“A mostly true story”. Uma história praticamente real. Uma história em boa parte real.
O aviso dado ao espectador, bem no início de A Senhora da Van, é perfeitíssimo – na essência, no que diz, e na forma com que diz. É uma frase engraçada, irônica, de humor tipicamente britânico – exatamente como o filme que começa logo depois dela.
O filme conta, sim, fatos reais: no início dos anos 1970, uma idosa senhora, que se identificava como Miss Shepherd, estacionou sua van na Rua Gloucester Crescent, no bairro solidamente classe média de Camden Town, em Londres, e não mais saiu. Ficou lá durante mais de 18 anos – 15 dos quais com a van na vaga para carros diante da casa do escritor Alan Bennett.
Uma moradora de rua, uma homeless, instalada por quase duas décadas em uma belíssima rua de um belíssimo bairro de Londres – com toda aquela sujeira, aquelas tralhas de morador de rua, aquele monte de sacos plásticos, e um cheiro infernal. Com o detalhe de que não era exatamente uma moradora de rua, mas uma moradora de sua própria van – e falava um perfeito inglês de gente muito bem educada.
Alan Bennett escreveu a história – o que mais poderia um escritor fazer se aquela coisa mais estranha, mais surrealista do mundo estava acontecendo diante de seus olhos? Claro que escreveu a história. Virou peça de teatro em 1999, com este mesmo título, The Lady in the Van. No ano seguinte, virou uma peça de rádio apresentada na BBC.
Uma história real contada com pitadas de fantasia. Macondo em Londres
O roteiro do filme é dele mesmo. E o filme foi rodado exatamente no local em que os fatos aconteceram – no bairro de Camden Town, na Rua Gloucester Crescent. A casa de Alan Bennett, com a vaga para carro diante dela, onde a van de Miss Shepherd ficou durante 15 anos, é mesmo a casa que aparece no filme.
Mas então, se os fatos aconteceram, se o filme teve cuidados quase de um documentário, de ser feito exatamente onde se deram os eventos… Então por que não dizer “Esta é uma história real”?
Aí é que está. Não é exatamente, rigorosamente, uma história real, e sim “a mostly true story”, por alguns detalhinhos. Em primeiro lugar, porque Miss Shepherd – que depois descobriu-se que era Margaret Fairchild – era uma figura absolutamente misteriosa. Não falava nada de seu passado. Alan Bennett e os seus vizinhos de Camden Town demoraram anos e anos para ter informações seguras sobre o passado da velha senhora.
E então parte do que o filme fala da história dela é – como o ator que representa Alan Bennett, Alex Jennings, explica com todas as letras – pura invenção.
E, em segundo lugar, porque Alan Bennett escolheu contar a história real com um eterno tom de humor, aquele humor britânico. Para contar a história real, mas que parece coisa de ficção, que parece uma história surrealista, o autor optou por um tom humorístico e suavemente surreal. Uns toques de realismo mágico. Pitadas de Juan Rulfo e Gabriel García Márquez numa história inglesérrrima. Macondo em Camden Town.
Alex Jennings dá um show interpretando não um, mas dois Alan Bennets
Temos, então, não um Alan Bennett no filme – mas dois. Um é o escritor – está sempre sentado diante de sua máquina de escrever portátil, em sua mesa de trabalho na sala espaçosa, no segundo andar da casa, tentando se concentrar no texto. O outro é o ser humano, a pessoa, o que vive.
Um escreve, o outro vive.
Os dois discutem sempre, quase o tempo todo. Um pega no pé do outro, como se fosse um casal de velhinhos.
Confesso que não me lembrava dessa ator Alex Jennings, embora ele tenha trabalhado em A Rainha/The Queen (2006) de Stephen Frears (faz o papel do príncipe Charles) e em The Crown (faz o papel de Edward VIII, o tio de Elizabeth II, o rei que abdicou).
Dá um show, esse Alex Jennings, como as duas faces de Alan Bennett, um sujeito que o roteirista Alan Bennett mostra como um tipo tímido, retraído, contido, com uma certa propensão para viver recluso, mas, quando obrigado a conviver com os outros, educado, polido – dotado de uma grande inteligência e um especial senso de humor com o qual ri de si mesmo e de seus defeitos e ao mesmo tempo cria uma armadura para se proteger do mundo.
O humor, a fina ironia, essas são características presentes em cada momento do filme. Todo o texto é cheio de frases inteligentes, irônicas, sagazes.
Alex Jennings está tão bem, mas tão maravilhosamente bem, que encara de igual para igual o monstro sagrado que interpreta Miss Shepherd – a excepcional, extraordinária, magnífica Maggie Smith.
E é engraçado pensar que, no mesmo ano de 2015, Maggie Smith interpretou a condessa viúva de Grantham, Violet Crawley, na série Downton Abbey, e também essa mulher que teve no passado boa educação mas é uma homeless, sempre envolvida em camadas e camadas de andrajos, que não vê um banho faz mais de década.
Em 17 anos, mais de 15 filmes, e ainda a longa série Downton Abbey
Maggie Smith é uma força da natureza.
Nascida em 1934, estava portanto com 81 anos em 2015 – e, só naquele ano, além de ter interpretado uma condessa chiquetérrima dos anos 1920 e uma homeless fedida dos anos 1970, fez também O Exótico Hotel Marigold 2.
Só nos anos 2000, Maggie Smith fez seis filmes da série Harry Potter, mais Assassinato em Gosford Park, Divinos Segredos, O Violinista que Veio do Mar, De Bico Calado, Amor e Inocência, os dois Exótico Hotel Marigold, O Quarteto e Minha Querida Dama – entre outros.
É incansável. E é absolutamente maravilhosa em tudo que faz – embora a gente tenha que admitir que, em todos esses filmes tão díspares citados aí acima, ela interpreta sempre Maggie Smith.
A Miss Shepherd que ela faz aqui é um tipo fascinante – e ao mesmo tempo nojento, repugnante. Educada, de fala fluente, vocabulário rico de gente letrada – e ao mesmo tempo autoritária, mandona, ditatorial.
Às vezes parece absolutamente louca, doida, lelé da cuca – e às vezes é a racionalidade em pessoa. Às vezes parece que está se fingindo de doida, e se divertindo à beça com isso.
Lá pelas tantas, me perguntei, e perguntei em voz alta, como era possível aquela situação surrealista perdurar por tanto tempo, num país rico, civilizado, com uma organização de saúde pública invejável, admirável: como ninguém fazia nada? Como não recolhiam a velhinha para um hospital, um asilo?
Mary espantou minha dúvida como se espanta uma mosca incômoda, com um safanão – homeless é assim mesmo em todo lugar, eles se recusam a ser atendidos, simplesmente, disse ela.
Pode ser. Mas essa questão de fato ficou me perseguindo ao longo de todo o filme.
É bonitinho ver a história contada com graça, com muito humor, com um monte de diálogos inteligentes, irônicos – mas, cacete, não é nada agradável imaginar uma pessoa vivendo naquele amontoado de sujeira na sua rua, na sua quadra, na vaga de garagem da sua casa.
“Uma vaca intolerante, preconceituosa, careta, intratável, desonesta…”
É possível que, na vida real, os agentes dos serviços públicos da Grã-Bretanha tenham aparecido mais na vida de Miss Shepherd do que Allan Bennet resolveu contar no seu relato que, afinal de contas, não é exatamente a realidade, mas “a mostly true story”.
No filme, aparecem duas assistentes sociais. A primeira delas aparece bem rapidamente – e é interpretada por Claire Foy, a atriz que viveu a jovem Rainha Elizabeth II na magnífica série The Crown, a mesma em que Alex Jennings interpreta o tio de Elizabeth, o rei que abdicou pelo amor da americana divorciada Wallis Simpson.
A segunda assistente social que aparece é mais firme, mais presente. Chama-se Miss Briscoe, e é interpretada por Cecilia Noble. Ela tenta exigir de Alan Bennett que assuma de vez que é o cuidador de Miss Shepherd – algo que ele recusa terminantemente.
O único momento do filme em que Alan Bennett consegue explodir, mostrar o que pensa, falar em tom de voz um pouquinho mais alto do que o normal de pessoa educada, é quando a assistente social Mis Briscoe o pressiona.
O que ele diz, sua definição de quem é Miss Shepherd, é sensacional:
– “Mary, como você a chama, é uma vaca intolerante, preconceituosa, careta, intratável, desonesta, impiedosa, egoísta, grosseira, rude, para não dizer nada de suas fezes que voam e sua habilidade de expulsar de suas nádegas ressequidas o cocô com tanta força que ele pousa a dois metros da traseira da van e de seu presumível ponto de saída.”
Bem no começo do filme, Rufus, um dos vizinhos de Alan Bennet (interpretado por Roger Allam, de tantos bons filmes nos últimos anos), diz para ela: – “Desculpe, mas a senhora não pode estacionar aqui”.
Miss Shepherd havia acabado de estacionar bem na frente da casa de Rufus. Ela diz: – “Não, eu recebi orientação. Era para eu parar aqui.”
Rufus: – “Orientação? De quem?”
Miss Shepherd: – “Da Virgem Maria. Falei com ela ontem. Ela estava ali perto do Correio.”
Rufus: – “Mas o que ela entende de estacionamento?”
Homens que saem da casa sorrateiramente… Só podem ser comunistas
Há um tom anti-clerical, anti-Igreja Católica, na história. Não se vai fundo nisso, não se explicitam muito as questões – até porque o filme mostra que a história pregressa de Miss Shepherd é bastante misteriosa. Mas é dito que, no passado distante, bem distante, ela havia tentado ser freira – e tinha enfrentado uma barra pesada em seus tempos de noviça. Um padre teria proibido que ela continuasse a tocar piano – sua maior paixão na vida, quando bem jovem –, como forma de demonstrar seu desapego pelas coisas deste mundo material.
Também não se vai fundo nessa questão – mas o filme indica com bastante clareza a homossexualidade de Alan Bennett. Bastante clareza – mas nada extremamente explícito.
Diferentes homens são vistos entrando e saindo da casa do escritor à noite. De uma forma um tanto sorrateira.
Há um diálogo delicioso sobre isso. Miss Shepherd diz: – “Mr Bennett. Esses jovens que saem da sua casa tarde da noite… Eu sei quem eles são”.”
Alan Bennett solta um suspiro: – “Ó Jesus…”
Miss Shepherd: – “São comunistas. Se não fosse, porque sairiam assim tão escondidos?”
Um filme feito por uma turma de bons amigos
Maggie Smith foi indicada tanto ao Bafta quanto ao Globo de Ouro por sua interpretação da velhinha homeless. Não levou nada. Não precisa. Já tem em casa dois Oscars e três Globos de Ouro – 46 prêmios no total, fora outras 95 indicações.
Ninguém mais seria tão indicado para dirigir The Lady in the Van que Nicholas Hytner.
Nicholas Hytner, inglês de Manchester, nascido em 1956, dirigiu seis filmes na vida, entre 1994 e 2015. Foi o realizador de As Bruxas de Salém/The Crucible (1996), extraordinária adaptação para o cinema da peça emblemática de Arthur Miller, com um elenco de babar – Daniel Day Lewis, Winona Ryder, Paul Scofield, Joan Allen.
Dois anos depois de fazer esse drama pesadíssimo, fez uma gostosa, sensível, até mesmo tocante comedinha romântica, A Razão do Meu Afeto/The Object of my Affection, em que a assistente social interpretada por Jennifer Aniston vai morar com um amigo gay, feito por Paul Rudd, e acaba se apaixonando por ele.
Dois dos filmes anteriores de Nicholas Hytner foram – exatamente como este The Lady in the Van – roteirizados por Alan Bennett, com base em histórias escritas por ele mesmo. Não vi esses filmes, e agora, claro, gostaria de vê-los: As Loucuras do Rei George/The Madness of King George (1994) e Fazendo História/The History Boys (2006).
É coisa de grandes amigos. Coisa de turma de amigos. Todos os principais atores da peça The History Boys aparecem neste filme aqui. Ao todo, 20 pessoas – do elenco e da equipe técnica – trabalharam tanto no filme de 2006 quanto neste aqui.
Coisa de amigos, de turma de amigos. Delícia.
Anotação em julho de 2017
A Senhora da Van/The Lady in the Van
De Nicholas Hytner, Inglaterra, 2015.
Com Maggie Smith (Miss Shepherd), Alex Jennings (Alan Bennett)
e Jim Broadbent (Underwood), Clare Hammond (Margaret jovem), Gwen Taylor (a mãe de Alan), Deborah Findlay (Pauline), Roger Allam (Rufus), Richard Griffiths (Sam Perry), Pandora Colin (Fiona Perry), Nicholas Burns (Giles Perry), Claire Foy (assistente social), Cecilia Noble (Miss Briscoe, assistente social), Dominic Cooper (ator), Jamie Parker (o homem da imobiliária), Tom Klenerman (Tom Perry), George Fenton (o maestro)
Roteiro Alan Bennett
Baseado em suas memórias – e em sua peça de teatro
Fotografia Andrew Dunn
Música George Fenton
Montagem Tariq Anwar
Casting Toby Whale
Produção BBC Films, TriStar Productions.
Cor, 104 min (1h44)
***
É uma história surpreendente. Incrível, mesmo. História para grandes atores. E a imbatível comicidade inglesa. Adorei.
Extremamente bem feito. Realmente não é um filme pra quem não aprecia a forma sutil com que foram tratados temas desconfortáveis, para uma grande parte. Quem não vê o sistema capitalista como a praga moderna criadora da enorme desigualde social, não entende a trama. Gostei muito.