Ator excepcional, dos melhores que há desde que ficou amplamente conhecido em A Lista de Schindler (1993), Ralph Fiennes se mostra sensível, maduro, seguro, tranquilo – e excelente diretor de atores – em seu segundo filme como realizador.
The Invisible Woman (2013), que os distribuidores brasileiros resolveram chamar de O Nosso Segredo, tem, assim como o anterior, ligação com grande nome da literatura inglesa. Coriolano, sua estréia na direção, é uma adaptação – aparentemente cheia de liberdades, com a ação passada nos dias de hoje – da peça homônima de William Shakespeare.
The Invisible Woman é a transposição para o cinema do livro – lançado em 1991 – de autoria de Claire Tomalin, premiada escritora, jornalista e biógrafa inglesa, que depois escreveria também as biografias de Jane Austen, Thomas Hardy e Charles Dickens. O título completo do livro levado às telas por Ralph Fiennes é elucidativo: The Invisible Woman: The Story of Nelly Ternan and Charles Dickens.
Sim: o filme retrata a história real da relação amorosa de 13 anos entre uma jovem, extremamente jovem atriz de teatro, Ellen Lawless Ternan, também conhecida como Nelly Ternan, e o mais festejado, aclamado, respeitado escritor inglês de seu tempo, Charles John Huffam Dickens (1812-1870).
Nelly tinha 18 anos quando os dois se conheceram, em 1857 (ela nasceu em 1839); ele tinha 27 anos mais que ela, estava com 55 anos e a esposa Catherine lhe dera uma penca infindável de filhos.
O próprio Ralph Fiennes interpreta Dickens – e, pelas fotos que se conhecem do grande escritor, a caracterização ficou muito boa. A barba e o cabelo são idênticos aos do personagem real.
Para interpretar Nelly – que, no filme, aparece desde garotinha de 18 anos até senhora de 40 e tantos –, foi escolhida Felicity Jones, e, diacho, é impossível resistir ao trocadalho do carilho: a escolha não poderia ser uma felicidade maior.
Felicity Jones é um encanto, uma maravilha. É mais uma de tantas atrizes talentosas com que as Ilhas Inglesas presenteiam o mundo – e algum dia alguém ainda vai explicar como e por que aquelas ilhas têm essa absurda quantidade de atores de talento por quilômetro quadrado, ou no caso da pequena, geograficamente, Grã-Bretanha, por milímetro quadrado.
A moça tem talento – e beleza – em doses gigantescas.
Uma mulher toda de preto anda depressa pela praia, ofegante
Toda a abertura do filme é excelente, fascinante, desde a primeira tomada – uma plano geral de uma praia deserta, uma daquelas praias, como há em Sergipe, no Maranhão, em que a areia parece não acabar nunca, e o mar fica lá longe, bem distante. Surge então no meio daquele areal sem fim um ponto negro. O plano é tão geral, o quadro abarca tal tamanho de praia, que a princípio o que surge é apenas um pontinho negro. Então, num belo exercício de montagem, há um corte rápido e vemos um close-up de um pedaço de um vestido negro, enquanto ouvimos a respiração um pouco ofegante da mulher que anda muito depressa pela areia da praia, inteiramente vestida como se vestiam as mulheres na Inglaterra da Era Vitoriana, o vestido negro longo, chegando bem perto do chão, as mangas compridas, de forma a não mostrar um pedacinho sequer de pernas ou braços ou colo.
A mulher sai da praia e logo entra no prédio de uma sólida escola interiorana inglesa – um letreiro avisa que estamos em Margate, Inglaterra, 1883. É conhecida então como Ellen Wharton Robinson – e, ao entrar na escola, é recebida pelo diretor, que é o marido dela, Mr. George Wharton Robinson (Tom Burke). Marido-diretor estava apreensivo com a demora da mulher: visitava a escola, naquele momento, o ministro religioso da cidade, o reverendo Benham (John Kavanagh), que viera assistir a um pedaço do ensaio de uma peça que os alunos iriam apresentar dali a alguns dias.
Mrs. Ellen é que dirige os alunos nas aulas de teatro. A peça que estão ensaiando é No Thoroughfare, de Charles Dickens e Wilkie Collins.
Nessa visita do reverendo Benham, é mencionado que Mrs. Ellen é uma estudiosa da obra do grande escritor; tem praticamente todos os seus livros, inclusive algumas edições raras. Mr. George até faz uma brincadeira, dizendo que quase sua casa fica sem espaço nas estantes, tantos são os livros de Dickens que sua esposa possui. Também é mencionado que Mrs. Ellen chegou a conhecer pessoalmente o grande autor – e ela enfatiza que era apenas uma criança quando isso aconteceu.
O filme mostra os fatos em estudada desordem cronológica
O roteiro – de Abi Morgan, que escreveu A Dama de Ferro, a cinebiografia de Margareth Thatcher, e a série da TV inglesa The Hour – faz a ação ir para a frente e para trás no tempo, mas apenas situa, em letreiro, a data inicial, 1883. Só os estudiosos da vida de Charles Dickens saberão, ao assistir ao filme pela primeira vez, os anos em que se passam os vários episódios que veremos apresentados em estudada desordem cronológica.
Claro: agora, ao escrever esta anotação, depois de ter feito alguma pequena pesquisa, dá para estabelecer algumas das datas que o filme não especifica.
Em 1883, o ano em que a narrativa começa, a então senhora Ellen Wharton Robinson, esposa de diretor de escola de pequenino lugarejo praiano, professora diletante de teatro, mãe de um garoto aí de uns 12 anos, estava com 44 anos.
Charles Dickens havia morrido em 1870 – 13 anos antes, portanto. A jovem Nellie e ele haviam se conhecido em 1857, e ficaram juntos até o fim da vida dele, ao longo de outros 13 anos.
O filme mostra o primeiro encontro entre os dois – a maior parte dos 111 minutos de duração é dedicada aos primeiros anos da relação entre a jovem atriz e o escritor famosérrimo. Aparecem entremeadas ao passado várias sequências em que ela está casada, mãe de família, em Margate, em 1883, mas é a menor parte do filme.
Já extremamente famoso, vários livros publicados, Dickens mantinha forte ligação com o teatro, e trabalhava, ele mesmo, como ator e diretor em diversas peças escritas por ele em parceria com o grande amigo Wilkie Collins (Tom Hollander). É, pelo que o filme mostra, uma faceta importantíssima da vida do escritor – e eu, na minha imensa ignorância, nunca soube disso.
Dickens e Collins tinham uma companhia teatral. E chamam para atuar com eles uma atriz de alguma fama, a senhora Frances Ternan – o papel da sempre maravilhosa Kristin Scott Thomas (na foto abaixo). Frances era viúva de um ator de teatro e suas três filhas também atuavam. A primogênita e a caçula, Maria e Fanny (Perdita Weeks e Amanda Hale), eram reconhecidamente talentosas. A do meio, Ellen, ou Nelly, como era chamada na família, não tinha esse dom – mas era belíssima e, pelo que o filme mostra, tinha grande inteligência, era muito sensível e lia vorazmente.
Há fatos bem explicitados e outros não, num belo jogo de luz e sombras
O roteiro escrito por Abi Morgan é propositalmente pouco explícito em diversas passagens da história. Por exemplo: nada é dito sobre como a ex-atriz – que foi amante do escritor mais popular da Inglaterra, num caso rumoroso, que chegou aos jornais e foi objeto de comentários e fofocas sem fim – conheceu esse senhor caretinha, bem ajustado, benquisto pela sociedade de sua cidade, diretor de escola, e se tornou esposa dele. Não era absolutamente comum a existência de um homem tão íntegro, tão correto, tão à frente de seu tempo e lugar, que admitisse a hipótese de casar com uma mulher, digamos, maculada.
Pelo amor do bom Deus: que o eventual leitor entenda que esse não é um julgamento que eu estou fazendo de Nelly, ou que eu faria de qualquer mulher que tivesse tido um amante, ou dez ou 20 amantes. É o julgamento que se fazia na sociedade de então, 1870, 1880, a Era Vitoriana, uma época de moralismo rígido, calhorda, imbecil, infernal.
O filme mostra o casamento de Nelly com George Wharton Robinson de tal maneira que ficam abertas possibilidades diferentes. Pode ser que George não tenha de fato conhecimento do passado da sua mulher. Ela usou um nome diferente do verdadeiro, depois que se tornou amante de Dickens. Pode ser também que George tenha sabido de parte da história dela, e que fosse de fato um homem de bons princípios, à frente de seu tempo.
Mostra-se com bastante clareza, no entanto, que Frances, a mãe de Nelly, percebe desde sempre que o grande escritor está fascinado pela filha bela. Mostra-se também explicitamente que Frances não tem propriamente interesse em basear seu sustento e o sustento das filhas no dinheiro do homem famoso e rico – mas ela sabe que as duas outras filhas têm talento e poderão viver do teatro, enquanto Nelly não é boa atriz.
E então ela, a mãe, abre espaço para que Dickens vire o mantenedor da família.
O fantástico é que ela não conversa com a própria Nelly sobre o assunto. Não abre o jogo com ela – o motivo para que Dickens pague todas as despesas de Nelly, as irmãs e a mãe.
É bastante fascinante como o roteiro joga com coisas ditas explicitamente com coisas nada claramente mostradas. É um belo jogo de luz e sombras.
A atriz que faz a mulher de Dickens está excelente. E Felicity Jones… Ah…
Achei especialmente interessante o retrato que o roteiro faz de Catherine, a mulher do escritor, Catherine (interpretada por Joanna Scanlan).
O casamento dos dois é mostrado exatamente daquele jeito nada explícito-muito insinuado. Não é um casamento feliz. Muito provavelmente Dickens casou-se com Catherine muito jovem, ainda não rico, ainda não famoso, ainda não coisa alguma. Tendo virado o escritor mais aclamado de seu país, foi passando a se distanciar da mulher com que havia se casado – e até a desprezá-la. Ela foi engordando, eles foram se distanciando – mas ele ia lá e fazia mais um filho. Foram dez!
No filme, Dickens diz que Catherine não compreende uma frase do que ele diz. No entanto, o espectador vê uma Catherine muito inteligente, sensível, uma pessoa que percebe muito bem tudo o que acontece ao seu redor..
A atuação de Joanna Scanlan como Catherine é extraordinária.
Volto a Felicity Jones.
Me encantei com ela pela primeira vez em 2009, ao ver Reflexos da Inocência/Flashbacks of a Fool (2008). Ela dá um show como uma garotinha apaixonada por David Bowie e Roxy Music, que se maquila e se veste imitando seus ídolos do glam rock. Depois a vi em Caindo no Mundo/Cemetery Junction (2010): ela fez uma garota rica, filha dos personagens interpretados por – vejam só! – Ralph Fiennes e Emily Watson, que simpatiza com um garoto da working class.
Em 2013, além de neste filme aqui, ela trabalhou em Paixão Inocente/Breathe In. Sobre Breath In, anotei que “a beleza de Felicity Jones é a melhor coisa” do filme.
Logo em seguida, ela fez o papel da jovem Jane, que se casaria com o garotão Stephen Hawkins, em A Teoria do Tudo (2014). Por esse papel, a jovem atriz inglesa teve uma indicação ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor atriz. Eu apostaria que essas foram as primeiras de muitas indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro. A moça é sensacional. Já coleciona 8 prêmios e outras 29 indicações.
É fascinante que, em Caindo no Mundo/Cemetery Junction, ela interprete a filha do personagem de Ralph Fiennes, e aqui faça a amante do personagem interpretado pelo ator. A diferença de idade entre Fiennes (51 anos no lançamento do filme) e Felicity (30) é de 21 anos – um pouquinho menor que a diferença entre Dickens e Nelly.
Achei que a página de Trivia (informações, curiosidades, tudo) do filme no IMDb fosse riquíssima. Ledo engano. Só há uma nota, exatamente sobre essa coisa da diferença de idade entre os dois. Diz o IMDb que, numa entrevista com a dupla, Felicity disse que era “esquisito” e “muito freudiano” o fato de que eles foram num primeiro filme pai e filha, e agora amantes. Fiennes discordou dela, dizendo: “É só um trabalho, pelamordeDeus!”
Não há registro de que Ralph Fiennes tenha comido a moça. Não que isso tenha qualquer tipo de importância, mas, ainda segundo o IMDb, tanto ela quanto ele são solteiros. Jamais se casaram.
A vida de Dickens é tão rica quanto as histórias que ele criou
Num diálogo entre Dickens e Nelly, quando eles ainda estavam começando a se conhecer, ele conta para ela que seu pai havia sido preso por dívidas. Na Inglaterra dos anos 1800, dever dinheiro era crime punido com prisão.
Um dos grandes romances de Charles Dickens, Little Dorrit, mostra a vida numa prisão em que estão pessoas que não conseguiram pagar suas dívidas. Little Dorrit, assim como boa parte das obras do autor, já virou filme e série de TV. Uma maravilhosa adaptação foi feita em 2008 pela mesma BBC que foi uma das produtoras deste filme aqui.
Dickens conheceu bastante da absoluta miséria dos absolutos miseráveis da Inglaterra do século XIX – e um dos motivos pelos quais é um dos escritores mais importantes de todos os tempos é o exatamente o fato de ter denunciado tão bem, tão vivamente, tão profundo conhecedor que foi daquilo, o absurdo da miséria.
Os livros de Dickens podem muito bem ser usados como uma condenação absoluta do capitalismo, esse sistema perverso de estruturação da sociedade que permite a existência de tanta miséria e a de multimiliardários.
A vida de Dickens, no entanto, pode muito bem ser usada como uma absoluta defesa de um sistema aberto à ascenção social de quem se empenhar em ter algum mérito.
Dickens trabalhou em fábrica, naquela época em que a então jovem revolução industrial era absolutamente cruel com os trabalhadores manuais das fábricas. Mas aí ele de alguma maneira estudou, e virou auxiliar de advogado, e depois repórter de jornal. Como tinha excepcional talento de criador e contador de histórias, ficou riquíssimo.
Não pretendo dizer, naturalmente, que só quem é genial consegue sair da miséria. Apenas enfatizo o princípio: o mesmo sistema que promoveu o fosso absurdo entre ricos e miseráveis na Inglaterra do século XIX permite a ascensão de quem se empenhe.
A ligação de Ralph Fiennes com Dickens parece ser grande. Ainda em 2012, o ator fez o papel de Magwitch, um dos personagens centrais de Grandes Esperanças/Great Expectations, em uma nova adaptação do romance para o cinema. Em 1946 mestre David Lean dirigiu uma adaptação, e em 1998 o mexicano Alfonso Cuarón fez outra, trazendo a história para aquela época.
Não há um ano sequer em que não seja lançada uma nova adaptação de romance de Charles Dickens. Gênio é gênio. O fantástico é ver que a vida dele é rica como as histórias que criou.
Anotação em maio de 2015
O Nosso Segredo/The Invisible Woman
De Ralph Fiennes, Inglaterra, 2013
Com Felicity Jones (Mrs. Ellen Wharton Robinson, antes Nelly Ternan), Ralph Fiennes (Charles Dickens), Kristin Scott Thomas (Mrs. Ternan), Tom Hollander (Wilkie Collins), John Kavanagh (reverendo William Benham), Tom Burke (Mr. George Wharton Robinson), Joanna Scanlan (Catherine Dickens), Michael Marcus (Charley Dickens), Perdita Weeks (Maria Ternan), Amanda Hale (Fanny Ternan)
Roteiro Abi Morgan
Baseado no livro de Claire Tomalin
Fotografia Rob Hardy
Música Ilan Eshkeri
Montagem Nicolas Gaster
Produção BBC Films, Headline Pictures, Magnolia Mae Films, Taeoo Entertainment.
Cor, 111 min
***
Filme delicado e profundo. Gostei muito.
Muito boa sua percepção do filme, em relação às cenas, ao roteiro, aos personagens enfim de toda a obra.. uma boa leitura de todo aquele contexto histórico vivenciado numa época exacerbadamente moralista, romântica e até inóspita por assim dizer, com menções de doença e pobreza.