As Sufragistas, dirigido pela jovem inglesa Sarah Gavron, é um daqueles filmes que são, além de belas obras de arte, também importantes documentos sobre episódios relevantes da História.
O filme revela fatos que para mim são surpreendentes: confesso que não tinha idéia de que a repressão às sufragistas inglesas – as mulheres que, nas primeiras décadas do século XX, lutaram pelo direito de voto – havia sido tão dura, tão cerrada, tão violenta.
Sou um admirador da cultura britânica, da civilização que aquele povo construiu. A Grã-Bretanha é (e creio que ninguém em sã consciência pode contestar essa afirmação) a democracia mais antiga, mais estável, mais sólida, mais avançada do mundo. No entanto, tem lá suas chagas, feias, tenebrosas. Ter considerado o homossexualismo um crime, que dava cadeia, até meados dos anos 1960, é uma delas. A brutal repressão ao movimento pela independência da Irlanda é outra.
A violência do Estado britânico contra as mulheres que defendiam seu direito de votar é uma mácula na história desse país admirável. E o filme de Sarah Gavron expõe essa mancha com uma crueza que beira a crueldade.
“Se permitirmos que as mulheres votem, será o fim da estrutura social”
É um drama, uma ficção histórica: o roteiro do filme – original, escrito diretamente para o cinema –, de autoria também de uma mulher, Abi Morgan, criou personagens fictícias e as colocou ao lado de personalidades reais em situações, eventos, que de fato existiram.
Emmeline Pankhurst (1858-1928), a grande líder do movimento sufragista, é interpretada no filme por Meryl Streep, aquele patrimônio da humanidade. É uma participação especial: Emmeline aparece apenas em uma sequência, uma sequência grande e bastante importante, é verdade, lá pelo meio do filme, quando ela, apesar de estar sendo procurada pela polícia de Londres, aparece num comício de sufragistas em que estão várias das personagens fictícias do filme.
Uma bisneta de Emmeline, Helen Pankhurst, foi convidada pela produção do filme para aparecer rapidamente, como uma extra, em uma cena, e aceitou.
Por uma fantástica coincidência, a atriz Helena Bonham Carter, que faz o segundo papel mais importante em As Sufragistas, é bisneta de H. H. Asquith, que foi primeiro-ministro da Grã-Bretanha entre 1908 e 1916, exatamente o auge das manifestações do movimento sufragista. Era um ferrenho adversário do direito das mulheres de votarem.
A ação do filme se passa em 1912 – a data aparece num letreiro assim que o filme começa. Vemos mulheres trabalhando numa imensa lavanderia, um ambiente sufocante, insalubre, tomado por vapor d’água, enquanto vozes masculinas, em off – muito provavelmente de membros do venerável Parlamento – dizem as seguintes barbaridades:
– “As mulheres não têm o temperamento calmo ou a mente equilibrada para fazer julgamento sobre assuntos políticos.”
– “Se permitirmos que as mulheres votem, será o fim da estrutura social. As mulheres são bem representadas por seus pais, irmãos e maridos.”
– “Uma vez permitido o voto, será impossível parar por aí. As mulheres passarão então a exigir o direito de ser parlamentares, ministras, juízas.”
Corta, fade out, e, sobre a tela preta, surgem letreiros para informar o espectador sobre o contexto da história que será contada:
“Durante décadas, mulheres protestaram pacificamente por igualdade e o direito de votar. Seus argumentos foram ignorados. Em resposta, Emmeline Pankhurst, líder do movimento das sufragistas, convocou uma campanha nacional de desobediência civil. Esta é a história de um grupo de mulheres da classe trabalhadora que se juntou à luta.”
A jovem diretora demonstra imenso talento para fazer uma seqüência de ação
A personagem central da história é uma trabalhadora naquela lavanderia mostrada no intróito, Maud Watts – o papel da fantástica, maravilhosa Carey Mulligan, de Educação/An Education (2009), Em Busca de uma Nova Chance/The Greatest (2009), Não Me Abandone Jamais/Never Let Me Go (2010).
Maud tem 24 anos, mas parece ter mais, por causa das péssimas condições de trabalho na lavandeira, onde ela está desde sempre, já que a mãe a levava para lá quando era criancinha e ela mesma começou a ganhar salário como aprendiz aos 12. (Carey Mulligan, nascida em Londres em 1985, estava com 30 em 2015, ano do lançamento do filme.)
Tem um filho de uns cinco ou seis anos, George (Adam Michael Dodd). O marido, Sonny (Ben Whishaw), trabalha na mesma lavanderia que ela. Moram numa casa bem pequena, mínima, em bairro distante, estritamente working class, no East End de Londres, bem distante das áreas centrais.
No dia em que a ação começa, o gerente da lavanderia, um sujeito tosco, bruto, brutal, Norman Taylor (Geoff Bell), ordena que Maud faça uma entrega de roupa perto do West End, junto da Oxford Street. Maud vai de ônibus, desce perto do lugar de destino, e se distrai olhando bonecas lindíssimas, autênticas esculturas, na vitrine de uma loja na Oxford Street. Está absorta olhando as bonecas quando o vidro da loja é estilhaçado por uma pedra jogada com grande força por uma sufragista. Outras sufragistas estão em ação ali naquele momento, chega a polícia e forma-se um imenso tumulto.
É uma seqüência absolutamente brilhante. Como se tivesse longa experiência em filmes de ação, a jovem diretora Sarah Gavron – com seu diretor de fotografia Eduard Grau e o montador Barney Pilling – dá um show. Tenho absoluta certeza de que realizadores experientes, veteranos de filmes de ação, tipo Michael Scorsese ou Michael Mann, assinariam orgulhosos essa sequência.
Esse mesmo talento fantástico para filmar cenas de ação em meio a gigantesca multidão vai ser demonstrado novamente quando o filme está bem perto do fim, numa outra seqüência extraordinária, passada no meio de um hipódromo abarrotado de gente, onde está presente o rei da Grã-Bretanha. São duas seqüências desde já antológicas.
O brutal gerente da lavanderia abusa de uma garotinha – e, antes, abusara de Maud
O roteiro inteligente, bem estruturado, firme, de Abi Morgan mostra, com a clareza de um raio, como Maud, uma jovem que jamais tinha tido envolvimento com qualquer atividade reivindicatória, política, vai – a princípio contra sua própria vontade – se envolvendo no movimento sufragista.
Três mulheres, em especial, ajudam a levar a jovem Maud à militância. Uma delas é Violet Miller (Anne-Marie Duff), uma nova operária da lavanderia, de quem Maud se aproxima. A filha mais velha de Violet, Maggie, com uns 14 anos, também já trabalha na lavanderia – e um dia qualquer, Maud vai entrar sem bater na sala do tal gerente Taylor, e flagrá-lo abusando da menina.
Maud sai da sala às pressas, mas dá tempo para que Taylor a veja. O mau caráter vai em seguida para o lugar em que Maud trabalha, e diz, bem no ouvido dela: – “Ela me faz lembrar você”.
Fica claro – bem claro – que Taylor abusou também de Maud no passado. A questão voltará a aparecer bem mais tarde.
Outra das mulheres que levam a jovem mulher para o movimento sufragista é Edith Ellyn (o papel de Helena Bonham Carter), que é dona, junto com o marido, Hugh (Finbar Lynch), de uma farmácia próxima da casa de Maud. Edith – diferentemente de Violet, uma soldado raso do movimento – tem posição elevada na hierarquia da organização. Seria assim uma espécie de tenente, ou capitã – pertence ao círculo que tem acesso direto à líder maior, Emmeline Pankhurst.
No filme, usa-se, para definir as militantes de base, a expressão (que eu não conhecia) foot soldier. Faz todo sentido. É bem parecido com nossa expressão soldado raso.
Quem primeiro usa a expressão foot soldier no filme, se não estou enganado, é o inspetor de polícia Arthur Steed, o oficial encarregado pelo governo britânico de supervisionar a repressão às sufragistas. É um personagem muito bem construído – e muito bem interpretado pelo sempre ótimo Brendan Gleeson.
Há uma escalada de violência, um círculo viciado absurdo
Da mesma forma com que mostra com inteligência e clareza como os fatos vão fazendo Maud abraçar mais e mais a causa sufragista, o roteiro de Abi Morgan demonstra maravilhosamente como as coisas vão crescendo, aumentando de intensidade. Há uma escalada de parte a parte. Depois de anos lutando pacificamente, e sendo ignorado – como avisa o letreiro inicial –, o movimento sufragista decide escalar, subir um degrau, elevar um tom: passa a usar violência, como a quebra de vitrines.
O governo reage exigindo rigor muito maior da polícia. O movimento reage escalando ainda mais, usando bombas nas caixas de correio.
A cada ação de violência o adversário responde com violência maior. E assim sucessivamente, num círculo viciado absurdo, sem sentido.
É sempre assim, em todo conflito.
Uma diretora talentosa, que faz filmes de mulheres, sobre mulheres
A terceira mulher importante na conversão da antes apolítica Maud em ferrenha sufragista é Alice Haughton (o papel de Romola Garai, que está aqui ainda mais linda que em Dirty Dancing – Noites de Havana, de 2004, Angel e Desejo e Reparação, os dois de 2007). Alice é muito rica, casada com um sujeito com ligações com o Parlamento, e ajuda como pode o movimento sufragista.
Me ocorreu agora, enquanto escrevia esta anotação, que cada uma das três mulheres importantes para encaminhar Maud para o movimento sufragista vem de uma classe social. É algo bem britânico: Violet é pobre, working class como a própria Maud. Edith, farmacêutica, é classe média, enquanto Alice Haughton é rica, classe alta.
Interessante: assim como Alice Haughton, a própria diretora Sarah Gavron é da classe alta. O pai dela, Robert Gavron, é barão, milionário da área gráfica. A mãe, Nicky Gavron, é política, pertence à Assembléia de Londres e já foi vice-prefeita da capital inglesa.
Sarah Gavron estudou em belas escolas particulares; estudou Inglês na Universidade de York, cinema no Edinburgh College of Art e também na National Film and Television School em Londres. É daquele belo tipo de pessoa rica e bem educada que trabalha para o bem, em boas e nobres causas.
Sua filmografia é curta. Fez um curta em 2000, um filme para a TV em 2003 e aí, em 2007, realizou um ótimo, sensivel drama, Um Lugar Chamado Brick Lane/Brick Lane, sobre a vida rica, cheia de travessias e jornadas, de uma mulher, que começa em um vilarejo perdido no interior de Bangladesh e depois vai para um bairro de Londres. Brick Lane é um filme feito por mulheres: a autora do livro é mulher, e as roteiristas também. Não por coincidência, de forma alguma por coincidência uma das duas roteiristas é Abi Morgan, a mesma autora do roteiro original deste Suffragette.
Em 2012, Sarah Gavron fez um documentário, Village at the End of the World, e em 2015 veio As Sufragistas.
Muitos vezes faço previsões que de maneira alguma se confirmam. Mas fico feliz ao reler o que escrevi sobre Brick Lane: “Foi o primeiro longa-metragem dirigido por essa moça Sarah Gavron (…) A moça tem talento: quem gosta de bom cinema deve ficar atento ao nome dela. Quando perguntada sobre como é fazer um filme sobre uma cultura diferente da sua, tem na ponta da língua dois bons exemplos: pois o indiano Shekhar Kapur não fez os dois Elizabeth, com Cate Blanchett no papel da rainha Elizabeth I, e o chinês Ang Lee não filmou o inglesérrimo Razão e Sensibilidade?”
Com As Sufragistas, comprova que tem talento tanto para falar de cultura diferente da sua quanto para falar de seu próprio povo. Os dois filmes, Brick Lane e este aqui, têm em comum um ponto fundamental: são filmes feitos por mulheres, sobre mulheres.
A civilização avança, sim. Pena que avance devagar demais
Ao final da narrativa, como acontece na maioria dos filmes inspirados em fatos reais, letreiros informam o espectador sobre o que aconteceu com aquele determinado tema depois do que é mostrado na tela.
As informações dadas nos letreiros finais de As Sufragistas são impressionantes, de fazer pensar – exatamente como toda a história de Maud e dos demais personagens:
“Em 1918, o voto foi concedido a algumas mulheres acima de 30 anos. Em 1928, as mulheres conquistaram os mesmos direitos de voto que os homens.”
1928! Exatamente o ano da morte de Emmeline Pankhurst.
E então seguem-se as datas em que as mulheres de outros países adquiriram o direito de votar, como os homens.
1893, Nova Zelândia. 1902, Austrália. O que é incrível, em todos os aspectos: dois países colonizados pelos britânicos, que à época ainda pertenciam ao Império Britânico, estiveram à frente da própria Grã-Bretanha.
1913, Noruega.
1917, Rússia – claro, o ano da revolução comunista.
1920, Estados Unidos da América.
1932, Brasil.
1943, Itália. 1944, França. De novo, incrível! Como demoraram a admitir essa coisa tão absolutamente básica que é a igualdade de direitos civis entre homens e mulheres esses dois países de tanta história, tanta cultura.
1971, a Suíça.
2003, Catar.
Para 2015 estava prometido que as mulheres da Arábia Saudita adquiririam o direito a votar.
Galileu Galilei, que morreu em 1642, dizia “Eppur si muove”. É a mais pura verdade: no entanto, a Terra se move.
A História, a civilização também. Só que às vezes parece lerda demais.
Anotação em maio de 2016
As Sufragistas/Suffragette
De Sarah Gavron, Inglaterra-França, 2015
Com Carey Mulligan (Maud Watts), Helena Bonham Carter (Edith Ellyn), Anne-Marie Duff (Violet Miller), Brendan Gleeson (inspetor Arthur Steed), Ben Whishaw (Sonny Watts), Romola Garai (Alice Haughton), Natalie Press (Emily Wilding Davison), Geoff Bell (Norman Taylor), Amanda Lawrence (Miss Withers), Shelley Longworth (Miss Samson), Lorraine Stanley (Mrs. Coleman), Adam Nagaitis (Mr. Cummins), Finbar Lynch (Hugh Ellyn), Samuel West (Benedict Haughton), Grace Stottor (Maggie Miller), Adam Michael Dodd (George Watts)
e, em participação especial, Meryl Streep (Emmeline Pankhurst)
Roteiro Abi Morgan
Música Alexandre Desplat
Fotografia Eduard Grau
Montagem Barney Pilling
Casting Fiona Weir
Produção Pathé, Film4, British Film Institute (BFI), Canal+ France, Ciné +, Focus Features, Ruby Films.
Cor, 107 min
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