Há muito, muito tempo acho que uma das piores tragédias que podem acontecer a uma pessoa é perder o filho ainda jovem. Pastoral Americana mostra que há tragédia ainda maior: perder o filho com o filho ainda em vida.
Seymour, que todos conhecem como o Sueco, e Dawn (interpretados por Ewan McGregor e Jennifer Connelly) são o casal perfeito, o supra-sumo do Sonho Americano: lindos, ricos, felizes. Ele era o herói do time da escola, ela foi rainha da beleza. Ele era judeu, filho do severo industrial Lou Levov (Peter Riegert), dono de uma fábrica de luvas em Newark, New Jersey, e ela, filha de católicos e da classe trabalhadora, mas na América toda conquista é possível, e Dawn, com sua firmeza e determinação, venceu as resistências do pai do noivo a ter uma gói na família.
E então se casaram, e passaram a viver felizes em uma fazenda idílica a alguns quilômetros da cidade. Lou assumiu a direção da fábrica do pai, Dawn passou a criar vacas e, para coroar tudo, tiveram uma filha linda, à qual deram o nome de Meredith.
Merry cresceu linda, inteligente, sabida.
(Ela é interpretada pela fantástica Dakota Fanning; criança de 8 anos, por Ocean Nalu James; aos 12 anos, por Hannah Nordberg – e a escolha das duas pequenas para fazer o papel de Merry criança é admirável.)
Como nada pode ser absolutamente perfeito, Merry era gaga.
Problema absolutamente menor, ínfimo – ainda mais se comparado ao que viria depois.
Merry cresceu nos anos 60 em meio a toda a turbulência daquele período turbulento como poucos outros, os protestos contra a guerra do Vietnã, a contracultura, o movimento hippie, o movimento feminista, a liberação sexual, a radicalização cada vez maior de parte da juventude.
Quando Merry estava com 16 anos, o Sueco e Dawn a perderam. Foi levada embora pelo radicalismo fanático.
Uma bomba explodiu no posto de Correio mais perto de onde a família vivia, matando o homem que cuidava do lugar, Russ Hamlin (David Case). As suspeitas apontaram para Merry Levov.
É muito sofrimento concentrado – e Ewan McGregor e Jennifer Connelly mostram isso
O escocês Ewan McGregor, excelente ator com quase 80 títulos no currículo, vários deles ótimos filmes, estreou na direção com este Pastoral Americana – e estreou com brilhantismo.
Poucas vezes nos últimos tempos me vi tão envolvido com o sofrimento de um personagem quanto ao ver esse pobre Sueco Levov interpretado por Ewan McGregor – e a justaposição de tanta sorte que ele havia tido na vida com a tragédia que se abate sobre ele realça loucamente a dor que passa a dominá-lo.
A partir do momento em que Merry começa se distanciar cada vez mais dos pais, dá para o espectador perceber claramente que Dawn não vai aguentar a barra. E o desempenho de Jennifer Connelly é excepcional. Vamos vendo a dor tomando conta daquela mulher linda, e beleza dela vai perdendo o viço, vai se esvaindo de sequência em sequência.
E à dor imensa, infinita, do ex-astro do time da cidade, o all-American hero, pela perda da filha vai se somar o pesadelo de ver a razão abandonando a mulher.
É muito sofrimento concentrado – e as atuações dos atores principais só fazem realçar ainda mais toda a dor daquelas pessoas tão abençoadas antes pela sorte, tão amaldiçoadas depois.
No quarto da garota, panfletos que pregam a violência contra o Sistema
Até mesmo a começar pelo título de tom épico, grandioso, Pastoral Americana é daqueles filmes que mostram uma história familiar acontecendo tendo como pano de fundo a Grande História – o microcosmo e o macro por trás dele.
O roteiro – escrito por John Romano, de O Terceiro Milagre (1999), O Amor Custa Caro (2003), O Poder e a Lei (2011) – é a adaptação para o cinema do romance de Philip Roth lançado em 1997 e premiado com o Pulitzer. Não li o romance, mas, pelas indicações todas, pelo que mostram sinopses dele, o grande romancista, unanimemente tido como um dos melhores autores americanos das últimas muitas décadas, traça um amplo painel sobre os acontecimentos políticos e sociais que estão por trás da vida dos personagens.
No filme, a Grande História está presente o tempo. Pela TV, pai, mãe e filha vêem Lyndon Johnson discursando sobre a guerra do Vietnã – e ali começa a se criar o fosso entre pais e a filha, que ficará absolutamente intransponível com o passar do tempo.
Há uma sequência bela e assustadora em que o Sueco entra no quarto da filha, num momento em que ela está fora de casa, e se depara com um mundo que ele desconhecia. Fica claríssimo que fazia anos que o pai não pisava ali. No momento em que ele entra no quarto, começamos a ouvir “For What It’s Worth”, de Stephen Stills, com Buffalo Springfield – um dos hinos da contracultura, da oposição à guerra do Vietnã:
There’s something happening here / What it is ain’t exactly clear / There’s a man with a gun over there / Telling me that I got to beware / I think it’s time we stop, children, what’s that sound / Everybody look what’s going down.
Espalhados pelo quarto da garota de 16 anos, há revistas, livros, panfletos, fotos. Há um exemplar da revista Ramparts, então a Bíblia dos estudantes ativistas de esquerda – mas a Ramparts era suave, leve, comparada aos panfletos pregados por toda a parede, falando em revolução, derrubar o sistema, pegar em armas contra a conformidade burguesa. O chamamento à violência.
O filme mostra, e muito bem, exemplos dos distúrbios raciais que tomaram conta dos Estados Unidos naqueles tempestuosos anos entre o final da década de 60 e o início da de 70.
Há diversos diálogos sobre a radicalização cada vez maior de ativistas dos movimentos estudantil e negro.
E há diálogos e sequências inteiras que mostram que o Sueco Levov e Dawn não eram um casal de direitistas, reacionários, retrógrados, racistas – bem ao contrário. O Sueco era contra a guerra do Vietnã, e orgulhava-se do fato de que a fábrica que herdara do pai empregava uma altíssima percentagem de negros.
Nada disso impediu que sua filha passasse a vê-lo como a encarnação do Sistema.
A tristíssima história da família é contado em um flashback que ocupa quase todo o filme
O roteiro mostra, sim, todo contexto histórico, político, social – mas ele se concentra mais é mesmo no microcosmo, no pessoal, nas relações entre pai, mãe e filha. E, a partir do momento em que pai e mãe perdem a filha para a irracionalidade do fanatismo radical, vai fundo na dor, na angústia, no sofrimento daquelas pessoas.
O projeto de filmar o romance de Philip Roth vem desde 2004. Falou-se no nome de Phillip Noyce para dirigir o filme, e teria sido uma boa escolha – Noyce tem experiência nesse tipo de drama pessoal misturado com a Grande História, como mostram seus filmes Geração Roubada (2002), O Americano Tranquilo (2002), Em Nome da Honra (2006).
Acabou caindo nas mãos de um estreante – mas são boas, são ótimas as mãos de Ewan McGregor.
Em 2004, falou-se dos nomes de Paul Bettany, Jennifer Connelly e Evan Rachel Wood para os papéis do Sueco, Dawn e Merry. Interessante que Jennifer Connely tenha sido finalmente a escolhida quando o projeto finalmente foi posto em prática.
O roteiro ficou pronto, segundo informa o IMDb, em 2006.
O autor John Romano manteve para o filme o mesmo esquema usado no romance: os fatos não vão sendo apresentados diretamente, em ordem cronológica. A ação começa em meados dos anos 90 – exatamente a época em que o romance foi escrito e lançado. O escritor Nathan Zuckerman – o alter-ego do próprio Philip Roth, presente em vários de seus romances, como Casei com um Comunista, A Mancha Humana – vai à reunião anual de comemoração do 45º aniversário de formatura do ginásio, algo que não costumava fazer, e lá se depara com um mural em homenagem a Seymour Levov, o Sueco, a lenda do esporte da escola.
Nathan Zuckerman (interpretado pelo sempre ótimo David Strathairn) vai então narrando para o espectador suas lembranças do Sueco. Ele mesmo, Zuckerman, era um pouco mais novo – tinha sido colega de classe de Jerry Levov (Rupert Evans), irmão caçula do herói da escola.
Ouvimos a voz de David Stratharin-Nathan Zuckerman:
– “Vamos lembrar a energia. A América tinha ganho a guerra. A Depressão havia acabado. O sacrifício havia acabasdo. O surto de vida era contagiante. Celebrávamos um momento de embriaguez coletiva que jamais voltaríamos a experimentar.”
E então Zuckerman se encontra com Jerry – e fica sabendo que o Sueco morreu, será enterrado no dia seguinte. Começam a conversar; Jerry se surpreende com o fato de que o amigo, escritor famoso, desconhece inteiramente a história do irmão, o que aconteceu com o casal perfeito, o casal dos sonhos, depois que sua filha linda chegou à adolescência.
Vem aí o flashback com toda a história.
John Romano evitou aquela coisa de ficar indo e vindo no tempo, aquele pingue-pong passado x presente. Temos aquele início em meados dos anos 90, a festa de comemoração da turma de ginásio, o encontro de Zuckerman com Jerry Levov – e aí caímos no passado, a história do Sueco, o casamento com a linda Dawn, a chegada da filha Merry. E a história vem vindo em ordem cronológica, sem idas e vindas, sem pingue-pongue, para só voltar a meados nos anos 90 ao final dos 108 minutos de bom cinema – e de tristeza infinda.
A história é absolutamente relevante nos dias de hoje
Tristeza infinda – perder uma filha linda, na flor da adolescência, para o radicalismo fanático.
Infelizmente, não poderia haver época mais apropriada para este filme ser lançado.
A história do casal Sueco-Dawn Levov faz a gente ficar pensando nas dezenas, centenas e centenas de casais de europeus que têm perdido seus filhos adolescentes para os defensores da Jihad, o Exército Islâmico, as outras diversas organizações terroristas árabes, e, do outro lado, as facções radicais de direita, os neonazistas.
E, é claro, nos faz pensar nos casais de americanos que vêem seus filhos sendo atraídos pela insanidade do supremacismo branco, do neonazismo.
É interessante poder ver as coisas com a perspectiva da passagem do tempo. Lyndon B. Johnson, o presidente que foi assim a fagulha que incendiou a mente da jovem Merry Levov primeiro com uma saudável rebeldia, e depois com a insanidade das bombas e dos assassinatos, foi o líder que fez aprovar as leis federais que baniram definitivamente o racismo antes legalizado em vários Estados americanos.
Pastoral Americana, o filme, estreou nos cinemas no ano em que foi eleito presidente esse estrupício que é Donald Trump. Vimos o filme poucos dias após a marcha dos racistas em Charlottesville, na Virginia, no dia 11 de agosto de 2017 – a maior manifestação aberta de ódio racial nos Estados Unidos em mais de dez anos. Como escreveu o jornalista Elio Gaspari sobre as manifestações de Charlottesville e todo o debate que se seguiu, agigantado pela tíbia reação de Trump aos grupos racistas, “há mais de 50 anos as coisas iam bem”. As coisas vinham a rigor melhorando – apesar de aqui e ali existirem ainda nódoas, manchas horrorosas do racismo. O país elegeu e reelegeu um presidente da República negro.
“Há mais de 50 anos as coisas iam bem”, como escreveu Gaspari. “Mas ninguém contava que um dia aparecesse Donald Trump.”
O cinema americano fez poucos filmes sobre o terrorismo de esquerda no país
Um noticiário de TV que aparece em uma sequência de Pastoral Americana, já quando a narrativa se encaminha para o final, fala em mais de 4.400 casos de explosões registrados nos Estados Unidos nos últimos anos da década de 60 e início dos anos 70 e atribuídos a grupos radicais de esquerda.
O terrorismo de esquerda nos Estados Unidos – que antecedeu em alguns anos a atuação das Brigadas Vermelhas na Itália e do grupo Baader-Meinhoff na Alemanha – não tem muito sido retratado pelo cinema. Ao menos que eu saiba.
Os alemães fizeram belos, importantes filmes sobre seu próprio terrorismo doméstico de esquerda (O Grupo Baader-Meinhoff, de 2008, O Fim de Semana, de 2012), assim como os italianos (Il Caso Moro, de 1986, Bom Dia, Noite, de 2003), para citar só uns poucos.
O cinema americano, tão prolixo, tão poderoso – só a Índia produz mais filmes anualmente que os Estados Unidos –, no entanto, trata bem pouco do assunto. A rigor, me ocorrem apenas O Peso de um Passado/Running on Empty, Sem Proteção/The Company You Keep e O Sequestro de Patty Hearst/Patty Hearst.
Neste último, de 1988, dirigido por Paul Schrader, Natasha Richardson interpreta a Patricia Hearst do título, a jovem neta do magnata da imprensa William Randolph Hearst, que em 1974 foi sequestrada por uma organização terrorista chamada – meu Deus do céu! – Exército Simbionês de Libertação, submetida a um processo de lavagem cerebral e depois tornada uma das “guerrilheiras” que participaram de assalto a banco em San Francisco.
Em O Peso de um Passado, de 1988, o grande Sidney Lumet conta a história de um casal (interpretado por Christine Lahti e Judd Hirsch) que, na juventude, havia participado de ações armadas de grupos radicais de esquerda; fichados pelo FBI, e condenados a penas que não prescrevem, por mais tempo que passe, os dois vivem adotando novas identidades e fugindo de um lugar para outro, à medida em que permanecer em determinada cidade começa a apresentar algum risco de serem descobertos. A trama se concentra no filho do casal, um jovem talentoso, que não consegue ter amigos, já que está sempre mudando de cidade. River Phoenix faz o garoto, em uma das melhores interpretações de sua carreira curtíssima.
Sem Proteção, de 2012, dirigido por Robert Redford, vai fundo na vida de alguns ex-terroristas do grupo Weather Underground, interpretados pelo próprio Redford, Susan Sarandon e Julie Christie. O filme começa com a personagem de Susan Sarandon resolvendo se entregar 30 anos depois de ter participado de uma ação armada em que foi morto um policial.
É pouco filme para um assunto tão importante.
Pastoral Americana/American Pastoral
De Ewan McGregor, EUA-Hong-Kong, 2016
Com Ewan McGregor (Seymour Levov, o Sueco), Jennifer Connelly (Dawn Levov), Dakota Fanning (Merry Levov), Peter Riegert (Lou Levov), Rupert Evans (Jerry Levov), Uzo Aduba (a secretária do Sueco na fábrica), Molly Parker (Sheila Smith), Valorie Curry (Rita Cohen, a terrorista), Hannah Nordberg (Merry aos 12 anos), Ocean Nalu James (Merry aos 8 anos), Julia Silverman (Sylvia Levov), Mark Hildreth (agente Dolan), Samantha Mathis (Penny Hamlin, a viúva), David Strathairn (Nathan Zuckerman), David Whalen (Bill Orcutt)
Roteiro John Romano
Baseado no romance de Philip Roth
Fotografia Martin Ruhe
Música Alexandre Desplat
Montagem Melissa Kent
Casting Deborah Aquila e Tricia Wood
Produção Lakeshore Entertainment, TIK Film.
Cor, 108 min (1h48)
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