O Woody Allen de 2003 fala sobre a amizade entre um homem maduro, na faixa dos 60 anos, e um rapaz bem jovem, aí de uns 24. O rapaz, Jerry Falk, está começando a carreira como escritor de piadas, esquetes cômicos, falas para gente da stand-by comedy – e leva jeito. O velho, David Dobel, também é um iniciante nesse ofício, embora seja vivido, experiente, e culto; é um professor em uma escola pública.
O rapaz é interpretado por Jason Biggs, que estava então com 25 anos, e, naquele mesmo ano de 2003 estrelaria o volume 3 da série American Pie, aquela de humor para adolescentes, cheia de piadas grosseiras, vulgares, ginasianas. O velho, claro, é interpretado pelo próprio Woody Allen.
Consta – está no IMDb – que Allen teria se baseado, para criar a trama deste filme, na amizade que teve, quando era um jovem iniciante do mundo do show business, do humor, com um comediante bem mais velho do que ele, que o ensinou bastante sobre a vida, a comédia, a filosofia. Como o personagem Jerry Falk, Woody Allen casou-se cedo, começou cedo a ter algum sucesso. Como David Dobel, o amigo mais velho passou um período de tempo num hospício.
O filme começa com os dois conversando no Central Park, o comediante velho e o comediante jovem. Dobel conta para Jerry uma piada que, segundo ele, explica mais sobre a vida do que um conjunto de livros de filosofia.
– “Sabe, há muita sabedoria nas piadas, Falk. Há uma velha piada sobre um campeão de boxe que está no ringue, e está levando a maior surra; e a mãe dele está na audiência, e está vendo ele apanhar, e há um padre perto dela, e ela diz ‘Padre, padre, reze por ele, reze por ele’. O padre diz: ‘Eu vou rezar por ele, mas se ele desse uns socos ajudaria muito!”
O garoto Jerry então se vira para a câmara e começa a conversar com o espectador. Conta para o espectador como ele e Dobel se conheceram, e tal e coisa.
“Daí o taxista se virou e disse: Sabe como é: é igual a tudo na vida.”
Vemos mais alguns diálogos entre os dois. Numa outra ocasião, estão caminhando juntos por uma rua de Manhattan, e Jerry fala de sua namorada, por quem está absolutamente apaixonado. Conta que ela o apóia em seus projetos. Dobel pergunta quais projetos, e Jerry conta:
– “Quero escrever um romance sobre o destino do homem no universo vazio. Nada de Deus, nada de esperança. Só sofrimento humano e solidão.”
Estamos com menos de dez minutos de um filme do cineasta que, depois de Ingmar Bergman, é o que mais fala sobre o destino do homem no universo vazio, Deus, esperança, sofrimento humano, solidão, e esse cineasta vira-se para o Jerry Falk que ele criou e diz:
– “Eu ficaria com as piadas, se fosse você. É onde está o dinheiro.”
E, um breve instante depois, conta:
– “Uma vez eu estava num táxi, anos atrás, e chorava minhas mágoas para o taxista, essas coisas sobre as quais você estava falando agora há pouco. Vida, morte, o universo vazio, o significado da existência, o sofrimento humano. Daí o taxista se virou e disse: Sabe como é: é igual a tudo na vida.”
You know: it’s just like everything else.
Faz uma carinha de quem contou uma coisa esperta, e diz, antes de sair de perto de Jerry: – “Pense nisso.”
Anything Else. Qualquer outra coisa mais. Mais qualquer coisa. Tudo o mais. Todo o resto.
Os exibidores brasileiros, que já cometeram a idiotice de transformar Annie Hall em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, neste Woody Allen de 2003 acertaram em cheio. Igual a Tudo na Vida, me parece, é uma forma perfeita de adaptar Anything Else para o Português. Na França, o filme teve o título – também perfeito – de La Vie et Tout le Reste. Em Portugal, de Anything Else – A Vida e Tudo o Mais.
As grandes questões, a grande angústia – mas com humor
Deus – ou a não existência de Deus. O vazio. A busca pelo significado da existência. A morte, o medo da morte. De fato, não há outro cineasta – a não ser Bergman, que ele idolatra – que tenha falado tanto sobre esses questionamentos básicos. Já em 1975, 28 anos antes deste Anything Else, quando estava ainda com 40 anos, Woody Allen dizia, em Love and Death, no Brasil A Última Noite de Bóris Grushenko:
– “Como me meti numa situação dessas, nunca vou saber. Absolutamente incrível. Ser executado por um crime que nunca cometi. Mas toda a humanidade não está no mesmo barco? Toda a humanidade, afinal de contas, não será executada por um crime que nunca cometeu? A diferença é que todos os homens se vão, eventualmente, mas eu vou às 6 da manhã de amanhã. Era para ser às 5, mas eu tenho um advogado esperto. Conseguiu uma indulgência.”
Num flashback de Love and Death, o garotinho Bóris Grushenko, aí com uns 9, 10 anos de idade, se depara com a Morte. Como na imagem tradicional da Parca, a Morte tem um manto cobrindo todo o corpo, e segura uma gigantesca foice. O manto, no entanto, é imaculadamente branco, e não negro, como na imagem conhecida por todos. O garoto, por via das dúvidas, pergunta quem é a figura, ela responde que é a Morte.
E o garoto: – “O que acontece depois que morremos? O inferno existe? Deus existe? Nós vivemos novamente?
Como a Morte se mantém em silêncio, Bóris garoto tenta de novo: – “Tá. Deixe eu fazer uma única pergunta chave: Há mulheres?”
As grandes questões, a grande angústia – mas, por favor, com humor, porque rir é o melhor remédio. Talvez o único.
Woody Allen falou das grandes questões na imensa maioria de seus filmes – mas, em vários deles, em especial nos últimos anos, fez esta sugestão aos seus personagens e a seus espectadores: olha, melhor do que afundar nas dúvidas existenciais é não pensar muito nelas e deixar rolar o barco.
– “Sabe como é: é igual a tudo na vida.”
O “menor” Woody Allen é melhor que 95% de tudo o que se produz
Love and Death, o maravilhoso filme de 1975, é um dos seis da Era Diane Keaton, que durou de 1972 a 1979. Depois veio a Era Mia Farrow, de 1982 a 1992, que engloba 13 filmes. Alguns deles, na fase final, foram pesados, densos, às vezes bastante sombrios – A Outra/Another Woman (1988), Crimes e Pecados/Crimes and Misdemeanours (1989), Neblina e Sombras/Shadows and Fog (1991).
Depois do fim da Era Mia Farrow voltaram as comédias escarradas, escancaradas, alegres, como Poderosa Afrodite/Mighty Aphrodite (1995) e Todos Dizem Eu Te Amo/Everyone Says I Love You (1997).
Em geral se diz que na virada do novo século, do novo milênio, Woody Allen estava em um período de obras menores. Era a época de Poucas e Boas (1999), Trapaceiros (2000), O Escorpião de Jade (2001), Dirigindo no Escuro (2002), este Igual a Tudo na Vida (2003), e Melinda e Melinda (2004).
Woody Allen estava, de fato, na única fase em que a crítica torcia o nariz para seus filmes, e as salas de cinema já não se enchiam tanto para vê-los. A empresa que distribuiu muitos de seus filmes, a Orion, tinha falido, e ele andou precisando arranjar financiamento fora de casa – O Escorpião de Jade, de 2001, por exemplo, é uma co-produção EUA-Alemanha, e este filme aqui teve dinheiro de produtores franceses e ingleses.
Voltaria, depois, a ser aclamadíssimo, especialmente a partir de seus filmes produzidos na Europa, os brilhantes Match Point (2005) e Scoop (2006), culminando com o sucesso retumbante de Vicky Cristina Barcelona (2008).
É sempre interessante rever os filmes de Allen – mesmo, ou especialmente, os dessa fase tida como “menor”. Quando revi O Escorpião de Jade, fiquei absolutamente encantado, mais do que quando vi pela primeira vez. É uma beleza de filme – assim como Poucas e Boas e também Trapaceiros.
A rigor, este Anything Else aqui é um filme “menor” dentro da obra desse artista cujo talento para criar novas histórias, novos personagens, parece inesgotável. A questão é que o “menor” Woody Allen é melhor que 95% de tudo o que se produz no mundo.
Amanda é bagunçada – e não quer saber de sexo
Depois de ouvir Dobel contar o que o motorista de táxi tinha lhe dito, quando era jovem e chorava suas mágoas sobre as grandes questões, Jerry vai se encontrar com a namorada. Está fazendo um ano que estão juntos, e ele tinha feito uma reserva num restaurante caro e badalado. Amanda, a namorada, demora muito a chegar – Jerry já havia nos avisado, falando diretamente para a câmara, que Amanda sempre se atrasa, e é bagunçada, desorganizada, mas esses não eram os principais problemas deles. E não importava muito, porque ela era linda, e tremendamente sexy.
Então Amanda de fato demora muito a chegar – e, quando chega, na pele de Christina Ricci, pede desculpas a Jerry, mas informa que… já comeu!
No dia do primeiro aniversário da relação, ela não só se atrasa para o jantar no lugar caro e badalado, como chega já tendo comido!
Mais tarde, em casa, enquanto Jerry, após ter cancelado a reserva no restaurante, come um sanduíche com o que tinha sobrado na geladeira, Amanda fica muito à vontade, só com uma camiseta, as pernas e as coxas lindinhas à mostra, os seios fartos sem a proteção de um sutiã. Mas, quando Jerry se aproxima dela, escapole – e ficamos sabendo que, dos 12 meses em que estão juntos, 6 tinham sido de absoluto jejum sexual, porque Amanda, depois de 6 meses de muita trepada, tinha se desinteressado.
– “Você me ama? – perguntará Jerry.
E Amanda: – “Mas que pergunta! Só porque eu me afasto quando você me toca?”
Christina Ricci está linda. Stockard Channing e DeVito brilham
Christina Ricci estava com 23 anos quando o filme foi lançado – ela é de 1980, de Santa Monica, California –, mas parecia ter ainda menos. Mary e eu volta e meia brincamos que Christina Ricci é perfeita para filmes de suspense ou de puro terror – foi a mais perfeita filhinha de Morticia e Gomez Adams que seria possível imaginar, nos dois filmes A Família Adams, de 1991 e 1993, e está perfeita também, por exemplo, em Monster: Desejo Assassino/Monster (2003).
Tem o rosto perfeito para o terror – que nem Boris Karloff, Bela Lugosi.
Mas está de fato lindinha e gostosinha demais, neste Anything Else. Nosso Jerry Falk tinha mesmo bons motivos para se sentir atraído de cara por ela, assim que a conheceu.
Agora, a questão é que junto com a beleza vinha uma série de características nada agradáveis. Chegar tarde aos encontros de fato era o de menos. Durante seis meses, a moça não queria saber de sexo – com o namorado, porque umas puladas de cerca dava. E eram várias. E ainda levou para morar no apartamento pequeno do namorado a mãe, Paula (o papel da sempre ótima Stockard Channing), uma dessas mulheres que simplesmente recusam a admitir a passagem dos anos, e acham que continuam sempre com 20 e poucos.
Além de Stockard Channing, há também um papel especial para Danny DeVito brilhar, como Harvey Wexler, o agente de Jerry, que o explora a não mais poder.
E é basicamente isso aí, a trama deste Anything Else. Uma trama de fato simples – mas povoada por ótimas piadas, sempre, e aquela moral da história gostosa, de que, olha, melhor do que afundar nas dúvidas existenciais é não pensar muito nelas e tocar a vida em frente.
Foi um fracasso. Uma BOMBA, segundo Maltin
O próprio Woody Allen gostou da história, do filme. “Achei que deu certo, e me surpreendeu que não tenha ido melhor. Eu achei que tinha tudo – uma boa história entre o Jason Briggs e a Chrstina Ricci”, diz ele, no livro Conversas com Woody Allen, de Eric Lax. “O elenco é maravilhoso, e eu achei que era uma história interessante, cheia de boas piadas, cheia de boas idéias. (…) Mais uma vez, foi um daqueles filmes que ninguém foi ver.”
Leonard Maltin foi ver – e classificou o filme com a cotação “BOMBA”, assim, em maiúsculas. Diz que o personagem do jovem está preso em um insondável relação com “a mulher mais detestável da face da Terra”. E garante que este é o pior filme de toda a carreira do realizador.
“The most obnoxious woman on earth.”
Achei a personagem de Christina Ricci bem doidinha, bem chatinha, mas não diria que é a mulher mais detestável da face da terra – até porque é bem bonitinha e gostosinha, como já falei mais de uma vez.
O autor Eric Lax descreve essa Amanda-Christina Ricci de uma forma gostosa:
“Encantadora, inteligente, emocionalmente espontânea, mentirosa, manipuladora e muito frequentemente infiel.” Seu comportamento, diz o autor, “é orientado não por maldade, mas apenas porque não consegue evitar – a paixão dela abre e fecha com a facilidade de uma torneira, o que a torna ainda mais atraente para Jerry, ou pelo menos o leva à perturbação sexual.”
Ah, sim, um detalhinho que achei interessante: Amanda, “a mulher mais detestável da face da Terra”, ou então a moça “encantadora, inteligente, emocionalmente espontânea, mentirosa, manipuladora e muito frequentemente infiel”… fuma!
Sim, fuma! Não maconha, haxixe, não, não – o cigarro, o careta, o que mata.
Quando começam a namorar, Jerry diz: – “Jamais imaginei que fosse namorar uma fumante.”
O cigarro já era tido, em 2003, como o vilão total e absoluto, a droga mais letal que há. Nos filmes daquela época para cá, já praticamente não se vêem fumantes.
Amanda foi uma das últimas personagens do cinema que fuma. E mesmo assim Jerry ficava doido por ela. Jerry, e mais um monte de outros homens.
Definitivamente, ela não podia ser a mulher mais detestável da face da Terra…
Anotação em julho de 2016
Igual a Tudo na Vida/Anything Else
De Woody Allen, EUA-França-Inglaterra, 2003
Com Jason Biggs (Jerry Falk), Christina Ricci (Amanda), Woody Allen (David Dobel), Danny DeVito (Harvey), Stockard Channing (Paula), KaDee Strickland (Brooke), Jimmy Fallon (Bob), Erica Leerhsen (Connie), William Hill (o psiquiatra), David Conrad (o médico do hospital), Adrian Grenier (Ray Polito), Diana Krall (ela mesma)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Darius Khondji
Montagem Alisa Lepselter
Casting Juliet Taylor e Laura Rosenthal
Desenho de produção Santo Loquasto
Produção DreamWorks SKG, Gravier Productions, Canal+, Granada Film Productions, Perdido Productions. DVD Europa Filmes.
Cor, 109 min
R, ***
Título na França: La Vie et Tout le Reste. Na Espanha: Todo lo demás. Em Portugal: Anything Else – A Vida e Tudo o Mais.
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