão exclusivo do dono da ferrovia um cowboy que havia perdido seu cavalo, estava carregando a sela e tinha ficado cansado de caminhar e então sozinho tinha parado o trem. Chama-se Daniel F. Sommers, e, evidentemente, vem na pele e no jeitão de caminhar e de falar de John Wayne, The Duke, ele mesmo.
Veremos que o cowboy tinha estado no glorioso Exército dos gloriosos US of A tanto em solo americano quanto também em Cuba e nas Filipinas, onde as tropas do Tio Sam tinham se metido naqueles anos entre o finalzinho do século XIX e o início do XX.
A situação é um tanto grotesca, bastante forçação de barra, certamente inverossímil, mas se a gente fosse exigir verossimilhança absoluta metade dos filmes não teria sido feita – e então, enquanto o magnata Jim Gardner lança sua teia de charme sobre a jovem que quer igualdade entre os sexos, o cowboy fica ali a comer do bom e do melhor e a ler exatamente o livro da jovem autora – e falando mal pra cacete do livro.
Haverá outras situações um tanto grotescas, um tanto forçadas, um tanto inverossímeis, daí em diante – em geral envolvendo esse triângulo amoroso entre o magnata, a mocinha e o cowboy.
A vida da mocinha vai imitar o romance água com açúcar que ela havia escrito
Isso aqui que descrevei acontece nos primeiros dez minutos dos 102 do filme.
A partir daí, haverá índios, disputa pela concessão de exploração de petróleo nas terras indígenas, visita à Casa Branca habitada então por Theodore Roosevelt (Sidney Blackmer), o homem da filosofia do stick, do porrete do Tio Sam no lombo do resto do mundo, corrida pela extração de petróleo, petróleo jorrando alto e caindo em cima dos personagens – como sobre James Dean na antológica sequência de Giant, Assim Caminha a Humanidade, que vi e revi diversas vezes quando tinha 14 anos de idade –, uma louca corrida de carroças carregando tonéis de petróleo através de centenas de quilômetros, vários tipos de sabotagens.
Haverá de tudo. Eventos para três, quarto, cinco filmes diferentes.
E naturalmente haverá, num caso fantástico de metalinguagem, a vida imitando a literatura, a vida da jovem escritora e feminista Catherine Elizabeth Allen imitando o que ela havia escrito em seu livro – uma heroína despachada, forte, independente, corajosa, que se vê dividida entre o amor de um homem já riquíssimo e o amor de um cowboy que insiste em não querer mexer nesse negócio de petróleo, que não quer saber de virar rico.
Essa coisa da divisão de Catherine entre Jim Gardner, o magnata, e Daniel Somers, o cowboy, é bobinha, porque até a poeira dos desertos de Oklahoma está absolutamente cansada de saber para onde vai, finalmente, pender – num filme americano – um coraçãozinho indeciso entre um magnata e um cowboy, entre um magnata interpretado por qualquer ator e um cowboy interpretado pelo Duke.
É uma cláusula pétrea da Constituição dos Filmes Americanos: entre um milionário e um homem pobre, bom, sincero, o coração da heroína sempre vai pender pelo segundo.
Um filme que, como manda o figurino, defende os fracos, os oprimidos
Mais interessante, portanto, do que essa coisa do coraçãozinho de Catherine, é a forma com que o filme escancara esta outra cláusula pétrea da Constituição dos Filmes Americanos: o ódio visceral aos milionários, a rejeição absoluta aos magnatas, a defesa preferencial, firme, forte, inabalável, dos pobres, dos pequenos, dos deserdados.
Desde sempre, desde que existe, o cinema feito no país que tem mais milionários em todo o mundo faz a opção absoluta pelos pobres, pelos pequenos, pelos deserdados.
Talvez seja por isso – ao menos em parte – que os grandes críticos europeus e os grandes realizadores europeus sempre tenham admirado imensamente o cinema feito nos Estados Unidos.
Grande parte das platéias mais educadas, eruditas, passou, nas últimas décadas, a torcer seus narizes arrebitados para qualquer dos vários tipos de cinema que são feitos nos Estados Unidos. Se é feito nos Estados Unidos, é ruim – esse é o slogan dos cinéfilos que dizem gostar de “filmes de arte”.
É uma postura ridícula por diversos motivos. Um deles é que os grandes autores europeus, assim como os asiáticos, sempre admiraram o cinema americano. Outro motivo é que os filmes americanos sempre defenderam não os tycoons, os poderosos, os milionários. O cinema americano desde sempre fez a defesa virulenta dos pequenos. Hollywood sempre defendeu Davi contra Golias.
Este filme fascinante aqui demonstra isso em diversos momentos. É a defesa clara, escarrada, dos pequenos.
O personagem sem dúvida mais simpático do filme, o condutor de diligências Despirit Dean (George Hayes), explicita de forma absurdamente simples, durante a corrida das carroças que decidirá se a exploração do petróleo nas terras indígenas será feita por nós, o povo, ou então ele, o Grande Capitalismo, a Corporação. Ele canta o seguinte: “Se Rockefeller fosse meu servo e minha comida fosse servida por um rei…”
Há momentos em que este In Old Oklahoma, ou então War of the Wildcats, se revela abertamente socialista, daquele socialismo romântico, sonhador. “Se Rockefeller fosse meu servo e minha comida fosse servida por um rei…” é uma frase bem parecida com aqueles versos compostos por Charles Seeger, o pai do grande, maravilhoso comunista Pete Seeger: “Alegria nesta Terra para viver até o dia em que Rockefeller Pai vai chegar pra mim e dizer: ‘Irmão, pode me dar uns centavos?”
Martha Scott, uma boa atriz, mulher de vida longa e rica
A gata selvagem do segundo título que o filme recebeu nos Estados Unidos, a mulher que se atreve do título brasileiro, essa Catherine Elizabeth Allen é interpretada por Martha Scott. O nome não me dizia nada, assim como o rostinho bonitinho. Só depois é que verifiquei que a vi e revi e vi de novo em Ben-Hur, a superprodução de William Wyler de 1959: 16 anos mais velha do que estava neste filme aqui, no filme que ganhou 11 Oscars Martha Scott fez o papel de mãe do jovem Judah Ben-Hur.
Martha Ellen Scott teve vida longa – morreu em 2003, aos 90 anos –, rica, produtiva. Atriz de boa formação – estudou artes dramáticas na Universidade de Michigan -, trabalhou no teatro, no cinema e na televisão; sua filmografia tem mais de 90 títulos; teve uma indicação ao Oscar de melhor atriz pela atuação em Nossa Cidade/Our Town (1940), mas nunca chegou a ser uma estrela.
No final dos anos 60, em parceria com os colegas Henry Fonda e Robert Ryan, criou uma companhia teatral em Nova York, a Plumstead Playhouse, depois chamada Plumstead Theatre Society.
Tomou pelo menos uma decisão errada na vida: quando Jean Arthur recusou o papel de Mary Hatch Bailey no que viria a ser A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life (1946), os produtores ofereceram a oportunidade a Martha Scott – e ela recusou. Donna Reed foi enfim escolhida para interpretar a mulher do personagem de James Stewart neste que é um dos filmes mais adorados de todos os tempos.
Embora conhecida por suas posições liberais, avançadas (sempre contribuiu para as campanhas dos candidatos democratas, apoiou firmemente a luta pelos direitos civis nos anos 60), era amiga de Charlton Heston, que nas últimas décadas da vida ficou mais conhecido como o grande representante da NRA, a associação americana dos defensores das armas de fogo. Fez papel de mãe do personagem do ator não apenas em Ben-Hur, mas também em outro superespetáculo baseado em história bíblica, Os Dez Mandamentos (1956) de Cecil B. De Mille. Na vida real, no entanto, tinha apenas 11 anos a mais que o ator.
O diretor Albert S. Rogell tem mais de 120 títulos na filmografia
O filme teve duas indicações ao Oscar, por trilha sonora, de autoria de Walter Scharf, e melhor som.
Nunca tinha ouvido falar do diretor Albert S. Rogell (1901-1988), profissional que tem mais de 120 títulos na filmografia. Passei os olhos por ela, e não encontrei nenhum título mais importante, marcante, a não ser O Gato Negro/The Black Cat (1941), uma mistura de comédia com terror com os atores símbolo do cinema de horror dos anos 30, Boris Karloff e Bela Lugosi.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 e foi bem sucinto sobre War of the Wildcats: “Forte Wayne não admite falta de sentido nessa história sobre prospecção de petróleo; boa ação, romance obrigatório. Originalmente intitulado In Old Oklahoma.”
O Guide des Films de Jean Tulard indica, na sinopse, que o autor do verbete não viu direito o filme, porque diz que Dan Sommers se associa a Hunk (o apelido de Jim Gardner) para extrair petróleo. A apreciação do Guide é engraçadinha : “Em Oklahoma, não há idéias, mas – felizmente – há petróleo”. Engraçadinha mas bastante ordinária.
Anotação em dezembro de 2016
Quando a Mulher se Atreve/In Old Oklahoma ou War of the Wildcats
De Albert S. Rogell, EUA, 1943
Com John Wayne (Daniel F. Somers)
e Martha Scott (Catherine Elizabeth Allen), Albert Dekker (Jim Gardner), George Hayes (Despirit Dean), Marjorie Rambeau (Bessie Baxter), Dale Evans (Cuddles Walker), Grant Withers (Richardson), Sidney Blackmer (Teddy Roosevelt), Paul Fix (Cherokee Kid), Cecil Cunningham (Mrs. Ames), Irving Bacon (Ben), Byron Foulger (Wilkins), Anne O’Neal (Mrs. Peabody), Richard Graham (Walter Ames)
Roteiro Ethel Hill & Eleanore Griffin
Baseado em história original de Thomson Burtis
Fotografia Jack A. Marta
Música Walter Scharf
Montagem Ernest J. Nims
Produção Republic Pictures.
P&B, 102 min
**1/2
Titulo na França: La Ruée Sanglante. Em Portugal: Fúria Ardente.
No meu recente festival (doméstico) de cinema, eu vi mais de 70 filmes em dois meses e meio, e este aqui foi um deles. Achei surpreendente para a época o retrato da protagonista feminina. E diferente também, o filme em si. Enredo pra 4 ou 5 filmes? É, talvez. Eu gostei. E não me importo com a questão da verossimilhança, a não ser em casos extremos. Se o filme for bom, a gente passa por cima disso. Ah! Todos os filmes que vi no meu festival caseiro eram americanos, dos anos de 1930 a 1959. A maioria bons. Digam o que quiserem os esnobes, é esse o meu cinema favorito, o americano clássico.
Mas que maravilha de texto delicioso para o café da manhã dominical!
Bela análise. Faltou acrescentar que “Gabby Hayes” – um dos mais saborosos coadjuvantes da história do cinema – era o rei dos filmes B de western. Era tão amado pelas platéias infanto-juvenis da época que o fazia ser o ator mais bem pago dos westerns do período. Ingressou no cinema com quase 50 anos de idade, ficou famoso na série de filmes de Hoppalong Cassidy, quando consagrou seu tipo característico de parceiro do herói, leal e resmungão, proferindo frases ininteligiveis, sendo o responsável pelas situações cômicas. Seus mais frequentes parceiros foram Roy Rogers eJohn Wayne, depois Gene Autry e Wild Bill Elliott. Nos anos 30 e 40 figurava, regularmente, nas listas dos 10 atores mais amados de Hollywood, daí seus altos salários.