Homens, Mulheres e Filhos foi um tremendo fracasso de público e crítica. A internet traz várias informações que demonstram isso. Na minha opinião, é uma obra-prima, um filmaço. Uma daquelas coisas raras, especiais, que emocionam, fazem pensar, mexem profundamente com nossos sentimentos e pensamentos.
É dos grandes, dos maiores.
Fala sobre como os recentes avanços da tecnologia da informação – o computador, a internet, o celular, as redes, o contato imediato e remoto com grandes grupos de pessoas – mexeram profundamente na forma com que as pessoas se relacionam, se expressam. Como tudo isso afetou a vida em família, o relacionamento entre pais e filhos, como tudo isso mexeu com a forma com que tratamos os afetos, e, em especial, o sexo.
Nisso, ele faz lembrar um pouco outros dois grandes filmes recentes, ela/her, de Spike Jonze (2013) e Medianeras, de Gustavo Taretto (2011).
No entanto, este Men, Women & Children é muito mais abrangente, amplo, e, por que não dizer?, ambicioso, pretensioso do que aqueles dois filmes que também são especialmente bons.
O filme do garoto prodígio Jason Reitman se baseia em uma novela de Chag Kultgen (o livro foi lançado no Brasil pela editora Record); o roteiro é do próprio Jason Reitman e da também jovem Erin Cressida Wilson. Não tenho idéia alguma sobre o quanto o roteiro é fiel ao livro, ou se apenas a partrir dele os roteiristas tomaram muitas liberdades.
O filme mostra um grupo grande de pessoas de uma cidade americana não identificada (propositadamente não identificada, para demonstrar que pode ser qualquer uma, embora o nome do Estado do Texas vá ser citado) como um microcosmo que representa o macro, ou seja, que é igual ao que acontece no país inteiro, e por extensão em boa parte do planeta.
E é exatamente do planeta que o filme trata.
Usa uma cidade americana como a célula de um organismo muito maior – o planeta.
A velha lição básica: se você quiser ser universal, fale do que você conhece, a sua aldeia. Ao falar da sua aldeia, você fala do mundo.
Men, Women & Children é uma complexa, profunda, séria meditação sobre o que estamos fazendo com nossas vidas a partir do momento em que todo o admirável novo mundo global se integrou ao nosso dia-a-dia via telefone celular – relacionando tudo isso ao fato de que nosso planeta é do tamanho de um pozinho da poeira do cocô do cavalo do bandido, e então, o que é cada um de nós?
Quando a Voyager saía do Sistema Solar, Don tentava se masturbar
O espectador ouve diferentes vozes, falando nas mais diversas línguas, antes mesmo que a narrativa comece. Desde o momento em que surge na tela o logotipo da Paramount Pictures, e em seguida, enquanto surgem os logos das outras empresas produtoras, ouvimos essa Babel de vozes.
As primeiras imagens que vemos são de uma sonda espacial flutuando no espaço. Ela passa por Marte, depois a vemos passando por Saturno e seus anéis. É um visual espetacular, e vão surgindo os créditos iniciais. Os créditos ainda estão rolando quando surge a voz de uma narradora. É uma voz linda, límpida, em inglês britânico muitíssimo bem pronunciado, em que ouvimos com perfeição cada sílaba. Imbecil, não reconheci: é a voz de Emma Thompson! O nome dela aparece nos créditos iniciais, e ela não está no elenco. Mas o filme tem tantos personagens, tanta ação, que, enquanto via, esqueci que tinha visto o nome de Emma Thompson nos créditos iniciais. Só ao final foi que me caiu a ficha.
A voz maravilhosa de Emma Thompson fala um texto tão belo quanto ela, quanto sua voz:
– “Em 5 de setembro de 1977, a Nasa lançou a nave Voyager, destino desconhecido, tendo como única carga um disco organizado pelo astrônomo Carl Sagan, projetado para durar um bilhão de anos e para oferecer aos extra-terrestres uma idéia do que é a humanidade. (…) Incluía música internacional, saudações em 50 línguas (as vozes ao fundo vão sendo substituídas por um tema de jazz), o som das ondas do mar, do vento entre os galhos de carvalhos, o canto das baleias, o som do coração humano, o som de um beijo.”
Vemos agora uma casa, um sólido sobrado de dois andares; depois veremos Adam Sandler sentado diante de um computador, enquanto a voa de Emma Thompson vai continuando a narrar:
– “Às 12h15, no horário central padrão, quando a Voyager chegava aos limites do nosso Sistema Solar (isso ocorreu em 2013, como será dito mais tarde), aqui na Terra, em um subúrbio qualquer, Don Truby tentava se logar no bangbus.com, um site pornográfico, com jovens atrizes interpretando meninas pedindo carona. Mas o acúmulo de vírus havia inutilizado seu computador. Don chegou a pensar em se masturbar usando apenas sua imaginação, mas a qualidade e a variedade oferecidas na internet tinham transformado o cérebro dele em um substituto inferior.”
E aqui entra, por trás da voz da narradora, “Wigwam” uma canção sem letra e alegre de Bob Dylan (sim: o cara já fez umas cinco ou seis canções bastante alegres, e umas cinco ou seis sem letra, na sua obra de mais de 500 títulos). E vemos Don Truby-Adam Sandler entrando no quarto do filho dele.
– “A fim de acessar a fonte ilimitada de pornografia com a qual ele havia ficado acostumado, Don teria que o usar o único outro computador da casa. O que pertencia a seu filho de 15 anos.”
Don checa os últimos sites que seu filho Chris havia acessado. Dezenas de sites pornô.
São cerca de 15 personagens, e não há um protagonista – todos são importantes
Daí a pouco corta, e estamos na escola em que Chris Truby e seus amigos e conhecidos estudam. A sequência é impactante, fortíssima, de babar: vemos dezenas e dezenas de garotos e garotas andando pelos corredores da escola, todos com o celular diante de si, digitando coisas – e, acima da cabeça dos meninos, imagens de telas de celulares, caixinhas de diálogos dos diversos aplicativos de diálogos online, WhatsApp e seus congêneres.
Ao longo de todo o filme, enquanto os adolescentes e também os adultos digitam textos nos celulares e laptops, surgirão na tela caixinhas de diálogo com as palavras que vão sendo digitadas.
É um brilho.
(Um brilho, sem dúvida, mas acabou me atrapalhando um pouco, porque eu me dividia entre ler o original no alto da tela e as legendas em português. E é aquele inglês de adolescente, em que u é you, um tanto enrolado até a gente se acostumar…)
Com absoluta maestria, o filme nos apresenta então, em apenas uns dez minutos, os principais personagens da história. Não são poucos, e o espectador pode perfeitamente ficar um pouco zonzo de início. São uns 15 personagens, mas não há propriamente um protagonista; uns aparecem um pouco mais, outros um pouco menos, mas são todos importantes.
É quase um mosaico, uma estrutura multiplot, à la Short Cuts, com a diferença de que todos se conhecem. O ponto de união de todos é justamente a escola, a high school em que estudam os adolescentes, todos aí na faixa dos 15 anos, o ponto de ebulição sexual, os hormônios à toda.
Então temos a família Truby: o pai, Don (o papel de Adam Sandler, que está ótimo), a mãe, Helen (Rosemarie DeWitt), e o filho mais velho, Chris (Travis Tope). Há também um filho mais novo, mas esse pouquíssimo aparece, não é importante na história.
Chris joga futebol americano – uma das características daquela escola é o ótimo time de futebol americano – e se masturba, não necessariamente nessa ordem. Ainda é virgem, como boa parte dos meninos e meninas da sua classe. Tem uma certa fascinação por Hannah, de quem falo daqui a pouco, e chegará a ficar próximo dela. A questão é que Chris se envolveu tanto com o sexo feérico do mundo virtual que terá problemas no mundo real.
Don e Helen são boas pessoas. Isso é nítido, claro. São gente do bem, mas o casamento, de aí uns 16 anos, não vai muito bem. Caiu na mesmice, na rotina, e os dois vão deixando correr desse jeito, sem tentar conversar, ver se dá um jeito de fazer as coisas melhorarem. Helen parece nunca estar a fim de sexo, ao contrário de Don, que acaba ficando – perdão pelo trocadilho infernal, mas inevitável – na mão. Eventualmente, quando o filme já lá vai para mais da metade, terão aventuras fora de casa, os dois.
Achei extremamente interessante que os dois roteiristas, Jason Reitman e e Erin Cressida Wilson, um homem e uma mulher, os dois bem jovens, tenham desenhado Don como um homem que, antes do sexo, quer conversar, quer de alguma forma se conectar, se comunicar com a parceira. E tenham criado uma mulher que é muito mais direta, curta e grossa, que quer chegar logo à hora do sexo, numa troca das atitudes que são consideradas as mais típicas de cada gênero.
Ao final, haverá um diálogo entre Don e Helen que mexe profundamente com cada espectador que já foi casado, que já amou, que já traiu ou foi traído. É um brilho, um espanto.
Jennifer Garner faz uma mãe paranoica, que controla todos os movimentos da filha
Em outra família, temos Patricia, a mãe, e Brandy, a filha. O marido aparece, até tem uma fala, mas não é importante na história. Patricia (o papel de Jennifer Garner) é uma mãe absolutamente paranóica, que vê estupradores, molestadores de garotas adolescentes em tudo e todos, e entende que é seu sagrado dever defender Brandy (Kaitlyn Dever, fascinante) de todos os perigos do mundo. Patricia – que é professora no colégio em que os meninos da história estudam – exerce um controle diabólico sobre a vida da filha. Examina o Facebook dela, lê todas as mensagens que ela recebe e envia, verifica o celular dela algumas vezes por dia, decide quem pode ser amigo dela nas redes sociais e quem não pode, mantém uma vigilância permanente sobre cada movimento da filha.
Brandy é uma adolescente bem bonita, e bastante interessante. Entre as meninas personagens do filme, é a mais simpática, mais cativante. É inteligente, sensível; lê livros sem parar.
Parece não se importar muito com a mãe ditatorial que faz de tudo para controlar sua vida. Na verdade – o espectador verá isso quando o filme já passou da metade –, ela descobriu uma forma de fugir desse controle da mãe. Encontrou uma forma – como ela dirá para o garotão Tim – de ser ela mesma. Relatar que forma é seria dar um spoiler.
O garotão Tim, gênio do futebol, pára de jogar. Ele viu o vídeo do pale blue dot
E então temos o garoto Tim Mooney (Ansel Elgort, na foto abaixo).
Disse acima que esta é uma história quase multiplot, sem um protagonista, em que todos os cerca de 12, 15 personagens são importantes. É verdade, mas Tim é um dos personagens mais fundamentais da história.
Tim é um gênio nato do futebol americano. Era o melhor jogador do time da escola – e, como já foi dito, a excelência no futebol americano é uma das marcas registradas da escola. No entanto, ele resolveu parar de jogar, sair do time. Comunicou a decisão ao técnico, e os diretores da escola o chamaram, tentaram demovê-lo da idéia maluca, mas Tim foi firmíssimo: não queria mais saber de futebol.
Enfrentou o ódio dos colegas por causa disso. Mas continuou firme.
O pai, Kent (Dean Norris), ele mesmo um apaixonado absoluto pelo futebol, que havia jogado muito na juventude, e no fundo invejava o talento fantástico do filho, não sabia o que fazer. Kent, pessoa boa, bom caráter (este é um filme em que a maioria das pessoas é boa, de boa índole, boa gente), estava ele mesmo vivendo uma crise, e sabia que seu filho também estava abalado: a mulher dele, mãe do garotão, havia abandonado os dois de repente, e se mudado para a Califórnia para viver com um outro sujeito. Pai e filho, cada um de sua maneira, sofriam horrores pelo súbito, inesperado, e, conforme o filme mostra, bastante cruel jeito com que a mulher havia sumido de suas vidas.
Além do fato de ter sido abandonado de repente pela mãe, o garotão Tim sofre porque viu no YouTube o filmete sobre o pale blue dot, o ponto azul claro, e isso o deixou tremenda, fantasticamente impressionado.
O pale blue dot é uma das chaves da história, do filme. Voltaremos a ele em seguida.
Tim é sensível, boa gente. Tem atração por Brandy, que é uma garota sensível como ele. Irão se aproximar, o ex-ídolo das torcidas e a garota da mãe dominadora, castradora. Irão se aproximar mais, e de maneira mais sensível e sólida, do que qualquer outra dupla de homem e mulher mostrada no filme.
Allison é tímida e magérrima; a mãe de Hannah explora a beleza da filha
Allison é extremamente tímida e extremamente magra. Tem um problema sério com magreza e comida. Não parece a coisa clássica da aneroxia. Ela sente atração por comida – mas pede a ajuda da patrulha pró-magreza total nas redes sociais para não ceder à vontade de comer.
Allison, que no filme é louríssima, é interpretada por Elena Kampouris, que aparece com cabelo negro em fotos do IMDb. É uma garota lindíssima pelo que mostram as fotos do grande site enciclopédico, mas no filme parecem ter trabalhado para esconder a beleza da moça.
Ela tem uma paixonite por um garotão bonito da escola. Terá com ele a primeira experiência sexual – e depois virá uma quase tragédia.
Os pais da garota não são más pessoas. A imensa maioria dos personagens do filme, repito, é gente boa, gente como a gente. A mãe aparece bem pouco. Do pai, sequer ficamos sabendo o nome – mas é uma figura simpática, interpretada pelo excelente J.K. Simmons, que demonstra amor genuíno pela filha. A questão é que, com os adolescentes, não basta o amor genuíno dos pais. Há momentos em que acontece um blecaute, um apagão. Ninguém é culpado, mas o blecaute acontece, e os filhos da gente se distanciam, vão para algum canto bem distante do universo, bem longe do nosso sistema solar.
E então temos, finalmente, entre os personagens principais da história, Donna e Hannah Clint.
Quando muito jovem, Donna (Judy Greer) achou que poderia ser uma modelo de sucesso, quem sabe uma estrela de cinema. Foi para Los Angeles, apresentou-se para trocentas agências de modelos e aspirantes a atores, deu para vários homens em posição de ajudá-la na dura escada da vida. De um produtor, ficou grávida. Teve a sorte de que o produtor não era um filho da mãe, e sempre proveu a moça e o rebento de cheques mensais; Donna então voltou para sua cidade natal.
O rebento, na época em que se passa a ação, 2013, o ano em que a sonda Voyager finalmente deixou o Sistema Solar, está com uns 15 anos. Hannah (Olivia Crocicchia, na foto acima) é um absoluto nojo, uma pustema, um ser que não serve para coisa alguma: é egocêntrica, vaidosa, metida, só pensa em sucesso, em ser estrela, não tem apreço por qualquer bom valor.
Em boa parte, ela é o resultado da criação da mãe.
Já fazia algum tempo que Donna fotograva a garotinha Hannah e a expunha num blog. Não absolutamente nua, não, de forma algumas – mas com as coxas e o colo, o desenho do alto dos peitões, à mostra.
Nada propriamente assim pornográfico – afinal, o que as fotos mostravam era o que todo mundo que ia ao estádio ver os jogos do time de futebol da escola viam ao vivo e em cores. Hannah era uma das muitas cheerleaders, aquelas moçoilas que ficam fazendo coreografias no campo, incentivando o time e sua torcida.
Só que Donna tinha descoberto uma forma de ganhar um dinheirinho extra, para se somar ao que vinha de Hollywood nos cheques do papai jamais presente. Em áreas fechadas do site, publicava fotos um pouquinho mais picantes de Hannah, mediante pagamento de voyeurs mais exigentes – para não dizer pedófilos.
O filme mostra que Donna não agia assim propriamente por mal. A rigor, ela não tinha idéia de que estava sendo fornecedora da indústria da pedofilia. Achava aquilo tudo muito normal. O mundo é assim, a internet está cheia de fotos mesmo…
Ao sair do Sistema Solar, a Voyager fez uma foto da Terra: um pontinho minúsculo
Como já foi dito lá bem mais para cima, o filme consegue, com brilho, apresentar todos esses personagens nos primeiros dez minutos, logo após aquela abertura brilhante que começa com a sonda Voyager.
Depois de nos apresentar essas famílias, esses personagens, o filme, ali pelos seus 12 minutos, volta à sonda espacial.
Vemos novamente as imagens da Voyager no espaço, e a voz deslumbrante da narradora nos conta:
– “No dia 27 de setembro de 2013, depois de 36 anos de viagem pelo espaço, a Voyager finalmente saiu no nosso Sistema Solar e entrou em território não mapeado. Mas não antes de tirar esta foto da Terra, de 3,7 bilhões de milhas.”
Vemos a foto tirada pela Voyager quando ela estava além de Plutão, saindo do Sistema Solar, a 3,7 bilhões de milhas de casa. Mais de 6 bilhões de quilômetros. A Terra aparece como um pequeniníssimo ponto, um ponto azul claro. A pale blue dot.
Um trechinho do vídeo em que o astrônomo Carl Sagan fala sobre essa foto feita pela Voyager está de fato no YouTube. Foi esse pequeno trecho que o garotão Tim Mooney viu no YouTube e aí ficou tremendamente perturbado. Após ver o vídeo que mostra que nosso planeta inteiro, nosso mundo, a Terra, é pequena como um pedacinho da poeira do cocô do cavalo do bandido, Tim entrou em parafuso. De que serve jogar futebol?, ele se perguntou, se tudo o que acontece neste planeta não tem a menor, a mais mínima importância na ordem das coisas neste universo tão vasto, no qual somos nada mais de ínfimos vermes num pedaço da poeira do cocô do cavalo do bandido?
Estamos aí com uns 15 minutos de filme. Corta a seqüência em que aparece a Terra como um ponto azul claro, a pale blue dot, e estamos num shopping center. Centenas e centenas de pessoas andam pelos corredores mandando textos para pessoas que estão longe, indiferentes às pessoas que estão ali bem perto delas.
Hannah, a egocêntrica que só pensa em ser estrela, responde a uma amiga dizendo que está no shopping com a vaca da mãe.
É extremamente estranho, incompreensível, como um filme tão absolutamente genial tenha sido tamanho fracasso de crítica e público.
“Temos que ser mais amáveis uns com os outros, e preservar o pálido ponto azul”
Jamais tinha ouvido falar de Pale Blue Dot, o livro de Carl Sagan lançado em 1994. Nunca tinha ouvido falar em Pale Blue Dot, a foto feita pela Voyager. Sou um absoluto ignorante.
No filme, Tim pergunta a Brandy se ela já tinha visto Pale Blue Dot no YouTube, e ela responde que já ouviu falar em Carl Sagan, mas só isso.
Mais tarde, Tim é levado ao psicólogo da escola. A seqüência é maravilhosa. Tim estava passando boa parte da sua vida em jogos grupais da internet. A rigor, passava quase tanto tempo na vida virtual quanto na vida real. Aí ele menciona as letras RL, o psicólogo não entende, e Tim tem que explicar: real life, vida real.
Tim menciona Pale Blue Dot, e o psicólogo pergunta se aquilo é coisa de vida real ou vida virtual, e Tim explica que é um filme que tem no YouTube, com Carl Sagan falando.
Depois que terminei, absolutamente maravilhado, de ver esta obra-prima, fui à internet atrás de informações sobre Pale Blue Dot.
Meu queixo caiu. Carl Sagan é de fato um total brilho.
Não sabia muito sobre Carl Sagan. Claro, sabia quem era, lembrava do rosto dele; alguns meses atrás, revi Contato/Contact (1997), beleza de filme baseado em livro dele. Vi o primeiro episódio da nova versão de Cosmos, a série criada originalmentepor ele, e fiquei encantado.
Mas o fato é que tinha um conhecimento muito pequeno e superficial de Carl Sagan.
Carl Sagan é boa parte da maravilha deste filme maravilhoso.
O filme termina (e isso não é spoiler) com a voz extraordinária de Emma Thompson lendo um trecho do livro de Carl Sagan sobre o ponto azul claro.
Lendo a íntegra na internet, dá para perceber que Ivan Reitman editou o texto, pulou alguns trechos, deixou para Emma Thompson ler apenas parte dele, o que pareceu mais essencial.
É um texto genial. Eu ousaria dizer que Carl Sagan escreve tão bem quanto Machado de Assis, quanto Graciliano Ramos, quanto Ian McEwan – cada frase é um poema.
Tudo se refere à Terra, o ponto minúsculo na foto tirada pela Voyager quando ela estava para sair do nosso sistema solar, a mais de 6 bilhões de quilômetros de distância.
Eis a íntegra do trechinho do livro Pale Blue Dot do qual Emma Thompson lê algumas frases ao final deste filme extraordinário:
“Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todas as pessoas que você ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada superstar, cada “líder supremo”, cada santo e pecador na História da nossa espécie viveu ali – em um grão de pó suspenso num raio de sol.
“A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios.
“As nossas posturas, a nossa suposta auto-importância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós mesmos.
“A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto.
“Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos até hoje.”
Não dá para entender como essa beleza de filme foi fracasso tão grande
Quando o filme terminou, Mary e eu estávamos absolutamente chocados por tanta beleza. Fiquei impressionadíssimo ao ver, numa passada pela internet, que o filme foi bombardeado pela crítica e teve uma passagem absolutamente inglória pelos cinemas americanos, segundo conta a Wikipedia.
Lá está dito que o filme estrou no Toronto International Film Festival em 6 de setembro de 2014, para depois ser lançado em apenas 17 salas em 1º de outubro. No dia 17 de outubro, chegou a 608 cinemas. Acabou rendendo nas bilheterias americanas ridículos US$ 705 mil, mais US$ 1.534.627,00 no mercado externo, resultando uma bilheteria total de US$ 2.240.535, bem abaixo dos US$ 16 milhões que custou.
No Brasil, não é que o filme tenha sido ignorado. Li agora, depois de ver o filme e escrever a maior parte desta anotação, boas matérias no Estadão (Elaine Guerini), O Globo (André Miranda) e Veja (Isabela Boscov). São textos informativos, trazendo dados importantes, sem meter o pau no filme – ao contrário, o tom geral é de elogio. Mesmo assim, parece que também aqui o filme não teve sucesso de público.
Um detalhe me chamou a atenção: nenhum desses três textos sequer menciona Carl Sagan. Interessante, porque me pareceu fundamentais na estrutura toda do filme as referências ao astrônomo, à Voyager, à pequenez de nosso planetinha.
“A nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros”, escreveu Carl Sagan.
É bem disso que trata Men, Women & Children. Os atos grotescos de dois dos pais que quase resultam em tragédia, bem ao final da narrativa, em especial, levam a isso. Tudo o que acontece nas relações entre as pessoas, ao longo do filme, levam a isso: temos que ser mais amáveis uns com os outros.
Podemos não saber quem somos, onde estamos, para onde vamos, mas disto precisamos saber: já que estamos mesmo aqui, nossa responsabilidade é sermos mais amáveis uns com os outros.
Anotação em agosto de 2015
Homens, Mulheres e Filhos/Men, Women & Children
De Jason Reitman, EUA, 2014
Com Adam Sandler (Don Truby), Rosemarie DeWitt (Helen Truby), Travis Tope (Chris Truby),
Jennifer Garner (Patricia Beltmeyer), Kaitlyn Dever (Brandy Beltmeyer),
Judy Greer (Donna Clint), Olivia Crocicchia (Hannah Clint),
Dean Norris (Kent Mooney), Ansel Elgort (Tim Mooney),
Elena Kampouris (Allison Doss), J.K. Simmons (o pai de Allison),
Dennis Haysbert (o homem do encontro às cegas de Helen), Timothée Chalamet (Danny Vance), David Denman (Jim Vance), Katherine C. Hughes (Brooke Benton), Will Peltz (Brandon Lender)
e a voz de Emma Thompson (a narradora)
Argumento e roteiro Ivan Reitman e Erin Cressida Wilson
Baseado na novela de Chad Kultgen
Fotografia Erick Steelberg
Montagem Dana E. Glauberman
Casting John Papsidera
Produção Paramount Pictures, Right of Way Films. DVD Paramount.
Cor, 119 min
****
Amei esse filme e eu ate chorei