Boomerang!, de 1947, foi o terceiro filme de Elia Kazan. Ele havia deixado Nova York e ido para Hollywood pouco antes, e chegou ao cinema já com imensa fama e reconhecimento como diretor de teatro na Broadway e um dos fundadores do Actors Studio.
Em 1945, lançou Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn, que teve duas indicações ao Oscar e levou o prêmio de melhor ator coadjuvante para James Dunn. Ainda em 1947, fez Mar Verde/The Sea of Grass, o único western da carreira do casal Spencer Tracy-Katharine Hepburn e um dos únicos filmes iniciais de Kazan que não recebeu indicações ao maior prêmio da indústria cinematográfica americana. Boomerang! foi indicado ao Oscar de melhor roteiro.
Passaram-se 68 anos, e Boomerang! permanece hoje um filme absolutamente impressionante, forte, poderoso.
Não dá, simplesmente não dá para imaginar o impacto que deve ter tido na época em que foi feito.
É um grande filme – mas é também um panfleto, um manifesto, um ensaio, um ato político-social. Boomerang! denuncia e ataca a corrupção, os maus políticos, a imprensa posta a serviço de interesses políticos. Denuncia e condena até mesmo a pressão popular sobre os policiais que investigam um crime – porque, pressionados, bombardeados pela opinião pública, eles poderão ser tentados a achar logo um bode expiatório para responsabilizar pelo crime, mesmo que haja indícios de que ele é inocente.
Mostra escancaradamente que a Justiça pode cometer erros inadmissíveis.
E defende a ética, a honestidade – sem o que não existe civilização, e caímos na barbárie.
É um drama sério, pesado, denso. Faz lembrar O Homem Errado, o filme mais sério e pesado da carreira de Alfred Hitchcock, que seria lançado nove anos depois, em 1956.
Como O Homem Errado, Boomerang! conta uma história real – e faz questão absoluta de dizer isso solenemente para o espectador.
O filme faz lembrar também outra obra excepcional do mesmo período, 12 Homens e uma Sentença/12 Angry Man, que Sidney Lumet lançaria em 1957. Falo dele mais adiante.
Um letreiro e a voz de um narrador enfatizam que é uma história real
O filme abre com este letreiro, mostrado logo após os rápidos créditos iniciais:
– “A história que você está para testemunhar é baseada em fatos reais. Em busca de maior autenticidade, todas as cenas, tanto as de exteriores quanto de interiores, foram fotografadas nos locais originais, e foram usados tantos personagens reais quando possível.”
É uma afirmação forte, extremamente significativa. A voz em off do narrador, que o espectador ouve em seguida, relativiza um pouco aquela afirmação que acabava de ser feita por escrito.
A primeira tomada que vemos é uma panorâmica do centro de uma cidade qualquer. A câmara vai se virando da esquerda para a direita, suavemente, lentamente, até completar um giro de 360 graus, enquanto o narrador – com uma voz um tanto afetada, como costumavam ser as vozes dos locutores de rádio nos anos 40, 50 – vai dizendo o seguinte:
– “Um brincalhão uma vez disse que depois de Nova York tudo é Connecticut. O intuito foi brincalhão, mas, como muitos sarcasmos, contém um pouco de verdade. As cidades pequenas que formam a espinha dorsal da nação estão todas no mesmo nível. Por isso não faz muita diferença termos trazido vocês para esta cidade específica de Connecticut.”
Lembrando: Connecticut é um Estado ao Norte da cidade de Nova York, bem próximo dela; como há confortável rede ferroviária ligando as pequenas cidades de Connecticut ao centro da metrópole, muita gente trabalha em Manhattan e vive em casas em condomínios no Estado vizinho.
O narrador prossegue, enquanto a câmara continua girando para mostrar o centro agitado da cidade interiorana em 360 graus:
– “Os fatos básicos de nossa história ocorreram, na verdade, numa comunidade de Connecticut bem parecida com esta. Mas poderiam ter acontecido em qualquer lugar. No Oregon, ou Mississipi, na Georgia, ou Utah. Vocês podem ter outros nomes para as ruas de suas cidades, mas quer as chamem de Rua Principal, Avenida Central ou Norte, elas não são muito diferentes dessas. E as pessoas… Bem, talvez se vistam de um jeito um pouco diferente, ou falem de um jeito um pouco diferente, mas no fundo são iguais ao seu vizinho do lado, e vocês provavelmente conhecem todos eles. O policial que faz a ronda, o menino que vende o jornal, os lojistas, os advogados, pessoas boas, pessoas ruins.”
E só aqui há o primeiro corte, depois da longa tomada panorâmica. Vemos agora um relógio na Main Street que marca 7h30. Já está escuro. Vemos tomadas da Main Street no início de noite. O narrador prossegue:
– “E, se a sua cidade tiver sorte, vocês podem ter um ministro tão conhecido quanto o reverendo Lambert é aqui. Um homem querido por todos.”
O reverendo Lambert (Wyrley Birch), um velhinho com cara extremamente simpática, está andando pela Main Street, cumprimentando, sorridente, cada um de seus paroquianos.
Não chegamos nem a 5 minutos de filme, e de repente um homem de sobretudo e chapéu chega por trás do reverendo Lambert e dá um tiro na sua cabeça.
O assassinato do reverendo deixa a cidade em estado de choque
O roteiro de Boomerang!, como já foi dito, foi indicado ao Oscar. Concorreu na categoria de roteiro adaptado com outro filme do próprio Kazan, A Luz é para Todos/Gentleman’s Agreement, sobre o anti-semitismo na Nova York do pós-guerra, de autoria de Moss Hart. Quem levou o prêmio foi George Seaton, por De Ilusão Também se Vive/Miracle on 34th Street, aquele do Papai Noel aparecendo na maior metrópole americana e indo parar num tribunal.
Não importa que não tenha levado o prêmio: o roteiro de Boomerang! é um brilho. Foi escrito por Richard Murphy (1912-1993), autor dos roteiros de diversos bons filmes, entre eles Pânico nas Ruas (1950), também de Elia Kazan, Ratos do Deserto/The Desert Rats (1953), Lança Partida/Broken Lance (1954) e Estranha Compulsão/Compulsion (1959).
O espectador vê surgir de repente o revólver na mão de um homem mais alto que o reverendo Lambert. Um tiro na cabeça, por trás, à queima-roupa. O religioso cai no chão, o assassino corre. Diversas pessoas que estavam por ali ouviram o tiro e vão se aproximar do local em que o reverendo está caído no chão. Um homem chega a correr atrás do assassino, mas este consegue correr mais rapidamente e desaparece.
Rápidas tomadas mostram então as pessoas da cidade recebendo a notícia, ao lerem os jornais com a grande manchete – “Ministro assassinado na Rua Principal”.
Admiradores do reverendo lotam a igreja no serviço religioso em homenagem a ele.
O narrador continua falando, explicando as atividades do reverendo Lambert, como, por exemplo, a participação em um conselho municipal que está para aprovar a construção de parques, playgrounds e centros recreativos. Vemos uma reunião desse conselho, de que participam várias figuras importantes da cidade – o banqueiro Paul Harris (interpretado por Ed Begley, em sua estréia no cinema), o próprio reverendo, uma bela mulher que é a presidente do grupo, Mrs. Harvey (Jane Wyatt).
Corta, e vemos o reverendo conversando com um paroquiano, depois com outro. O narrador diz:
– “Seu trabalho diário era com as pessoas de sua paróquia, e, principalmente aqueles que buscavam seus conselhos e conforto. Como era um homem de Deus, seu trabalho às vezes o levava a lugares estranhos e secretos da alma dos homens.”
Vemos o reverendo tendo uma conversa dura com um homem chamado Jim (Philip Coolidge). O reverendo fala abertamente: – “Mesmo que eu quisesse perdoá-lo, não conseguiria. Não está em minhas mãos. Jim, você é um homem doente. Não posso ajudar você. Um sanatório, talvez.”
Sob forte pressão, a polícia acaba encontrando um suspeito
A polícia da cidade é chefiada por Robinson (o papel de Lee J. Cobb), um tira experiente, tarimbado e, conforme veremos ao longo do filme, honesto, íntegro. É também honesto, íntegro, trabalhador, seu subordinado direto, o tenente White, interpretado por Karl Malden – cujo nome, no entanto, não aparece hora alguma no filme. (Karl Malden voltaria a trabalhar com Elia Kazan em Uma Rua Chamada Pecado, de 1951, Sindicato de Ladrões/On the Waterfront, de 1954, e Boneca de Carne/Baby Doll, de 1956).
O chefe Robinson põe todos os seus homens no caso do assassinato do reverendo Lambert, mas os dias passam e a polícia não acha pista alguma. As pessoas da comunidade pressionam a polícia, cobram ação, cobram a prisão de algum suspeito que seja.
O jornal de oposição vai pegando pesado, criticando a incompetência da polícia. É uma briga política: o dono do jornal, um ricaço chamado Wade (Taylor Holmes), já foi o manda-chuva político da cidade, mas, mais recentemente, seu grupo havia sido alijado do poder por um punhado de pessoas reformistas.
O adjetivo é repetido várias vezes ao longo do filme; não se usa hora alguma o nome dos dois grandes partidos que se alternam no poder nos Estados Unidos, os democratas e os republicanos; fala-se em grupo político de velhos métodos – os corruptos – e em reformistas, estes ainda não dominados pela corrupção. Ainda.
O jornal incita os moradores a cobrarem ação da polícia. O prefeito e os novos líderes locais passam a pressionar o promotor público, Henry Harvey – o papel de Dana Andrews, então no auge da fama, depois dos grandes sucessos de Laura (1944), Anjo ou Demônio? (1945), Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946).
Harvey é casado com a bela mulher que preside o conselho municipal encarregado de tocar a construção do centro comunitário. Parece ser um homem de bem. Pressionado pelos sujeitos que estão acima dele, pressiona o chefe Robinson. Robinson está prestes a se demitir do cargo, mas o próprio Harvey o convence a permanecer onde está.
Os chefões falam em chamar as autoridades estaduais, ou até mesmo o FBI. O promotor Harvey argumenta que a polícia local é competente. Os chefões dão um prazo de 15 dias – se a polícia não conseguir resultado nesse tempo, eles chamarão o FBI.
Um suspeito é preso longe dali, em Ohio – mas ele tem uma arma similar à usada pelo assassino do reverendo. Chama-se John Waldron (o papel de um Arthur Kennedy bem jovem), e havia passado algumas semanas naquela cidade, justamente na época em que o reverendo foi morto.
John Waldron havia lutado no Pacífico, na Segunda Guerra Mundial. Ao voltar para casa, não encontrou emprego. Havia passado por aquela cidade à procura de trabalho.
É feito aquele procedimento de identificação de suspeitos – vários homens colocados diante de uma parede, as testemunhas observam, os policiais perguntam se elas reconhecem alguém. As testemunhas fazem a identificação positiva.
Mais ainda: o exame de balística comprova que a bala que matou o reverendo saiu daquele revólver.
Após muitas horas de interrogatório exaustivo, acachapante, uma óbvia tortura mental, Waldron confessa.
Mas o promotor Harvey tem dúvidas.
Haverá uma tentativa de fazer Harvey deixar as dúvidas de lado em troca da garantia de que ele seria o próximo candidato ao governo do Estado.
A mosca azul do poder é extremamente tentadora.
O filme apresenta vários perigos que rondam a vida em sociedade
Boomerang! fala de vários perigos, de ameaças ao esforço das pessoas de bem para viver civilizadamente em sociedade. O apego ao poder é só um deles.
Há, sempre, o perigo da corrupção. A cada momento, em cada esquina, em cada quadra, a cada passo que você dá na vida, há a atração da corrupção, do jeito errado de viver a vida, de ganhar dinheiro sujo. Outro dos melhores cineastas da história, o indiano Satyajit Ray, dedicou-se a discutir sobre essa praga em alguns de seus belos filmes. Elia Kazan mostra aqui como os corruptores estão sempre à espreita.
A tortura.
Enquanto o interrogatório do suspeito, John Waldron, se prolonga, um policial sugere ao chefe Robinson que há meios mais rápidos de fazer um prisioneiro confessar.
Sempre há quem defenda a tortura em nome de alguma causa maior, a verdade, a segurança nacional, o que for.
O mau jornalismo, o mau uso do jornalismo para proveito de um determinado grupo.
A pressão popular para que a polícia encontre o mais rapidamente possível um culpado – até mesmo isso pode ser uma ameaça à forma civilizada de se viver.
A possibilidade – que sempre existe – de uma testemunha de uma cena se enganar, cometer equívoco.
A possibilidade até mesmo de que um teste de laboratório apresente um resultado que não é o exato.
A possibilidade – perigosíssima, mas sempre presente – de que a Justiça cometa erros.
O filme de Kazan repassa todos esses perigos de maneira límpida, magistral.
No que se refere aos sempre possíveis erros da Justiça, Boomerang! me fez lembrar bastante de 12 Homens e uma Sentença, o primeiro longa-metragem de Sidney Lumet. No filme – inteiramente passado na sala em que se reúnem os jurados para decidir o veredito de um caso de assassinato –, 11 dos 12 membros do júri estão convictos de que o acusado é culpado. Mas, naquele Estado, para haver condenação, é necessária unanimidade. E o único jurado que acredita que é possível que o acusado seja inocente – interpretado, brilhantemente, por Henry Fonda – vai, pouco a pouco, mudando a opinião de cada um dos seus colegas.
São dois belos filmes sobre Justiça, sistema judiciário, e a possibilidade forte de haver erros – às vezes irreparáveis.
Por coincidência, dois atores de Boomerang! trabalham também em 12 Homens e uma Sentença: Lee J. Cobb e Ed Begley.
O promotor do caso real que inspirou o filme virou ministro da Justiça
O caso real contado em Boomerang! foi relatado em um texto assinado por Anthony Abbot numa edição de dezembro de 1945 da revista Reader’s Digest; nos créditos do filme, se diz que o roteiro foi baseado nessa reportagem.
Anthony Abbot era o pseudônimo de Charles Fulton Oursler, jornalista, dramaturgo e novelista. Foi o autor, entre muitos outros títulos, vários deles levados ao cinema, da peça All the King’s Men, que virou um grande clássico do cinema político, dirigido por Robert Rossen, em 1949. No Brasil, o filme se chamou A Grande Ilusão – o mesmo título de outro classicão, La Grande Illusion, de Jean Renoir, de 1937.
O IMDb informa que o caso real no qual o filme se baseia aconteceu no dia 4 de fevereiro de 1924, na Main Street da cidade de Bridgeport, Connecticut. Exatamente como mostra o filme, um religioso foi morto com tiro à queima roupa. Era um padre católico, Hubert Dahme – no filme, alterou-se para um pastor protestante. Depois de uma grande caçada policial, foi preso um veterano da Primeira Guerra, então vivendo como um sem-teto, chamado Harold Israel. Foi identificado por testemunhas e ligado ao crime por outras evidências; chegou a confessar, mas depois passou a negar ter matado o padre.
O promotor designado para o caso, no entanto, teve dúvidas, e acabou descartando as provas apresentadas pela polícia, insistindo na tese de que as evidências eram circunstanciais, e não havia prova concreta contra o acusado.
Consta dos autos do processo a seguinte afirmação do promotor do caso real: “É tão importante, para o promotor público, usar seus grandes poderes para proteger o inocente quanto para condenar o culpado.”
No filme, a câmara se aproxima de um livro de Direito – o Código de Ética dos Advogados – que o promotor Harvey segura, e o espectador vê a seguinte a frase: “O dever primário de um advogado exercendo o cargo de promotor público não é condenar, mas garantir que seja feita justiça”.
No caso real ocorrido em 1924, o acusado foi inocentado – e jamais se descobriu o culpado. É um dos grandes crimes jamais solucionados da história americana, como o da Dália Negra, que James Ellroy abordou em seu romance de sucesso e seria filmado em 2006 por Brian De Palma.
Como na vida real, no filme também não se encontra o verdadeiro assassino. O crime fica insolúvel. Mas o roteirista Richard Murphy se permitiu uma liberdade, uma, digamos assim, licença poética: ele aponta para o espectador quem é o assassino do reverendo Lambert. O espectador desconfia dele, e o narrador dá todas as indicações de que, sim, aquele ali é o verdadeiro assassino. O espectador fica sabendo quem é – mas ele nunca é pego pela polícia.
Ao final do filme, um letreiro informa que o promotor ali chamado de Henry L. Harvey chamava-se, na vida real, Homer Cummings – e ele chegou a ser o Attorney General (o equivalente a ministro da Justiça) do presidente Franklin D. Roosevelt.
Pauline Kael, surpreendentemente, mostra grande respeito pelo filme
Leonard Maltin deu 3.5 em 4: “O assassinato de um ministro traz a rápida prisão de um homem inocente; o promotor público vai à caça dos fatos reais. Drama brilhante em todos os aspectos. O roteiro tenso de Richard Murphy, tirado do artigo de Anthony Abbot ‘The Perfect Case’, é baseado em incidente real.”
Pauline Kael, a língua mais ferina de toda a História da crítica cinematográfica, escreveu um texto surpreendentemente pouco irônico, nada agressivo e muito informativo sobre o filme. Para quem conhece um pouco do estilo da primeira-dama da crítica americana, isso significa que ela tem imenso respeito pelo filme.
Diz que Elia Kazan ainda era um diretor novato quando fez “este filme de crime modesto realizado de maneira limpa, bem simplista”. Informa que a história se baseia “num episódio da carreira de Homer Cummings, que foi o primeiro Attorney General de Roosevelt”. Informa ainda que o filme foi rodado em Stamford, embora os fatos reais tenham se passado em Bridgeport. Enumera os atores, diz que amadores também participaram do elenco, assim como Joe Kazan, “o homem mais tarde celebrado em America, America”.
Joe Kazan – que interpreta Paul Lukash, uma das testemunhas do crime – é tio do cineasta. America, America, no Brasil Terra do Sonho Distante (1963) se baseia na história real de Joe Kazan, e mostra como foi sua juventude na Grécia, até o momento em que chega aos Estados Unidos.
Se Pauline Kael surpreende por não ser irônica e dar muita informação – duas coisas pouco usuais em seus textos -, o Guide des Films de Jean Tulard surpreende pelo tamanho. É dos mais longos verbetes que já vi no guia mastodôntico, de três volumes, mais de 3.300 páginas com 15 mil filmes.
O texto diz que este terceiro filme de Kazan é o melhor que ele fez nos anos 40, e é o que mais se aproxima de seus filmes seguintes. Em parte, o filme se deve a Louis de Rochemont, o produtor, conhecido pelo seu gosto pelo realismo; os filmes que ele produziu se distinguem por seu aspecto documental, e ele está na origem de um certo neo-realismo presente no cinema americano no pós-guerra. Kazan se aproveitou desse gosto do produtor pelo realismo, e misturou a excelentes atores muitas pessoas comuns, não atores, da cidade de Stamford. Por outra parte, “o roteiro é interessante, oferecendo de passagem a ocasião de denunciar a corrupção municipal, a exploração política de um caso policial pela imprensa, a negação da justiça, antes de concluir com um final ambíguo e intrigante”.
E conclui dizendo que, para os conhecedores, é bom apontar que participa do elenco Joe Kazan, o tio de Elia, cuja história seria contada mais tarde em America, America. E que os mais observadores poderão reparar que Arthur Miller aparece entre os figurantes.
Sim: o grande dramaturgo americano, que mais tarde viria a ser o terceiro Senhor Marilyn Monroe, depois de James Dougherty e Joe DiMaggio, faz uma ponta como um dos homens colocados lado a lado junto do suspeito para que as testemunhas façam a identificação.
Eram amigos, o grande diretor de atores e o dramaturgo. Dois anos depois do lançamento de Boomerang!, Kazan encenaria A Morte de um Caixeiro Viajante na Broadway, com dois dos atores que estão no filme: Lee J. Cobb e Arthur Kennedy.
O título que o filme recebeu no Brasil é absurdo, incompreensível
Este texto já está absurdamente longo, mas ainda quero mencionar que Boomerang! é tido como um filme noir. O IMDb diz “crime, drama, film noir”. O filme está na caixa Film Noir 2, lançado pela Versátil, e está também no livro do estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos. O Outro Lado da Noite: Filme Noir.
OK, então ele deve ser mesmo um filme noir. Quem sou eu para ir contra tanta gente douta. Mas deixo meu registro: para mim, Boomerang! não é um filme noir. Foi feito na época dos clássicos do gênero, e a fotografia em glorioso preto-e-branco – assinada por Norbert Brodine – realça fortemente, como nos filmes do gênero, as sombras, o chiaroscuro. Mas é só. Não tem mulher fatal, não tem pato, não tem detetive solitário que apanha feito jumento, não há um tom de cinismo e descrença generalizada – elementos fundamentais do gênero. Sim, tem corrupção, mas se todo filme que falar de corrupção for noir, então pelo menos metade dos filmes seria noir.
Um último registro, imprescindível: no Brasil, Boomerang! teve o título incrível, absurdo, inteiramente sem sentido, de O Justiceiro. Vá lá se saber por quê. Há muito mais absurdos na arte de retitular filmes do que sonha a nossa vã filosofia, Horácio!
Anotação em outubro de 2015
O Justiceiro/Boomerang!
De Elia Kazan, EUA, 1947.
Com Dana Andrews (Henry L. Harvey), Jane Wyatt (Mrs. Harvey), Lee J. Cobb (chefe de polícia Robinson), Arthur Kennedy (John Waldron, o acusado), Sam Levene (Woods, o editorialista do jornal de oposição), Taylor Holmes (Wade, o politico dono do jornal de oposição), Robert Keith (McCreery), Ed Begley (Paul Harris, o banqueiro), Cara Williams (Irene Nelson, a mulher do café), Philip Coolidge (Jim Crossman, o homem doente da cabeça), Lester Lonergan (Cary), Barry Kelley (Sgt. Dugan), Richard Garrick (Mr. Rogers), Karl Malden (tenente White), Ben Lackland (James), Helen Carew (Annie), Wyrley Birch (reverendo Lambert), John Stearns (reverendo Gardiner), Guy Thomajan (Cartucci), Lucia Backus Seger (Mrs. Lukash), Dudley Sadler (Dr. Rainsford), Walter Greaza (o prefeito Swayze), Helen Hatch (Miss Manion), Joe Kazan (Mr. Lukash), Ida McGuire (Miss Roberts), George Petrie (O’Shea), John Carmody (Callahan), Clay Clement (juiz Tate)
Roteiro Richard Murphy
Baseado no artigo “The Perfect Case”, de Anthony Abbott (pseudônimo de Charles Fulton Oursler), publicado na revista Reader’s Digest, em 1945.
Fotografia Norbert Brodine
Música David Buttolph
Montagem Harmon Jones
Produção Louis de Rochemont, 20th Century Fox. DVD Versátil.
P&B, 88 min
***1/2
Título na França: Boomerang. Em Portugal: Crime Sem Castigo.
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