É uma história real, bem recente, absolutamente fascinante – e bem menos conhecida do que deveria. Envolve dois temas fundamentais, a política e o jornalismo.
Transformou-se em um filme que é grande e importante. A força do filme começa pelo título, Truth, verdade – só isso. No Brasil, o título virou Conspiração e Poder.
Os fatos mostrados no filme aconteceram em 2004, o ano em que John Kerry foi o candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, enfrentando o então presidente George W. Bush. Fala-se de Bush o tempo todo – até vemos a cara desagradável do sujeito, em imagem que foi ao ar na TV logo após a contagem dos votos que o reelegeram.
Robert Redford interpreta um dos nomes mais conhecidos do jornalismo americano das últimas muitas décadas – Dan Rather, uma lenda, durante anos um dos principais jornalistas da TV americana, âncora da CBS, uma das três grandes redes nacionais.
E é interessantíssimo ver Robert Redford, ele mesmo hoje uma lenda, um monumento, no papel de Dan Rather, exatos 39 depois de ter interpretado em Todos os Homens do Presidente (1976) o jovem Bob Woodward, o repórter do Washington Post que, ao lado de Carl Bernstein, foi desfiando o novelo do escândalo Watergate até a renúncia do então presidente Richard Nixon.
A protagonista da história é Mary Mapes, jornalista brilhante
Watergate. Todos os escândalos políticos após a invasão do comitê do Partido Democrata no prédio de Washington que leva este nome por assaltantes a mando – conforme se comprovaria em seguida – de auxiliares diretos do presidente candidato à reeleição, com seu conhecimento, passariam a ser chamados de alguma coisa-gate.
Há quem chame a história relatada neste filme de “Rathergate”.
Dan Rather é figura fundamental na história, mas a protagonista mesmo é uma mulher, Mary Mapes, uma jornalista que tinha então 20 anos de um currículo brilhantíssimo, que incluía as reportagens – divulgadas pela CBS – sobre as torturas, praticadas por militares americanos, de prisioneiros na prisão iraquiana de Abu Ghraib.
Mary Mapes era colega, colaboradora e amiga íntima, de muito tempo, de Dan Rather.
Em 2004, em meio à campanha eleitoral, ela chefiou uma equipe que conseguiu levantar a seguinte história: em 1973, 1974, a família rica e influente do jovem George W. Bush conseguiu manejar pauzinhos para fazer com que ele fosse admitido como piloto da Guarda Nacional no Texas, seu Estado Natal.
Com isso, ele conseguia escapar de ter que servir no Vietnã – como serviu, por exemplo, seu então oponente na luta pela reeleição, John Kerry.
Em vez da guerra suja, pantanosa, perigosíssima, fadada a ser perdida – milhares e milhares de americanos mortos –, um confortável período aprendendo a pilotar na Guarda Nacional.
Mas a coisa é ainda pior do que apenas isso: Mary Mapes e sua equipe apuraram que o então jovem George W. Bush, o homem que depois enfiaria milhares de jovens americanos em uma guerra suja no Iraque, nem sequer chegou a se apresentar para diversas fases do treinamento na Guarda Nacional.
Bom jornalismo custa caro. A CBS investiu muito para apurar a história
É uma história de fato fantástica, fascinante, impressionante, importantíssima. O caso, é claro, foi muitíssimo falado na época, nos Estados Unidos. Deve seguramente ter sido noticiado em todo o mundo – mas nem Mary nem eu conhecíamos a história. Como somos especialmente interessados tanto por política quanto por jornalismo, e no entanto não sabíamos dessa história, creio que dá para dizer, com alguma segurança, que pouca gente no Brasil sabe dela – com a honrosa exceção, certamente, dos jornalistas que trabalham especificamente nas editoriais de noticiário internacional.
É um filme que deveria ser visto por todas as pessoas que se interessam por política, por jornalismo, por História.
A primeira metade da narrativa – o filme é um pouco mais longo do que o padrão atual no cinema comercial, tem 125 minutos – mostra o trabalho de Mary Mapes e sua equipe de garimpar informações que comprovem aquela suspeita.
A jornalista é interpretada, com o brilhantismo de sempre, por Cate Blanchett, esse imenso talento. Mary era respeitadíssima, tinha alto cargo na CBS News – o braço jornalístico do gigantesco conglomerado de comunicação –, e obtém de seus superiores hierárquicos a autorização para formar um time com três colaboradores de sua confiança: o tenente-coronel Roger Charles, com longa ficha de serviços prestados, inclusive no Vietnã (interpretado por Dennis Quaid) e os jovens repórteres Mike Smith (Topher Grace) e Lucy Scott (Elisabeth Moss, a Peggy Olson da série Mad Men).
Esse trecho do filme – o trabalho de investigação, de levantamento de dados – faz lembrar bem o já citado Todos os Homens do Presidente, e também o mais recente Spotlight (2014), em que um grupo de repórteres do Boston Globe investiga a ação dos padres pedófilos na arquidiocese de Boston.
É uma lição de jornalismo.
É de dar inveja a qualquer jornalista.
E é mais uma comprovação daquela verdade fundamental que volta e meia repito: os jornais livres, fortes, grandes, independentes são tão fundamentais para os seres humanos quanto respirar. Sejam os de papel, sejam os de TV.
E aqui me permito repetir parte do que escrevi há pouco tempo sobre Spotlight, adaptando para este Truth:
Para ser livre, independente, um jornal precisa ser grande, forte, por que jornalismo é tarefa cara, extremamente cara. Truth mostra bem isso. No caso específico, a CBS News investiu pesado na apuração da história de como George W. Bush fugiu do serviço militar no Vietnã, com uma equipe de quatro jornalistas trabalhando semanas no caso.
Isso é caríssimo.
Se alguém é contra os grandes jornais, a grande imprensa, “a mídia”, como se diz agora, pode ver: é quem não quer a democracia, é quem prefere algum tipo de totalitarismo, seja de esquerda, seja de direita. No totalitarismo, eles podem manter em segredo os seus podres, os seus desmandos, as suas falcatruas, a sua roubalheira.
Simples assim.
Depois da cuidadosa apuração, Dan Rather apresenta a história na TV
Mary Mapes e sua equipe tinham em mãos alguns indicativos, alguns indícios de que houve manobra para que o jovem George W. Bush fosse admitido como piloto da Guarda Nacional. Com sua larga experiência, o tenente-coronel Roger Charles lembra que formar um piloto era algo caro – e havia um grande número de pilotos já formados, já treinados, que, tendo servido no Vietnã ou em qualquer uma das muitas bases militares americanas espalhadas mundo afora, se ofereciam para trabalhar na Guarda Nacional.
Por que, então, a Guarda teria interesse em gastar muito dinheiro na preparação de um novo piloto como aquele filhinho de papai texano?
Mais: sabia-se que Ben Barnes (Philip Quast), que havia sido vice-governador do Texas no início dos anos 70, havia no passado se vangloriado de ter mexido pauzinhos para que o jovem Bush fosse admitido na Guarda Nacional.
Ele agora tentava negar isso – mas surgiu no YouTube um filme caseiro em que, numa festa particular, restrita, Barnes dizia, com todas as letras, que agiu para que o George W. Bush fosse para a Guarda Nacional.
Surge então na investigação levada a cabo por Mary Mapes e colegas um veterano das Forças Armadas, o tenente-coronel Bill Burkett (Stacy Keach), que diz ter cópias de documentos militares comprovando que George W. Bush não fez o treinamento indispensável para obter o título de tenente da Guarda Nacional.
Os documentos foram submetidos a quatro diferentes especialistas. Dois deles não certificaram que os documentos eram válidos, por serem cópias, mas concordaram com a opinião do mais velho deles de que a assinatura de um oficial superior, Killian, àquela altura já morto, era autêntica.
Um outro alto oficial, em conversa por telefone por Mary Mapes, ouve ela ler os documentos assinados por Killian, e diz que o texto é consistente com o que Killian achava na época.
O material apurado é mostrado aos superiores hierárquicos de Mary na CBS. Eles aprovam a divulgação.
Dan Rather, que tem plena confiança em Mary, observa todo o material, aprova. E, no programa que ancorava, o famoso 60 Minutes da CBS, uma espécie assim do que no Brasil é o Jornal Nacional da Rede Globo, ele apresenta a reportagem.
Estamos aí na metade do filme, apenas.
Pressionada, a CBS News decidiu assumir que seus jornalistas erraram
O que vem a seguir, na segunda metade da narrativa, não fica nada bem para a imprensa americana de um modo geral, e especialmente para a CBS News.
Toda a história passa a ser contestada, bombardeada, em especial pelos órgãos de imprensa que apóiam o Partido Republicado, mas também pela rede concorrente, a ABC.
Os contestadores da história se fiam basicamente nos tais documentos assinados pelo coronel Killian e entregues a Mary Mapes pelo tenente-coronel Bill Burkett. Peritos são ouvidos e garantem que os papéis foram escritos em Word da Microsoft – algo inexistente, é claro, em 1973, 1974.
Há quem dê pareceres contrários, mas a essa altura os que garantem que os documentos são falsos estão falando mais alto.
George W. Bush estava para reeleito para mais quarto anos.
Uma corporação em muitas instâncias e circunstâncias depende da boa vontade do governo. Mesmo que gigantesca, poderosa – ou até exatamente por ser gigantesca, poderosa.
A CBS decide assumir que errou.
E em seguida contrata uma auditoria “independente” – na verdade, uma empresa de advocacia com diversas ligações com George W. Bush – para examinar os procedimentos da equipe de Mary Maples.
Como dizia o jovem Bob Dylan em seu terceiro disco – aliás gravado, como praticamente todos os de sua carreira, pela Columbia, o braço fonográfico do conglomerado CBS –, “now is the time for your tears”. Agora, sim, é a hora em que você tem o direito de chorar.
Não é nem quer ser um relato imparcial: é a história contada pela jornalista
Truth não pretende ser uma visão imparcial do que um leitor americano do IMDb definiu como “a história da controvérsia dos Documentos Killian (também conhecido como ‘Rathergate’) nos dias que levaram à eleição presidencial de 2004”.
De forma alguma.
É o relato da história do ponto de vista dos jornalistas que garimparam as informações e fizeram a reportagem.
O roteiro, assinado por James Vanderbilt, é baseado – conforme nos informam com toda clareza os créditos finais – no livro escrito por Mary Mapes, Truth and Duty: The Press, the President, and the Privilege of Power. Verdade e dever: a imprensa, o presidente e o privilégio do poder.
O livro foi lançado ainda em 2005, o ano seguinte aos fatos que narra. Mary Mates é jornalista, e das boas, e de TV, e a notícia é algo urgente.
O filme é irrepreensivelmente bem feito em todos os quesitos. Parece incrível, absurdo, mas é o primeiro filme dirigido por esse James Vanderbilt, garotão nascido nos Estados Unidos em 1975, o mesmo ano da minha filha, de Kate Winslet, Rodrigo Santoro, Marion Cotillard.
Antes de escrever e dirigir este Truth, o rapaz havia escrito sete roteiros, inclusive os de Zodíaco (2007) e O Espetacular Homem-Aranha (2012).
Curiosamente (ou não), o filme é uma co-produção Austrália-EUA. Por que Austrália? Bem, Cate Blanchett é australiana, e, segundo o IMDb, o filme foi rodado lá a pedido dela, que queria estar perto de sua família.
Pô, isso é que poder: por causa dela, Robert Redford, Topher Grace, Dennis Quaid, Elisabeth Moss, Bruce Greenwood, muitos outros atores e o próprio diretor ficaram longe das suas famílias…
Bruce Greenwood, que não havia ainda sido citado, interpreta Andrew Heyward, o então presidente da CBS News.
A CBS se recusou a veicular anúncio do filme que a chama de fraca
O IMDb traz outra curiosidade interessante. Lá pelo fim do filme, há uma sequência em que uma triste, angustiada Mary Mapes está falando com Dan Rather ao telefone. Ele está na varanda de seu maravilhoso apartamento de cobertura em Manhattan, ela está sentada no chão da sala de sua casa no Texas, junto de uma estante de livros. Na estante, alguém do IMDb viu (eu não conseguiria ver, creio que nenhum espectador, mesmo que atento, conseguiria), está A Good Life.
A Good Life é a autobiografia de Ben Bradlee, o editor-chefe do Washington Post na época de Watergate. Em Todos os Homens do Presidente, foi interpretado por Jason Robards Jr. Com o apoio da dona do Washington Post, Katherine Graham, Ben Bradlee – bem ao contrário de Andrew Heyward e dos demais super chefões da CBS – enfrentou todas as negativas da Casa Branca e bancou o trabalho investigativo dos repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward.
Por uma dessas coincidências de que é feita a vida, o filho dele, Ben Bradlle Jr. era o segundo homem na hierarquia do Boston Globe quando o jornal investigou os crimes cometidos por diversos padres; no filme Spotlight, ele foi interpretado por John Slattery, o Roger Sterling de Mad Man.
A rede CBS se recusou a pôr no ar anúncios do filme Truth.
Como notou a Mary, é um direito que lhe assiste. Uma rede de TV não é obrigada a levar ao ar um anúncio com o qual não concorda. Não há lei alguma que obrigue a CBS a propagar – mesmo que recebendo dinheiro por isso – um filme que a acusa de tíbia e venal. Para dizer o mínimo.
Dan Rather – que pediu demissão da CBS logo após a posse de George W. Bush para o segundo mandato, e mais tarde acionou a empresa na Justiça – declarou que o filme é uma narrativa bastante acurada dos fatos. (Na foto, ele e Mary Mapes na época do lançamento do filme.)
Anotação em setembro de 2016
Conspiração e Poder/Truth
De James Vanderbilt, Austrália-EUA, 2015
Com Cate Blanchett (Mary Mapes), Robert Redford (Dan Rather)
e Topher Grace (Mike Smith), Dennis Quaid (tenente-coronel Roger Charles), Elisabeth Moss (Lucy Scott), Bruce Greenwood (Andrew Heyward), Stacy Keach (tenente-coronel Bill Burkett), John Benjamin Hickey (Mark Wrolstad), David Lyons (Josh Howard), Dermot Mulroney (Lawrence Lanpher), Rachael Blake (Betsy West), Andrew McFarlane (Dick Hibey), Natalie Saleeba (Mary Murphy), Noni Hazlehurst (Nicki Burkett), Connor Burke (Robert Mapes), Philip Quast (Ben Barnes)
Roteiro James Vanderbilt
Baseado no livro Truth and Duty: The Press, the President, and the Privilege of Power, de Mary Mapes
Fotografia Mandy Walker
Música Brian Tyler
Montagem Richard Francis-Bruce
Casting Nikki Barrett e John Papsidera
Produção Sony Pictures Classics, RatPac Entertainment, Echo Lake Entertainment, Blue Lake Media Fund, Mythology Entertainment, Dirty Films.
Cor, 125 min
***1/2
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