Se no futuro estudiosos – terráqueos ou alienígenas – quiserem pesquisar sobre as obras do cinemão comercial americano mais despudoradamente bobas, besteróicas, mais desavergonhadamente distantes de qualquer lógica ou seriedade durante os anos 1980, este filme aqui é um prato cheio.
Serve para fazer teses de doutorado sobre o tema.
Earth Girls Are Easy, no Brasil Meu Amante é do Outro Mundo, é uma mistureba de ficção científica com musical com comédia romântica que usa todos os símbolos do que era a cultura pop americana em 1988, o ano de sua fabricação. Isso tudo junto, e mais um monte de observações nada sutis a respeito dos hábitos sexuais do homo sapiens na região de Los Angeles – embora o que seja mostrado não tenha propriamente a ver com sapiência.
Nunca tinha ouvido falar desta pérola. Dei com ela quando zapeava, insone, na alta madrugada – e não consegui parar de ver. Mary tem toda razão quando diz que sou apaixonado por uma produção Z – quanto pior, mais teimo em ver.
Na verdade, Earth Girls Are Easy não é propriamente uma produção Z – pelo menos em termos de custo, orçamento. É uma produção Dino de Laurentiis (1919-2010), aquela espécie assim de Cecil B. deMille italiano, produtor de 175 títulos, vários deles superproduções tipo o Guerra e Paz de King Vidor (1956), Barrabás (1961), A Bíblia (1966), mas também obras autorais como A Grande Guerra (1959), de Mario Monicelli, e O Estrangeiro (1967), de Luchino Visconti, baseado em Camus.
Nos anos 80, o velho Dino de Laurentiis parece ter se encantando com essas incursões na ficção científica chegadas ao kitsch: ele foi também o produtor, em 1980, de um Flash Gordon grotesco, que desperdiçava o talento de Max Von Sydow e a beleza de Ornella Mutti. Roger Ebert, o crítico que gostava de ver filmes e gostava dos filmes que via, sentenciou que Flash Gordon era uma “ópera espacial cômica” ridícula e, de uma certa forma, divertida.
O que o grande Ebert dizia de Flash Gordon vale perfeitamente para este Earth Girls Are Easy: é uma ópera mezzo espacial mezzo discotheque, que, de tão ridícula, acaba sendo divertida.
O diretor Julien Temple fez clipes musicais de Sex Pistols, Neil Young…
O sujeito que assina a direção do espetáculo é uma figurinha das mais carimbadas do universo pop dos anos 80: o inglês Julien Temple, nascido em 1953, tem quase 60 títulos em seu currículo de diretor, mas nem dez deles são filmes mesmo, longa-metragens. A imensa maioria de sua obra é formada por clipes musicais e pequenos documentários ligados ao rock, ao punk e ao pop. Fez clipes para os Sex Pistols, Neil Young, Culture Club, Judas Priest, Janet Jackson, Whitney Huston, David Bowie, Joe Strummer do Clash.
Um pé no punk. Julien Temple é um sujeito meio punk, pelo que vemos nesta comédia tresloucada, que não respeita absolutamente nada e ninguém. É meio punk, daquele estilo punk que é punk encoxa a mãe no tanque – enquanto via Earth Girls Are Easy, me ocorreu que o filme tem um tanto a ver com o estilo John Waters, talvez o cineasta americano mais iconoclasta que já existiu.
Um produtor milionário, um diretor de grife – e três nomes importantes no elenco. A grande estrela do filme, a heroína, a protagonista, Valerie, manicure do San Fernando Valley, na região de Los Angeles, belíssima, gostosa, descolada para os modismos mas um tanto loura-burra, mesmo quando não está loura (lá pelas tantas, diz que Finlândia é a capital da Noruega), vem na pele e no corpo longo, alto, maravilhoso de Geena Davis.
E, entre os atores que interpretam os três alienígenas que pousam sua nave espacial na piscina da casa de Valerie estão Jeff Goldblum e Jim Carrey.
Mas… Como é mesmo? Valerie é uma manicure, e mora numa casa que tem piscina? Como assim?
Como assim o quê? É uma comédia nonsense, ficção científica, musical, romance. Alguém vai querer lógica, algum tipo de verossimilhança?
Geena Davis e Jeff Goldblum eram astros em ascensão. Jim Carrey estava começando
O filme é de 1988, repito. Geena Davis era uma estrela em ascensão fulgurante. Em 1986, havia feito o papel feminino principal em A Mosca, a refilmagem do grande clássico do cinema de horror de 1958 com Vincent Price, A Mosca da Cabeça Branca. Em 1988, o mesmo ano deste filme aqui, fez ainda Os Fantasmas Se Divertem/Beetlejuice, de Tim Burton, e O Turista Acidental, do grande Lawrence Kasdan – e três anos depois, em 1991, viria Thelma & Louise, de Ridley Scott.
Jeff Goldblum também era um astro em ascensão. Tinha tido o papel principal exatamente em A Mosca, ao lado de Geena Davis. Reuni-los de novo era insistir numa dupla que havia dado certo – tudo bem, não daria para dizer que era como Spencer Tracy e Katharine Hepburn, mas era uma bela dupla.
Em 1983, o cara já havia estado em O Reencontro, do já citado Lawrence Kasdan, e Os Eleitos, de Philip Kaufman, dois filmes estupendos. E trabalhara em Um Romance Muito Perigoso/Into the Night (1985), de outro nome fundamental dos anos 80, John Landis, e ao lado de outra maravilha, Michelle Pfeiffer.
E Jim Carrey…
Acho Jim Carrey uma figura especial. É o sujeito que conseguiu fazer mais caretas diante de uma tela do que Victor Mature, talvez o maior canastrão de toda a História do cinema mundial. No entanto, trabalhou em três grandes filmes, e foi fundamental para ajudar a torná-los grandes: O Show de Truman/The Truman Show (1998), de Peter Weir, O Mundo de Andy/Man on the Moon (1999), de Milos Forman, e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry.
É o mais jovem dos três atores principais: de 1962, estava portanto com 26 anos quando o filme foi lançado. (Jeff Goldblum é de 1952, estava com 36; e Geena Davis, de 1956, tinha 32.) Já tinha alguns títulos no currículo, séries de TV, um Dirty Harry de 1988 e até um filme importante, mas em papel bem pequeno – Peggy Sue, Seu Passado a Espera/Peggy Sue Got Married (1986), de Francis Ford Coppola.
Valerie está tomando sol ao lado da piscina quando chega a nave espacial
E então, na trama, na história, temos que uma nave espacial com três seres extraterrestres a bordo cai dentro da piscina de Valerie, uma manicure toda descolada de Los Angeles.
Tentar explicar racionalmente por que a nave caiu dentro de uma piscina na região metropolitana de Los Angeles é tão desnecessário, tão despropositado quanto imaginar por que raios uma manicure mora naquela casa imensa com uma maravilhosa piscina. Não é um filme para caber em alguma lógica, e pronto.
De onde vem a nave, isso até se fala – Mac, o líder dos três aliens, o que é interpretado por Jeff Goldblum, diz o nome, um nome fictício, é claro, que não quer dizer coisa alguma.
Antes de a nave cair na piscina, o filme – seguindo roteiro original assinado Julie Brown & Charlie Coffey & Terrence E. McNally – mostra para o gentil público um pouquinho da vida de Valerie.
Aquele mulherão todo está noiva de um médico, um tal Ted Gallagher (Charles Rocket). No entanto, o dr. Ted não tem comparecido muito ao guichê de serviços: Valerie vai contar para sua grande amiga e colega, Candy Pink (Julie Brown), a cabeleireira do salão em que trabalha como manicure, que faz dois meses que Ted não a come. E isso porque estão para se casar daí umas poucas semanas. “Com a quantidade de vezes que temos feito sexo, já poderíamos estar casados faz tempo”, diz Valerie para Candy Pink.
Num determinado fim de semana, bem no início da narrativa, estava combinado que Valerie ficaria fora de casa, participando de um workshop de manicures. Mas Candy Pink a faz mudar de idéia: ela e as demais colegas do salão de beleza produzem uma nova Valerie, loura e ainda mais sexy e gostosa, para que ela faça para o dr. Ted a surpresa de aparecer em sua própria casa naquele fim de semana em que deveria estar fora, a trabalho.
A transformação da gostosérrima Valerie em um tipo louro teoricamente ainda mais gostoso aparece em um belo número musical, um dos cinco ou seis que há no filme, todos muito bem produzidos – afinal, clipe musical é a especialidade de Julien MTV Temple.
A gostosérrima Valerie agora loura aguarda a chegada de Ted – e Ted chega com uma outra loura! O idiota, além de não comer direito o mulherão na casa de quem está vivendo, ainda por cima resolve usar a pouca energia sexual que tem com outra mulher!
Valerie expulsa o noivo de casa, e, triste, deprê, quebra metade do que há quebrável dentro do lar amargo lar.
Na manhã seguinte a nave espacial de Mac, Wiploc (o papel de Jim Carrey) e Zeebo (Damon Wayans) cai na piscina diante da qual Valerie-Geena Davis expõe seu corpanzil que não faz feio diante de corpanzil algum do mundo, Giselle Bundchen e Cindy Crawford incluídas.
Entre as piadas, há um fantástico diálogo sobre sexo. Cuidado: é spoiler
Há alguns momentos fantasticamente engraçados neste filme que tem tanto a ver com a seriedade quanto a organização criminosa de Lula et caterva tem com a honestidade. Quando, depois de ver televisão durante algum tempo, incluindo um clipe de louras falando que “isto aqui é a Finlândia”, um dos ETs, não sei se Wiploc ou Zeebo, pergunta se eles estão na Finlândia, e Valerie responde que não, que “a Finlândia é a capital da Noruega”, tive um acesso de riso.
Ver o dr. Ted babaca chegar à casa da noiva para tentar uma reconciliação carregando um LP (sim, um LP! era 1988) de Julio Iglesias é também uma delícia.
Mas a cereja do bolo virá num diálogo quando o filme já passa da metade. Não chega a ser um spoiler, mas vá lá – se porventura algum eventual leitor quiser conhecer esta peça de museu, não leia o diálogo que transcrevo logo abaixo, porque ouvi-lo no filme sem dúvida é 200 mil vezes mais divertido.
Mac, o chefe dos aliens, diz para Val, que se deitou em sua cama, coxas looooongas à mostra: – “Mac pode fazer Val feliz.”
Val (puxando um lençol para cobrir as coxas looooongas): – “Péra lá. Você está dando em cima de mim? Isso é uma cantada? Porque se for, sexo está totalmente fora de questão.”
Mac, o alien: – “O que é sexo?”
Val, que não trepava fazia dois meses: – “Sexo? Sabe? Fazer amor. Um homem e uma mulher, que gostam um do outro, e eles tiram a roupa e…”
Mac, o alien que aprende depressa, levantando-se e começando a tirar a roupa: – “OK.”
Val, aquele mulherão todo: – “Ei, não, não, não… Nós não podemos, porque o Ted e eu… Ahn… Bem, acho que não somos mais, mas, quero dizer… Nós não podemos, porque você é um alien, e eu sou do Vale. Talvez não sejamos anatomicamente corretos um para o outro… Isso seria um grande problema. (Barulho do zíper da calça dele abrindo. Val olha na direção do pau do alien.) Problema nenhum. Mas, digo, ahn, não, não, não… Quero dizer, pode não dar certo… Você não é da cidade… As contas de telefone seriam um horror…
Mac: – “Shhhhh…”
Val: – “Bem, eu só não quero que você pense que as moças da Terra são fáceis.”
Este é um dos vários filmes que misturam aliens, sexo e gargalhadas
Por mais doidão, esquisitão que pareça, este Earth Girls Are Easy não é um filme fora de padrão. Vários filmes americanos das últimas décadas fizeram grandes gozações com aliens e apetite sexual, com aliens e o comportamento dos terráqueos. No mesmo ano, 1988, foi lançado Minha Noiva é uma Extraterrestre/My Stepmother is an Alien, de Richard Benjamin, em que Kim Basinger, no auge da beleza, faz a E.T. de planeta muitíssimo mais avançado que vem à Terra descobrir como foi possível que um cientista deste planeta tão primitivo tivesse conseguido enviar mensagem e energia através das galáxias. O cientista meio biruta é interpretado por Dan Aykroyd, com aquela cara de sonso que ele faz com perfeição.
Tão distante de qualquer seriedade quanto esses dois filmes de 1988 é De Que Planeta Você Veio?/What Planet Are You From?, que o respeitabilíssimo Mike Nichols lançou em 2000. A sensação que tive quando vi o filme foi que Mike Nichols resolveu se divertir, tirar férias, e aí chamou um bando de bons atores (Annette Benning, John Goodman, Greg Kinear, Richard Jenkins, Linda Fiorentino, e até Ben Kingsley) pra fazer uma das comédias mais estúpidas da história: um alienígena de um planeta muito evoluído, em que as pessoas não precisam trepar para procriar, é encarregado por seus superiores de tomar a forma humana e vir à Terra para engravidar uma terráquea. É uma necessidade vital para o planeta deles, por alguma razão absurda qualquer de que nem me lembrava mais ao escrever o comentário. A partir dessa idéia cretina, ginasiana, surgem excelentes piadas sobre relacionamentos, fidelidade, traição, sexo, sociedade, valores morais – uma maravilha.
Um ano antes, em 1999, um tal de Jeff Abugov, diretor sem absolutamente nada das credenciais de um Mike Nichols, ou mesmo de Julien Temple, havia nos presenteado com O Amor Segundo um Extraterrestre/The Mating Habits of the Earthbound Human – uma delícia absoluta. Sobre ele anotei, muito tempo antes de imaginar que teria um dia um site sobre filmes: “Gostosa, despretensiosa, hilariante, escrachada comédia feita por um obscuro diretor canadense, Jeff Abugov, sem atores conhecidos, que usa o tema recorrente da vinda de extraterrestres ao planeta apenas e tão somente para fazer comentários sobre os estranhos hábitos dos terráqueos”.
O que estou querendo dizer aqui é que, por mais estranho que este filme de Julien Temple possa parecer, na verdade ele pertence a um subgênero de um certo tipo de filme americano, que eu não saberia bem como nomear, mas que é isso: filmes que aparentemente não dão a mínima bola para o racional, a verossimilhança, a seriedade, e nos fazem rir escancaradamente. Mas que, se você observar bem, estão, sim, falando de coisas muito reais, perigosas e imediatas: o comportamento do terráqueo, esse ser em tudo por tudo doidão, imprevisível, surpreendente, capaz até mesmo – imagine! – de belos gestos, atitudes, sentimentos, criações.
Anotação em dezembro de 2016
Meu Amante é do Outro Mundo/Earth Girls are Easy
De Julien Temple, EUA, 1988
Com Geena Davis (Valerie Gail), Jeff Goldblum (Mac), Jim Carrey (Wiploc), Damon Wayans (Zeebo), Julie Brown (Candy Pink), Michael McKean (Woody), Charles Rocket (Dr. Ted Gallagher)
Argumento e roteiro Julie Brown & Charlie Coffey & Terrence E. McNally
Fotografia Oliver Stapleton
Música Nile Rodgers
Montagem Richard Halsey
Casting Wallis Nicita
Produção De Laurentiis Entertainment Group, Earth Girls,
Kestrel Films.
Cor, 100 min
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