A Aventura / L’Avventura

zzaventura1

4.0 out of 5.0 stars

As relações afetivas são frágeis, precárias, quebradiças. Podem se desfazer a cada momento, sem aviso prévio, sem causa aparente. As pessoas são volúveis, instáveis, imprevisíveis. E, muitas vezes, abertamente, absurdamente contraditórias.

A comunicação é difícil, mesmo entre parentes próximos, entre amigos íntimos, entre amantes. As pessoas têm dificuldade de se fazer entender pelas outras, e as palavras muitas vezes são armadilhas. “Mas por que ficar discutindo, falando? As palavras, acredite em mim, servem cada vez menos, confundem.”

O casamento mais separa que une. Bastam alguns meses, e a infelicidade já se abate sobre os casais.

Homens e mulheres parecem fadados irresistivelmente à inconstância, à infidelidade.

Esse, me parece, é o retrato que Michelangelo Antonioni traça da parte endinheirada da sociedade italiana apenas 15 anos após o país sair absolutamente arrasado da Segunda Guerra Mundial, no alvorecer dos anos 60, a década sobre a qual se diria depois que mudou tudo.

Ao longo dos 15 anos entre a derrota do fascismo de Benito Mussolini e o lançamento de A Aventura, em 1960, a Itália havia feito o melhor cinema do mundo daqueles tempos. Toda uma geração brilhante de escritores, diretores, atores, fotógrafos criara o neo-realismo – o mais importante e influente de todos os movimentos da História do cinema. Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, Luchino Visconti, Cesare Zavattini, Francesco Rossi, Suso Cecchi D’Amico, Pasquale Festa Campanile, Anna Magnani… Vixe Maria, quanto talento!

Era um cinema feito longe de estúdio, nas ruas, muitas vezes usando atores não profissionais, que retratavam a vida, o dia-a-dia dos trabalhadores, dos pobres, dos desvalidos, e expunham as chagas da injustiça social. Eram artistas e obras engajadas, muitas delas de nítido caráter pró-socialismo, pró-comunismo. Não por coincidência, nessa época o Partido Comunista Italiano era o mais importante e mais influente de todos os PCs do Ocidente.

zzaventura1a

Meio mundo jogou pedras em Antonioni por falar de angústia de burgueses

Michelangelo Antonioni (1912-2007) começou no neo-realismo. Em 1947, por exemplo, escreveu e dirigiu um documentário curta metragem, Gente do Pó, sobre os trabalhadores do vale do Rio Pó. Dez anos depois, em 1957, lançou O Grito, sobre um operário, um trabalhador, envolvido numa crise existencial. O meio social ainda era o que sempre se via nos filmes neo-realistas – mas o tema era a angústia do protagonista. As dores da cabeça – não as condições materiais de vida.

Em A Aventura, seu filme seguinte, Antonioni radicalizou. Mais uma vez falou de crise existencial, angústia, dificuldades de comunicação – só que de gente rica.

Foi um divisor de águas e de opiniões. Gerações de cinéfilos se maravilharam com aquela espécie de Ingmar Bergman latino. Meio mundo jogou pedras contra esse papo furado de discutir angústias de burgueses, quando há tanta miséria para ser denunciada.

Em Il Sorpasso, no Brasil Aquele Que Sabe Viver, de 1962, Dino Risi goza escancarada e nominalmente Michelangelo Antonioni. Em seu hino ao socialismo e à solidariedade, Nós Que Nos Amávamos Tanto/C’eravamo tanto amati (1974), Ettore Scola goza Antonioni escancarada e longamente (sem no entanto citar seu nome), ao mesmo tempo em que faz a elegia do cinema de Vittorio De Sica e Federico Fellini.

zzaventura2a - 720

56 anos depois, A Aventura continua forte, poderoso, belíssimo

Escrevi isso aí acima, essa abertura de anotação, pouco depois de ver A Aventura pela segunda vez na vida – mas que a rigor parece ser a primeira. Meu primeiro caderno de cinema mostra que vi L’Avventura entre um John Ford (O Homem que Matou o Facínora) e um Fellini (Oito e Meio). No mesmo mês, vi também A Doce Vida de Fellini, Marnie de Hitchcock, Seduzida e Abandonada de Pietro Germi e Noite Vazia de Walter Hugo Khoury. Era 1965, e eu tinha 15 anos. Adolescente metido pra cacete, aquele lá.

Naquela mesma época, vi também os dois outros filmes da trilogia da incomunicabilidade de Antonioni, A Noite (1961) e O Eclipse (1962).

Não me lembrava de praticamente nada deste primeiro dos três filmes. E confesso, sem me sentir envergonhado por isso, que tive medo de, ao rever o filme agora, me decepcionar, achar tudo muito chato.

Às vezes sinto esse medo, ao rever ou até ao ver pela primeira vez grandes clássicos. Alguns de fato causam decepção profunda.

A Aventura é um filmaço. Cinquenta e seis anos depois de ter chocado – para o bem ou para o mal – os cinéfilos do mundo inteiro, continua forte, poderoso, belíssimo. Um filmaço.

Antes de prosseguir, transcrevo em parte a sinopse do filme no Le Petit Larousse des Films: “Filha de um embaixador, Anna se encontra em Roma com seu noivo, Sandro, arquiteto mundano e volúvel. Encontra também sua amiga Claudia. Os três partem num cruzeiro às Ilhas Eólias, com dois outros casais, ociosos e superficiais. Numa escala, Anna e Sandro discutem violentamente e Anna desaparece. As buscas na ilha deserta, tornadas difíceis por uma tempestade, não dão em nada. Sandro e Claudia decidem continuar as buscas no continente, seguindo uma pista dada pela polícia. Pouco a pouco, eles se sentem atraídos um pelo outro.”

É especialmente impressionante a beleza da fotografia de Aldo Scavarda. O enquadramento precioso, preciso, que torna dezenas e dezenas de tomadas obras de arte de intensa beleza – tanto na paisagem agreste, seca, dura, das Ilhas Eólias, quanto na paisagem igualmente seca mas gloriosa das grandes construções seculares na Sicília e em outros locais do Sul da Itália.

E Monica Vitti.

Há muito tempo não via Monica Vitti em filme algum. Não me lembrava de como sua presença numa tela é poderosa, forte, marcante, impressionante, apaixonante.

E, claro, bela. Belíssima. Meu Deus do céu e também da terra, que mulher belíssima.

zzaventura2

Diálogos impressionantes, papo furado misturado com belas sacadas

Impressionantes também são os diálogos, escritos por Antonioni, Elio Bartolini e Tonino Guerra. É fascinante como se misturam diálogos inteiros da mais pura abobrinha, o mais puro bullshit – papo furado, essa coisa tão presente em boa parte da nossa vida – com belas sacadas que desnudam a alma dos personagens.

Como aquela frase que transcrevi lá em cima, de Sandro (Gabrielle Ferzetti, na foto acima) para Anna (Lea Massari, também na foto acima), na ilha rochosa, sem vida, pouco antes de ela desaparecer completamente, misteriosamente: – “Mas por que ficar discutindo, falando? As palavras, acredite em mim, servem cada vez menos, confundem.” E então ele acrescenta: – “Eu te amo, não basta?”

E Anna responde: – “Não, não basta.”

Diz então que quer ficar sozinha por um tempo, para pensar. Está muito mal. – “Sei que é absurdo, mas estou péssima. A idéia de perder você me mata, mas ao mesmo tempo não te sinto mais.”

Discutindo a relação. Maior D.R., em 1960, antes que cada um de nós começasse nas nossas vidas a discutir as relações.

“Não te sinto mais.”

Estão juntos naquela ilha de pedras, tinham estado juntos na casa dele dois dias antes, e trepado, estiveram juntos no barco, em meio a um grupo de amigos – mas Anna não sente mais o amante.

Sandro se afasta então um pouco dela, deita-se numa pedra – a ilha só tem pedras. Há um corte, e na sequência seguinte já não há mais Anna.

Estamos, então, com uns 25, talvez 30 minutos de um filme longo de 143 minutos, 2 horas e 23.

Me lembrei de Procurando Elly (2009), do iraniano Asghar Farhadi, outro filme extraordinário. Não que sejam parecidos, o filme de Antonioni de 1960 e o iraniano bem mais recente – mas os dois partem de um acontecimento igual, o desaparecimento súbito de uma pessoa no meio de um grupo de amigos. Cada um vai para um lado a partir daí, não há semelhança depois – mas o ponto de partida, nos dois, é o mesmo.

Muito tempo depois, quando já estamos com umas 2 horas de filme, Sandro tem com Claudia (o papel de Monica Vitti) um dos poucos diálogos de todo o filme em que um personagem consegue transmitir para um outro o que sente.

Estão na praça central de uma cidade da Sicília, em meio a edificações imensas, belíssimas, seculares. E Sandro fala de seu trabalho como arquiteto, como via as possibilidades da profissão como uma coisa quando era bem jovem, e como sua visão foi mudando com o passar dos anos. E então ele diz, diante daquelas construções feitas séculos e séculos atrás: – “Para que servem as coisas belas agora? Quanto duram? Antigamente tínhamos séculos à nossa frente. Hoje no máximo temos 10, 20 anos. E depois?”

Um pouco mais tarde, Sandro está sozinho, passeando na mesma praça, e vê um bloco grande, com o início de um desenho, a reprodução de um detalhe da janela da grande catedral da praça. A uma certa distância estão dois jovens bem jovens. É óbvio que um deles é um estudante de belas artes ou arquitetura. O desenho é bem feitíssimo.

Como que por acidente, Sandro derruba o vidrinho de tinta sobre a página do caderno.

Ciúme. Despeito. Inveja daquele fedelho cheio de talento e sonhos.

O grande cinema é, necessariamente, feito de pequenos detalhes.

zzaventura4

“Impressionou-me a fragilidade dos relacionamentos humanos”       

Quis registrar isso aí acima antes de ler ou reler uma linha sequer de tudo o que já foi escrito sobre o filme. Apenas acrescentei mais tarde aquela sinopse para que o texto ficasse mais compreensível.

Só depois de anotar minhas primeiras impressões é que fui atrás do que dizem os alfarrábios, e fui ver também os extras que a edição – caprichada, cuidadosa – do DVD da Versátil traz.

Diz o verbete do Dicionário de Filmes de Georges Sadoul: “O filme foi assim caracterizado pelo diretor: ‘Impressionou-me a fragilidade dos relacionamentos humanos, a instabilidade moral, política e mesmo física do mundo contemporâneo, onde a física vira a metafísica, onde é tênue a fronteira entre a ciência e a ficção-científica. A cada dia vivemos uma Aventura ideológica ou sentimental. Nosso drama é a incomunicabilidade, e esse sentimento domina os personagens do meu filme, que preferi situar em ambientes ricos porque os sentimentos entre eles não são determinados pelas contigências materiais. São homens e mulheres que tentam levar a vida normalmente, mas se deparam com tantas dificuldades que não conseguem evitar a catástrofe final. Meu filme é tão otimista quanto pessimista. Na última cena…”

E aí Antonioni descreve a última cena de seu filme, o que eu acho um spoiler, mesmo em um filme cuja trama em si, importa pouco – importa muito menos do que a forma com que a história é contada, com que os personagens são apresentados, da importância que se dá aos pequenos detalhes que revelam muito mais do que palavras.

É fascinante, é uma maravilha que, em seu Dicionário de Cinema, o grande historiador e crítico Georges Sadoul (1904-1967) dedique a maior parte do verbete sobre o filme às opiniões de seu criador. Isso é coisa civilizada, de gente grande.

Pulo então a descrição da cena final – emblemática, bela, forte –, e passo para o trecho do verbete em que Sadoul descreve o que mais o impressionou no filme.

“Principais sequências: o desaparecimento de uma jovem durante um cruzeiro; a chegada à Sicília, interrogatório dos carabineiros num antigo palácio; a travessia de uma aldeia nova e vazia; um dia inteiro numa rica mansão aristrocrática; a noitada louca num palácio barroco (real, mas prefigurando Marienbad). Antonioni então estava numa situação muito ruim. Seu filme fora mal acolhido na Itália. Ele foi copiosamente vaiado durante a apresentação em Cannes, mas obteve um prêmio do júri, triunfando depois em Paris, fato que o consagrou como cineasta internacional.”

zzaventura5 - 720

Em 1962, o ano do terceiro filme, Antonioni já era reconhecido mundialmente

Mal acolhido na Itália, copiosamente vaiado em Cannes, mas um triunfo em Paris.

Os tempos estavam mudando, como diria o garoto Bob Dylan, três anos depois.

A Aventura foi indicado a dois Baftas, o Oscar britânico – como melhor filme e com Monica Vitti candidata ao prêmio de melhor atriz estrangeira.

No ano seguinte, Antonioni ganharia o Urso de Ouro de melhor diretor do Festival de Berlim por A Noite. E O Eclipse dividiria com O Processo de Joana d’Arc de Robert Bresson o prêmio especial do júri em Cannes em 1962 – o ano em que foi derrotado no prêmio principal, a Palma de Ouro do melhor filme, ao lado de algumas obras de grande valor, como Tempestade Sobre Washington, de Otto Preminger, O Anjo Violento, de John Frankenheimer, Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda, A Deusa, de Satyajit Ray, Divórcio à Italiana, de Pietro Germi, Electra, de Michael Cacoyannis, Os Inocentes, de Jack Clayton, Longa Jornada Noite Adentro, de Sidney Lumet, Um Gosto de Mel, de Tony Richardson, e O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel…

… por um filme do Tiers Monde, um tal O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte.

Em 1962, o ano de O Eclipse, o último filme da trilogia da incomunicabilidade, Michelangelo Antonioni já era quase unanimemente considerado um dos maiores realizadores do mundo.

O livro Off-Hollywood Movies, de Richard Skorman conta que o filme ficou em sétimo lugar num levantamento entre críticos feito em 1982 pela revista inglesa Sight and Sound – uma publicação que, na Grã-Bretanha, tinha estatura equivalente à que tinha na França os Cahiers du Cinéma.

O autor do livro diz não compreender por que o filme é tão bem avaliado. Segundo ele, A Aventura dá sono: “A maior parte das sequências de ação incluem figuras solitárias caminhando, comendo, ficando de pé e dormindo. Os poucos pedaços com diálogos são cheios dos mais óbvios clichês, refletindo a alienação dos personagens principais.”

zzaventura6

“Um cinema incisivo, mas não para todos os gostos.”

O Guide de Films de outro mestre francês, Jean Tulard, dá 3 estrelas para L’Avventura. O Guide tem uma fórmula que segue fielmente em quase todos os 15 mil verbetes: num primeiro parágrafo, ele apresenta uma sinopse, um resumo da história. No segundo, faz a apreciação crítica.

A sinopse que ele faz de A Aventura é detalhada e, na minha opinião, cheia de interpretações – quando a história contada por Antonioni é propositadamente muito aberta às mais diferentes leituras. Pior ainda: a sinopse conta o fim e dá a interpretação daquele crítico específico que escreveu o texto.

A sinopse detalha, por exemplo, que Sandro fica, numa sequência que se passa ao alvorecer, “amargo e bêbado de desgosto”.

Ora, isso é apenas uma forma de ver o que é mostrado na tela. Não é a única. Qualquer espectador poderia interpretar de outra forma diferente, de outras formas diferentes. Poderia dizer que Sandro fica, naquela exata sequência, “envergonhado e apatetado”. Ou então “atônito, sem compreender o que tinha feito”. Ou então “triste e patético”. Ou então “choroso e surpreso”. Ou então: “espertalhonamente fingindo-se de arrependido”.

O segundo parágrafo do Guide des Films diz o seguinte:

“Tal é o ‘itinerário sentimental’ (palavras de Antonioni) de um casal, a história de dois seres reunidos por acaso, dentro de uma solidão ideal, fora do tempo e longe das falsidades da sociedade, em uma paisagem árida queimada pelo sol”.

O maravilhoso Guide, na minha opinião, não percebeu as muitas grandezas do filme.

Os críticos americanos prestaram bastante atenção a A Aventura.

Me surpreendo ao ver que Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, no tempo em que se vendiam guias de filmes, um bom crítico mas que não é muito chegado a filmes europeus próximos assim de um papo-cabeça, deu ao filme 3.5 estrelas em 4. Diz ele, bastante sucinto, mas sem errar vírgula alguma: “O desaparecimento de uma mulher provoca um exame dos relacionamentos de um grupo de amigos que passeia num iate num fim de semana. Um cinema incisivo, mas não para todos os gostos.”

zzaventura7

“Isso aqui é o neo-realismo da classe alta – a poesia da pobreza moral e espiritual.”

A sofisticada, terrivelmente virulenta Pauline Kael, a prima-donna da crítica americana, demonstra ter dado ao filme a importância que ele merece. Dame Kael era chata, cri-cri, mas, assim como Roger Ebert, ou até mesmo mais que ele, acompanhava de perto o cinema europeu.

Ela escreveu sobre L’Avventura em seu livro 5001 Nights at the Movies. Para o lançamento brasileiro, diminuído e simplificado, o editor e tradutor Sérgio Augusto deixou de fora o filme de Antonioni. O que deixa a meu encargo traduzir o texto cheio de ondas da mulher. É mais ou menos o seguinte o que ela diz:

“Um estudo de Antonioni sobre a condição humana nos níveis sociais e econômicos mais elevados – um estudo sobre os homens modernos ajustados, corretos, atormentados pela breve memória, fino remorso, a capacidade para a traição fácil. Os personagens são ativos apenas ao tentar descartar sua ansiedade; o sexo é seu único meio de contato. Rasos demais para serem verdadeiramente solitários, eles são pessoas que tentam escapar de seu tédio chegando perto do outro – e encontrando de novo o tédio. Como o filme é sutil e ascético, e no entanto penoso a respeito da revelação de seus significados, ele sugere Henry James quando ele “mascou mais do que ele pegou”. Visualmente, é extraordinário: uma calma paira sobre tudo – o espaço de Antonioni é um vácuo em que as pessoas se movem sem direção. Quem procura e quem perdeu são iguais: discrepantes, sem objetivos ou alegria. Isso aqui é o neo-realismo da classe alta – a poesia da pobreza moral e espiritual. Nunca houve nada como isso antes, e não é justo culpar esse filme por todo o elegante sonambulismo e desolação que vieram depois. Há algo grande aqui – um novo clima, um novo ritmo emocional – mesmo com toda a afetação. Lea Massari é a mulher que briga com seu amante, um arquiteto (Gabriele Ferzetti), e então desaparece na ilha desabitada que estão visitando. Monica Vitti é a amiga dela que assume a busca e depois toma o lugar dela com o arquiteto.”

Pauline Kael chama, em seu livro 5001 Nights at the Movies, para uma discussão mais aprofundada sobre o filme em outro livro, I Lost it it at the Movies.

Já falei muito mal aqui de Pauline Kael. De fato, ela sabe perfeitamente ser uma chata, uma cri-cri, e goza muitos filmes que têm suas qualidades. No entanto, quando ela fala de um filme realmente importante, como este aqui, ela mostra como a crítica de cinema pode ser algo grande.

O CineBooks’ Motion Picture Guide dá cotação máxima, 5 estrelas, e começa seu texto com duas afirmações fortíssimas: “L’Avventura é um dos melhores filmes do diretor Michelangelo Antonioni, e um marco no desenvolvimento da narrativa cinematográfica”.

Ah, que maravilha ler isso. Ainda mais numa publicação americana.

Como sou hoje um velhinho, e como aos 15 anos de idade eu via, no mesmo mês, filmes de Michelangelo Antonioni, John Ford, Federico Fellini, Alfred Hitchcock, Pietro Germi, Walter Hugo Khoury, fico absolutamente chocado quando vejo gente dizer que Quentin Tarantino revolucionou como ninguém a linguagem cinematográfica.

Depois que revi agora A Aventura, vi que Martin Scorsese – que, além de diretor brilhante, é um dos mais cultos historiadores do cinema – falou uma frase ótima sobre o filme do conterrâneo de seus pais. “L’Avventura” – ele diz – “me deu um dos choques mais profundos que eu tive no cinema.”

zzaventura8

A idéia do filme surgiu numa viagem de iate, após uma briga de casal

Michelangelo Antonioni e Monica Vitti viveram juntos dez anos, entre 1957 e 1967. Nesse período, fizeram quatro filmes – A Aventura, A Noite, O Eclipse e O Deserto Vermelho. Segundo ela conta, numa deliciosa entrevista a um programa francês que está entre os extras do DVD lançado pela Versátil, foi amor à primeira vista. Conheceram-se num estúdio – ela tinha feito seu primeiro filme três anos antes, em 1954, Ridere! Ridere! Rideri! –, em que ela trabalhava numa dublagem. Ele a viu por trás, e disse: – “Você tem uma bela nuca”.

Não há, infelizmente, a data em que a entrevista foi feita; chuto que deve ter sido em meados dos anos 90 (nascida em 1931, ela sofre de Alzheimer e há 15 anos não aparece em público). Monica Vitti esbanja beleza, charme e uma simpatia absolutamente cativante, respondendo às perguntas do entrevistador numa fantástica mistura de italiano e francês.

Conta ela que A Aventura surgiu a partir de uma viagem de iate que o casal fez, juntamente com um casal de amigos. Pararam numa ilha, uma pequena ilha, e Monica se afastou dos outros três. Tinha tido, durante a viagem, uma pequena briga com Antonioni. Ficou cerca de uma hora e meia longe dos outros.

– “Quando subimos de volta ao iate, ele me disse: – ‘Acho que tenho uma idéia. Por causa dessa fuga.”

Quando ele e Tonino Guerra terminaram de escrever o roteiro (Monica não cita Elio Bartolini), foram atrás de produtores, financiadores. Procuraram todos os grandes distribuidores de filme da Itália – e, antes de encontrar um produtor disposto a botar dinheiro no projeto, ouviram uma imensa coleção de nãos. “Diziam que a história não daria certo.”

Deu um dos filmes mais importantes de todos os tempos.

zzaventura9

Anotação em março de 2016

A Aventura/L’Avventura

De Michelangelo Antonioni, Itália-França, 1960.

Com Monica Vitti (Claudia)

e Gabriele Ferzetti (Sandro), Lea Massari (Anna), Dominique Blanchar (Giulia), James Addams (Corrado), Esmeralda Ruspoli (Patrizia), Lelio Luttazzi (Raimondo), Renzo Ricci (o pai de Anna), Dorothy De Poliolo (Gloria), Giovanni Petrucci (o príncipe Goffredo), Jack O’Connell (o velho pobre na ilha), Angela Tommasi Di Lampedusa (a princesa), Franco Cimino (Prof. Cucco), Ettore (Giovanni Danesi)

Roteiro Michelangelo Antonioni, Elio Bartolini e Tonino Guerra

Argumento Michelangelo Antonioni

Fotografia Fotografia Aldo Scavarda

Música Giovanni Fusco

Montagem Eraldo da Roma

Figurinos Adriana Berselli

Produção Cino del Duca, Produzioni Cinematografiche Europee (P.C.E.), Societé Cinématographique Lyre. DVD Versátil.

P&B, 143 min

R, ****

13 Comentários para “A Aventura / L’Avventura”

  1. Sou cinéfilo ou cinemaníaco. Gosto mais do segundo termo. O primeiro lembra doença. Não vejo mais um clássico sem antes ler a crítica do Sérgio. Perfeito. A Aventura é uma obra de arte. Filme inesquecível. Como já dito, a crítica é perfeita, cirúrgica, sem falhas. Forte abraço.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *