Workaholic absoluto, superdotado, incansável, Steven Spielberg raramente fica dois anos seguidos sem lançar um filme de sua autoria, desde Louca Escapada, de 1974. Ficou entre Lincoln, de 2012, e este Ponte dos Espiões, de 2015.
Valeu a pena esperar. Bridge os Spies é um filmaço, uma obra-prima.
Nada contra quem lança um filme novo a cada ano. Ingmar Bergman e Woody Allen – só para dar dois exemplos de cineastas que fazem filmes a partir de histórias que eles mesmo criam, inventam, bolam – sempre fizeram isso: um filme novo a cada ano, baseado em idéia, em história criada por eles mesmos.
Spielberg, embora seguramente admire tanto o mestre Bergman quanto Woody Allen, não é dessa turma que filma histórias originais, criadas pelo próprioi diretor. Se por um lado perde em termos de originalidade, por outro faz o público ganhar com a amplidão da gama de temas que escolhe para filmar. Em seus filmes “sérios” (deixando de lado as fantasias, as aventuras, os fantásticos), já abordou diversos episódios históricos importantes, como a escravidão (Amistad, 1997), a luta pelo fim da escravidão e a consequente Guerra Civil Americana (Lincoln, 2012), o desembarque aliado na Normandia na Segunda Guerra Mundial (O Resgate do Soldado Ryan, 1998), o holocausto, os campos de concentração do nazismo (A Lista de Schindler, 1993), os campos de refugiados para estrangeiros durante a ocupação de parte da China pelo exército japonês na época da Segunda Guerra (Império do Sol, 1987), os ataques terroristas contra atletas israelenses na Olimpíada de 1972 (Munique, 2005).
Alguns dos filmes citados aí são baseados em histórias reais, fatos históricos – A Lista de Schindler, Amistad, Munique, Lincoln. Este aqui é mais um dessa relação, e avisa isso de cara, num letreiro logo após os logotipos das empresas produtoras. (Como é tradição em todos os filmes de Spielberg, não há créditos iniciais.)
“1957 – O auge da Guerra Fria. Os Estados Unidos e a União Soviética temem a capacidade nuclear um do outro. Ambos os lados usam espiões – e os caçam. Inspirado em eventos reais.”
Nas duas sequências iniciais, ficamos conhecendo os protagonistas da história
É fantástico como o roteiro do filme consegue apresentar os fatos sobre os quais o filme vai tratar de uma forma rápida, concisa, ágil, inteligente e clara, límpida. Isso me impressionou demais – e, ao longo de todo o filme, o talento com que o roteiro foi concebido foi me deixando maravilhado.
Começa com um homem aí de meia idade, um senhor magro, que se veste sempre de terno, de aparência séria, sisuda, fazendo um auto-retrato: está sentado em uma cadeira diante de um cavalete com uma tela, tendo ao lado um espelho.
Ele sai de casa, carregando material de pintura, e é seguido na rua. Vemos seus seguidores – agentes do governo, está na cara. O homem pega o metrô, os agentes o seguem. Ele pára junto de um dos dois rios que banham Nova York, pinta uma paisagem. De um cavalete que havia sido deixado na rua, retira um pequeno objeto de metal, parecido com uma moeda grande. De volta em casa, abrirá aquele objeto, usando uma faca. Lá dentro há um papel pequeno, todo dobradinho, em linguagem cifrada.
O espectador percebe imediatamente que o homem é de fato um espião.
Chegam os agentes do FBI, se apresentam, prendem o homem, fazem rigorosa busca no apartamento. Vemos que o espião consegue fazer desaparecer o papelzinho que havia pego no cavalete na rua ainda naquele dia.
Essa primeira sequência dura aí não mais que cinco minutos.
A segunda sequência não tem absolutamente nada a ver com espionagem. Ela serve para apresentar o protagonista da história, o advogado James Donovan – o papel de Tom Hanks, em uma das melhores interpretações da sua carreira gloriosa. Ele está conversando com um outro advogado, o da parte contrária à sua. Discutem sobre um acidente de trânsito e o seguro a ser pago às vítimas pela empresa seguradora – que é representada pelo escritório de Jim Donovan.
A sequência dura uns dois minutos, e não é preciso mais. O espectador vê com absoluta clareza que aquele sujeito é um advogado danado de bom, que sabe argumentar com precisão, rapidez, inteligência, calma, persuasão.
O bom advogado é escolhido, contra sua vontade, para defender o espião
A terceira sequência é no grande escritório de advocacia Watters & Donovan. Jim Donovan é chamado à sala de Thomas Watters (o papel de Alan Alda) – e fica absolutamente claro que, embora os dois sejam sócios, Thomas Watters, mais velho, mais experiente, é quem manda mais no pedaço. Na sala do sócio mais importante do grande escritório está uma visita, obviamente alguém importante – Lynn Goodnough (John Rue), da Ordem dos Advogados, conforme traduz a legenda, e a tradução não está incorreta. Lynn é um figurão da Bar Association, o correspondente americano à nossa Ordem dos Advogados.
Lynn joga na mesa um maço de papéis – as acusações contra Rudolf Abel (o papel de Mark Rylance), o espião soviético que havíamos visto minutos antes. Lynn e Watters dão a notícia para Jim Donovan: ele vai defender o espião russo. “O acusado não conhece advogado algum. O Tribunal Federal jogou isso nas nossas mãos. A Ordem fez uma votação. Você foi a escolha unânime.”
Jim tenta protestar, diz que faz tempo não mexe com nada penal, é hoje um advogado de companhias seguradoras. Lynn e Waters contra-argumentam: ele tem experiência internacional, trabalhou nos julgamentos de Nuremberg.
A decisão estava tomada. Não havia o que Jim Donovan pudesse fazer.
A idéia é clara: até mesmo um espião russo merece ter um advogado de defesa. Nos Estados Unidos da América, a Justiça é para todos, até mesmo para um espião russo.
Não é um filme patrioteiro. Questiona, põe em xeque a Justiça americana
Poderia vir, a partir daí, um filme de tribunal, mas Ponte dos Espiões não é um filme de tribunal. Tem tribunal, sim, assim como Amistad também tem. Mas, sobretudo, é um filme para questionar até onde vai, a rigor, esse compromisso da sociedade americana com a Justiça. A Justiça é mesmo igual para todos? A Justiça será justa com o espião russo? Ou é mais um jogo de cena, uma encenação para o mundo ver e aplaudir – mas com cartas marcadas, com dados viciados?
Como em Amistad e como em Lincoln, Steven Spielberg vai fundo, aqui, nesses questionamentos de alguns princípios básicos da própria organização do Estado americano.
Ponte dos Espiões não é um filme patrioteiro, como observadores mais apressados ou de manifesta má vontade com tudo que vem dos Estados Unidos poderiam apontar. Vai até em sentido contrário, quando expõe como era ridícula a onda de paranóia espalhada entre a população – o filho de Jim Donovan chega da escola convencido de que os russos estavam chegando no dia seguinte para invadir o país. E quando mostra as reações que vão ficando cada vez mais hostis ao advogado à medida em que o processo vai andando.
Atenção: spoiler. Quem não viu o filme deveria parar por aqui
Ponte dos Espiões é assim como uma peça em dois atos – e há uma grande mudança de clima quando o primeiro ato termina, ali pelo meio dos 142 minutos de duração do filme, e começa o segundo ato.
Gostaria de relatar um pouco sobre essa discussão de princípios que o filme traz – e aí é preciso revelar fatos que se dão lá pela metade da narrativa. O que, a rigor, a rigor, é spoiler. Sugiro, assim, que o eventual leitor que não tiver ainda visto o filme pare de ler por aqui.
O filme dá diversos demonstrações de que o Sistema, o Establishment, queria mesmo que o julgamento de Rudolf Abel no Tribunal Federal em Nova York fosse uma encenação, um jogo de cartas marcadas, de dados viciados.
Era para que um advogado indicado pelo Tribunal fizesse uma defesa que parecesse séria, convincente, aos olhos da opinião pública – e o juiz condenaria o filho da mãe do espião à morte e tudo bem, o mundo pôde observar que nos US of A a Justiça funciona para todos, só que os criminosos, mesmo bem defendidos, são condenados.
Erraram ao dar a tarefa de defender o espião para Jim Donovan.
Na primeira vez em que conversa com Rudolf Abel na prisão, Jim pergunta: – “Bateram em você?”
Abel, que o tempo todo se mostra sempre frio, calmo, controlado, jamais em pânico, diz: – “Não. Conversaram comigo. Foram feitas ofertas.”
Abel não contou nada para as autoridades. Ofereceram dinheiro, vantagens, mas ele se recusou a colaborar com o governo americano. Manteve-se fiel a seu país.
Um maravilhoso diálogo que condensa o tema deste filme esplêndido
Quando o filme está aí com uns 30, 40 minutos, Donovan percebe que está sendo seguido na rua. Tenta se desvencilhar do sujeito, mas não consegue. O cara é um agente da CIA, a central de inteligência, de espionagem; chama-se Hoffman (Scott Shepherd). Vão os dois para um bar.
O diálogo é absolutamente fascinante. Faço questão de ter esse diálogo no site.
Hoffman: – “O seu cara falou?”
Jim: – “Como?”
Hoffman: – “Você esteve com ele. Ele falou? Já disse alguma coisa?”
Jim: – “Nós não estamos tendo essa conversa.”
Hoffman: – “Claro que não.”
Tipo assim: isso aqui é absolutamente confidencial, ninguém pode saber que conversamos.
Mas não era isso que Jim Donovan queria dizer.
Jim: – “Não, eu estou dizendo que nós não estamos tendo essa conversa. Você está me pedindo para violar a confidencialidade de advogado-cliente.”
Hoffman: – “Ah, qual é, advogado!”
Jim: – “Sabe, gostaria que as pessoas parassem de me dizer ‘Ah, qual é, advogado!’. Isso já aconteceu hoje, e não gostei. Um juiz me disse isso duas vezes. Quanto mais eu ouço isso, mais eu não gosto de ouvir isso.”
Hoffman: – “OK, veja, eu entendo a confidencialidade. Eu entendo toda essa coisa legal, e entendo que é assim que você ganha a vida, mas eu estou falando com você sobre outra coisa, a segurança do seu país. Sinto muito se o jeito como eu coloco as coisas ofendem você, mas precisamos saber o que Abel está contando para você. Você está entendendo, Donovan? Não venha me dar uma de escoteiro. Nós não temos livro de regras aqui.”
O agente da CIA fica absolutamente convencido de que o advogado é um comuna
O diálogo é longo – mas é fundamental. Este, repito, é um filme sobre princípios, que discute princípios, através de diálogos maravilhosos. O que há neste diálogo é o coração do filme, a base, a raiz de todo o filme.
Jim: – “Você é o agente Hoffman, certo?”
Hoffman: – “Sim.”
Jim: – “Descendente de alemães.”
Hoffman: – “É, e daí?”
Jim: – “Meu nome é Donovan. Irlandês, dos dois lados. Mãe e pai. Sou irlandês e você é alemão. Mas o que faz de nós americanos? Só uma coisa. Uma. Uma única. O livro de regras. Nós o chamamos de Constituição, e concordamos com as regras, e é isso que nos torna americanos. Isso é tudo o que nos torna americanos. Então não me diga que não há livro de regras, e não me venha com essa cara, seu filho da puta.”
E aí ele se levanta para sair.
O agente Hoffman da CIA está, nesse momento, absolutamente certo de que o advogado que escolheram para o espião comuna era ele também um comuna. O agente Hoffman, assim como o senador Joseph McCarthy, republicano do Wisconsin, via comunas em todos os lugares – até mesmo na Casa Branca. Poucas vezes houve na história dos países civilizados uma era de terror tão apavorante quanto a paranóia anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos nos anos 50, no auge da Guerra Fria, e que este filme maravilhoso de Steven Spielberg expõe para o espectador.
Hoffman faz uma última pergunta para o advogado que ele agora tem certeza de que é no mínimo amigo dos comunas: – “Temos que nos preocupar com você?”
E Jim Donovan responde: – “Não se vocês me deixarem paz para fazer meu trabalho.”
Pilotos recrutados pela CIA vão sobrevoar o território soviético tirando fotos
Neste ano de 2016, Steven Allan Spielberg faz 70 anos. Nunca foi de usar muitos criativóis, fogos de artifício, coisinhas diferentes para chamar a atenção do espectador. Sempre preferiu uma narrativa sóbria – ágil, inteligente, envolvente, mas sóbria, tradicional. Não seria agora, chegando aos 70 anos, que optaria por essa coisa que muito diretor jovem adora.
O roteiro de Ponte dos Espiões, no entanto – sempre brilhante, como já realcei lá acima –, usa repetidas vezes o truque de montar sequências diferentes como se fossem uma coisa só.
E faz isso de maneira perfeita, brilhante.
Esse tipo de montagem realça ainda mais uma coisa em que o roteiro insiste bastante: mostrar ações diferentes em paralelo, simultaneamente.
Por exemplo: estamos no Tribunal Federal do juiz Byers (Dakin Matthews), que julgará Rudolf Abel. O meirinho, aquele funcionário do tribunal, fala a frase padrão, no momento em que o meritíssimo adentra o salão do tribunal: – “Todos de pé!”
Corte rapidíssimo, e na tomada seguinte vemos os alunos de uma escola – a classe do filho de Jim Donovan, garotos aí de uns 9, 10 anos – se levantando quando a professora entra na classe. A professora vai falar do perigo de os russos lançarem bombas atômicas sobre os Estados Unidos.
Logo após o encontro de Jim Donovan com o agente Hoffman da CIA, há uma sequência com um acontecimento em paralelo. É tão distante do que o espectador estava vendo até então que o filme mostra um letreiro para identificar o local. Há filmes que usam sempre esse tipo de coisa; aqui, não – essa identificação é uma das únicas, talvez a única que há. “Base Aérea de Peshawar, Paquistão”.
É daquela base que sairão os aviões U-2, que eram, então, o mais moderno que havia na força aérea americana. Aviões militares capazes de atingir altitude nunca alcançada antes, velocidades absurdas, até então inimagináveis.
Os U-2 seriam usados em missões de espionagem. Sobrevoariam território soviético, tirando fotos – cada um deles carregava diversas poderosíssimas máquinas fotográficas, colocadas viradas para o chão. Abria-se uma comporta, as máquinas eram acionadas pelo piloto, faziam-se centenas, milhares de fotos do território inimigo.
Aqueles pilotos da base no Paquistão haviam sido recrutados pela CIA. Era um trabalho de espionagem – e, portanto, supersecreto. Um agente da CIA, Williams (Michael Gaston), faz este discurso para um grupo de jovens pilotos que haviam sido aprovados em testes promovidos pela CIA:
– “Estamos no meio de uma guerra. No momento, esta guerra não envolve homens em armas – envolve informação. Vocês vão coletar informação. Vocês estarão juntando inteligência sobre o inimigo. A inteligência que vocês conseguirem juntar pode nos colocar à frente da União Soviética no domínio termonuclear. Para o público de fora, inclusive sua mulher ou sua mãe ou sua namorada ou o bom Deus lá em cima, sua missão não existe. Se ela não existe, você não existe. Você não pode ser abatido. Você não pode ser capturado.”
Vale a pena igualar-se ao inimigo que se quer combater?
A coisa de não poder ser capturado é dita com insistência. Em um outro momento, durante o treinamento na base aérea no Paquistão, agentes da CIA vão detalhar para os pilotos como eles devem proceder caso seu avião viesse a ser atingido. Se acontecesse o pior, se o avião caisse, se o piloto tivesse sobrevivido, e houvesse a possibilidade de ser preso pelos russos, deveria se matar, usando um veneno poderosíssimo – ironicamente, disponível numa moeda semelhante à usada por Rudolf Abel para se comunicar com seus chefes soviéticos.
Sequências com os aviadores dos U-2 aparecerão entremeando o que acontece em Nova York.
Jim Donovan apresenta petições ao juiz Byers. Demonstra que houve ilegalidades na busca que os agentes do FBI fizeram na casa de Abel, no momento da prisão, e essas ilegalidades tornam inválido no julgamento o que se descobriu e está sendo usado como provas pela promotoria.
O juiz Byers fica possesso: – “Esta é uma batalha pela civilização. Esse espião russo veio aqui ameaçar nosso estilo de vida.”
Esse juiz absolutamente determinado a condenar o espião russo à morte, não importam provas, moções, pedidos, ilegalidades, não importa nada, me fez lembrar, na hora, enquanto via o filme, do juiz safado de um outro filme que também coloca em discussão a tão propalada Justiça americana, também um relato sobre fatos reais – Sacco e Vanzetti (1971), do italiano Giuliano Montaldo. Jamais vou esquecer a frase do advogado que defende os dois imigrantes italianos acusados injustamente de um crime, quando percebe que não adiantam os argumentos, as provas, os testemunhos, não adianta nada, o juiz está ali para condenar os carcamanos. O advogado, interpretado por Milo O’Shea, um americano descendente de irlandeses como Jim Donovan, diz: “Eu nunca mais porei os pés num tribunal”.
A questão que Ponte dos Espiões coloca é a seguinte: vale a pena reagir com métodos não democráticos a quem ameaça a democracia? Vale a pena igualar-se ao inimigo que se quer combater?
Essa é uma questão básica, de princípios, que sempre vem à tona em momentos de grande tensão. Foi a questão que gente séria levantou nos Estados Unidos após os atentados terroristas do 11 do 9, diante dos relatos sobre tortura de prisioneiros.
O advogado faz questionamentos na Suprema Corte, os aviões voam sobre a URSS
Os roteiristas botaram na boca de Jim Donovan uma síntese brilhante dessa questão. Tom Hanks está excepcional na sequência em que ele faz esses questionamentos na Suprema Corte dos Estados Unidos – a mesma em que o personagem interpretado por Anthony Hopkins faz um belíssimo libelo pela liberdade e pela democracia em Amistad.
O roteiro aqui usa e abusa da montagem de tomadas de fatos absolutamente distintos um do outro. Vemos Jim Donovan diante dos nove juízes da Suprema Corte; corta, e vemos o treinamento dos pilotos dos U-2 se preparando para os vôos de espionagem sobre território soviético. Suprema Corte, pilotos dos U-2, Suprema Corte, pilotos dos U-2. É magistral o uso do recurso.
Jim Donovan vai falando de Rudolf Abel como um guerreiro, um soldado estrangeiro que não se acovardou, que não traiu seu país, que se manteve fiel a seus ideais. E aí faz uma série de perguntas que vão ao âmago da questão vale a pena reagir a quem ameaça a democracia com métodos não democráticos:
– “Não deveríamos, ao dar a ele o total benefício dos direitos que definem nosso sistema de governo, mostrar a este homem quem somos nós? (E ele repete as últimas palavras. O Jim Donovan do filme volta e meia se repete para enfatizar o que quer dizer.) Quem somos nós… Esta não é a arma mais importante que temos nesta Guerra Fria? Vamos apoiar a nossa causa com menos firmeza do que ele defende a dele?”
O discurso acaba, corte rápido, vemos o U-2 voando.
É o avião pilotado por Francis Gary Powers (Austin Stowell), que, a essa altura, o espectador já conhece bem, pois já havia aparecido em várias sequências.
Ponte dos Espiões é um filme de palavras, mas Spielberg é gênio com imagens, e a sequência em que o U-2 pilotado por Gary Powers é atingido e cai – enquanto ele consegue, com grande dificuldade, se ejetar e abrir seu pára-quedas – é de uma maestria visual impressionante.
O piloto Gary Powers e os aviões U-2, protagonistas de evento importantíssimo
Impressionante como funciona a memória da gente. Assim que surgiu o nome Gary Powers, e depois, quando surgiu a primeira sequência na base aérea do Paquistão, eu me lembrei da história da queda do U-2 em território soviético, e o fato de o piloto espião ter sido capturado pelos russos.
Por que raios eu lembrava disso?
Aconteceu em 1960, foi faladíssimo; devo ter ouvido falar, mas, diacho, tinha 10 anos, apenas. Li sobre o caso em algum lugar? Vi algum filme que fala dessa história? Algum professor falou disso em aula de História, de Atualidades? Bem, não interessa – o fato é que eu me lembrava do nome Gary Powers, do nome U-2, da queda do avião, do americano que foi feito prisioneiro. Foi um dos eventos mais marcantes da Guerra Fria.
Bem, o nome U-2 é algo bem marcante. O nome é bastante conhecido, mesmo por quem nasceu em meados dos anos 70, como minha filha, que é apaixonada pela banda irlandesa. Irlandesa como Jim Donovan.
A queda do U-2 acontece, creio, bem no meio filme. É o momento de transição do primeiro ato – um ato sobre questões envolvendo princípios, Justiça, tribunal – para o segundo ato, aí, então, uma história de espiões no epicentro da espionagem mundial durante a Guerra Fria, a Berlim de 1960, quando se começava a erguer o Muro.
São dois atos muitíssimo bem encenados. É um filme de fato extraordinário.
Não tinha lido nada sobre o filme além de títulos de matérias (não dá para deixar de ler títulos, quando a gente folheia os jornais ou passa pelos portais de notícias), e então não sabia quem eram os autores daquele roteiro que a cada momento ia me encantando mais e mais. Levei um grande susto ao ver, nos créditos finais, que o roteiro é assinado pelos irmãos Coen.
A primeira vez em que os irmãos Coen colaboram com Steven Spielberg
É, com toda a certeza, a primeira vez que os irmãos Ethan e Joel Coen trabalham junto com Steven Spielberg. Ou eu estaria enganado? Acho que é, sim, a primeira vez.
O roteiro é assinado assim: Matt Charman e Ethan Coen & Joel Coen. Isso significa que primeiro Matt Charman escreveu o roteiro, e em seguida o texto foi entregue à dupla Ethan & Joel Coen, que então deu a forma final. O & indica um time, um trabalho em equipe. O “e”, o “and”, indica trabalho separado – um fez, em seguida outra pessoa ou outro grupo pegou.
Fiquei pensando que este deve ser o único roteiro saído das quatro mãos dos Coen que é sério o tempo todo, que não tem ironia, sacanagem, piada, gozação, pilhéria, sarcasmo.
Mas a verdade é que tem umas coisinhas. Eles jamais conseguiriam fazer algo sério o tempo todo.
Assim, por exemplo, ao negociar com alguém na embaixada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no setor oriental de Berlim, pertencente portanto à República Democrática da Alemanha, Jim Donovan fala uma frase do tipo: – “Os nomes dos seus países são tão grandes…”
Num momento de extrema seriedade, em que ele está tendo uma conversa terrível com Wolfgang Vogel, uma figura proeminente da RDA, embora sem um cargo forma de ministro ou coisa parecida, Vogel se refere à URSS usando as palavras por extenso. Jim Donovan sai-se com o seguinte: “Não dá pra gente chamá-los de russos e ganhar tempo?”
Típico dos irmãos Coen.
A gracinha vem fora de hora. A frase que Vogel fala é: “Vocês nos tratam como patetas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”. E em seguida faz um discurso irado contra os soviéticos, dizendo, entre outras coisas, que os soviéticos proibiram os alemães orientais de reconstruírem Berlim Oriental.
Esse Wolfgang Vogel é interpretado grande ator alemão Sebastian Koch, de A Vida dos Outros (2006), Operação Valkiria (2008), Desconhecido (2011), O Fim de Semana (2012).
A interpretação de Mark Rylance como o espião soviético é excepcional
A página de Trivia do IMDb sobre Ponte dos Espiões tem 45 itens. Nem li nada que tem lá, ainda. Nem as matérias dos jornais, que guardei para ler depois de ver o filme. Mas esta anotação já está imensa, infinita.
Não dá para deixar de fazer dois registros. Um é que esta é a primeira vez em muitos, muitos, muitos anos que a trilha de um filme dirigido por Steven Spielberg não é assinada por John Williams. Se houve um rompimento, uma briga, uma desavença, não sei, mas é algo absolutamente notável.
A trilha coube a Thomas Newman, o autor de dezenas de trilhas belíssimas, como, para citar umas poucas, as de Tomates Verdes Fritos (1991), Tabu/Towelhhead (2007), Foi Apenas um Sonho/Revolutionary Road (2008), Histórias Cruzadas/The Help (2011), O Exótico Hotel Maringold (2011).
O diretor de fotografia é, mais uma vez, o polonês Janusz Kaminski, velho colaborador de Spielberg, para quem trabalhou em praticamente todos os filmes a partir de A Lista de Schindler.
Um dos elementos mais admiráveis deste filme em tudo por tudo admirável é o desempenho de Mark Rylance como o espião Rudolf Abel.
Ele não dá um sorriso, ao longo do filme inteiro. Exibe um tique facial, e está sempre sério, e calmo, controlado. Por três vezes, ao longo do filme, o advogado que o defende pergunta se ele não está preocupado, e ele responde apenas, sem nada que possa parecer um sorriso: – “Would it help?” Ajudaria? Seria bom?
Interpreta um espião russo pego com a mão na botija – mas creio que nem o mais patriota e anticomunista dos americanos teria ódio do personagem. É impossível o espectador não acabar simpatizando com Rudolf Abel ao longo do filme.
Mark Rylance nasceu no interior da Inglaterra, em 1960. É considerado um dos melhores atores do teatro inglês de sua geração. Já ganhou 2 prêmios Olivier e 3 prêmios Tony – respectivamente, o Oscar do teatro inglês e o Oscar do teatro americano. À sua coleção, agregou agora o Oscar de ator coadjuvante.
Foi o único Oscar que Ponte dos Espiões levou. Teve seis indicações, mas não levou nas categorias de melhor filme, melhor roteiro original, melhor trilha sonora original, melhor mixagem de som e melhor direção de arte.
Também ao Bafta o filme teve várias indicações – entre eles filme, roteiro, fotografia e trilha sonora –, mas só Mark Rylance levou o de ator coadjuvante.
A interpretação dele de fato é uma cereja especial em cima de um bolo especialmente delicioso.
Anotação em março de 2016
Ponte dos Espiões/Bridge of Spies
De Steven Spielberg, EUA-Alemanha-Índia, 2015.
Com Tom Hanks (James Donovan), Mark Rylance (Rudolf Abel)
e Amy Ryan (Mary), Alan Alda (Thomas Watters), Sebastian Koch (Vogel), Billy Magnussen (Doug Forrester, o assistente de Donovan), Domenick Lombardozzi (agente Blasco), Victor Verhaeghe (agente Gamber), Brian Hutchison (agente do FBI), Joshua Harto (Bates), Noah Schnapp (Roger Donovan), Eve Hewson (Carol Donovan), Austin Stowell (Francis Gary Powers), Dakin Matthews (juiz Byers), Peter McRobbie (Allen Dulles), Will Rogers (Frederic Pryor), Nadja Bobyleva (Katje), John Rue (Lynn Goodnough, da Bar Association), Scott Shepherd (Hoffman, agente da CIA), Michael Gaston (Williams, agente da CIA)
Roteiro Matt Charman e Ethan Coen & Joel Coen
Fotografia Janusz Kaminski
Música Thomas Newman
Montagem Michael Kahn
Casting Ellen Lewis
Produção Amblin Entertainment, DreamWorks SKG, Fox 2000 Pictures, Marc Platt Productions, Participant Media, Reliance Entertainment, Studio Babelsberg, TSG Entertainment
Cor, 142 min
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Infelizmente demorei muito a ver esse filme, que é excelente, com atuações impecáveis, o espião passa tanta “tranquilidade” que senti até que ele não devia ser punido, tanto que a última votação foi muito apertada (5×4), a prova que ele era um espião, diria eu de elite . O Tom Hanks é falar mais do mesmo, é um monstro . Verei o filme outras vezes e até o momento vi apenas dublado, senti falta da tradução dos diálogos em russo e alemão, há versões do filme com essas traduções ou isso ficou apenas como pano de fundo e apenas para causar curiosidade ? Se foi para isso, confesso que fiquei curioso, mas olhando bem, acho que não traduzir serviu até para mostrar a dificuldade do advogado num local hostil, com pessoas hostis e idiomas pra lá de complicados . Filmaço, que venham mais filmes assim, baseados em grandes histórias, são belas homenagens a quem viveu de verdade a história e a nós que somos premiados por recebê-la depois . Parabéns pelo texto . Grande abraço .