Os Sinos de Santa Maria, que Leo McCarey lançou em 1945, é provavelmente o mais capriano dos filmes que Frank Capra não dirigiu. Foi feito em glorioso preto-e-branco, mas é totalmente cor-de-rosa. Nele as pessoas são boas e o bem prevalece.
É como o mundo deveria ser. É uma utopia, um conto de fadas, uma cantiga natalina.
É uma delícia.
Os guias, os livros se referem a Os Sinos de Santa Maria como a continuação de O Bom Pastor/Going My Way, lançado um ano antes. Não é exatamente uma continuação: é uma segunda história com o personagem central, o padre O’Malley, interpretado – com graça, com imensa simpatia – por Bing Crosby.
Não há referências ao primeiro filme, e o espectador não precisa ter visto O Bom Pastor para ver Os Sinos de Santa Maria. São histórias absolutamente independentes uma da outra.
Em O Bom Pastor, o jovem padre O’Malley chega a uma nova paróquia, a St. Dominic’s para auxiliar o veterano padre Fitzgibbon (interpretado pelo ótimo Barry Fitzgerald, o inesquecível Michaleen Flynn de Depois do Vendaval/The Quiet Man). A princípio, é claro, os dois não se dão bem. A igreja também não anda nada bem: nos últimos tempos, perdeu muitos fiéis, e acumulou dívidas altíssimas.
Antes de se decidir pelo sacerdócio, O’Malley tinha tido uma vida cheia de aventuras, de boas experiências. Esse seu conhecimento do comportamento humano o ajuda a lidar com as situações; ele atrai para a igreja um bando de garotos prestes a se tornarem marginais, e cria com eles um coral.
Nunca houve no mundo freira mais bela que a Irmã Benedict
Os Sinos de Santa Maria começa com o padre O’Malley chegando a uma nova paróquia, que possui uma escola. O padre que ele vem para substituir, bem velhinho, havia sido levado para um asilo, esgotado com os problemas que enfrentava com as freiras que dão aula na escola. Já no dia de sua chegada, a velha empregada da paróquia, Mrs. Breen (Una O’Connor, excelente, perfeita para o papel) o adverte: ele terá muitos problemas com as freiras.
O primeiro encontro com as religiosas, na manhã seguinte, seria de deixar qualquer um sem graça, frustrado, enfurecido: enquanto o padre O’Malley faz a elas um rápido discurso de apresentação, as madres caem na risada. Não por causa do que diz o padre, mas porque um dos muitos gatos da paróquia entrou embaixo do chapéu que o pobre homem havia colocado atrás de si.
A madre superiora da paróquia, Irmã Benedict, irá confrontar-se diversas vezes com o padre O’Malley. Nada muito sério, nada muito grave – mas os dois parecem ter pontos de vista diferentes a respeito de cada assunto.
A Irmã Benedict é interpretada por Ingrid Bergman, e portanto nunca houve no mundo freira mais bela. Ingrid estava com 30 anos e no auge da carreira, três anos apenas após Casablanca. Qualquer mortal se apaixonaria perdidamente pela irmã Benedict – mas este aqui não é um filme realista, é um conto de fadas, uma cantiga de Natal.
É impossível que o espectador não simpatize com aquele padre e aquela freira
O prédio da escola, antiquíssimo, vai muito mal, e não há dinheiro para reformá-lo. A Irmã Benedict e todas as freiras da paróquia rezam diariamente para que o milionário Horace P. Bogardus (Henry Travers, à direita na foto abaixo) dõe para a igreja o prédio maravilhoso que ele está terminando de construir, bem ao lado da decadente construção que abriga a escola.
Naturalmente, o milionário azedo, egoísta, avarento Bogardus doar alguma coisa – uma moedinha de 5 cents que fosse – seria mais difícil que dez camelos passarem pelo buraco de uma agulha ao mesmo tempo. Mas o padre O’Malley, homem do mundo, conhecedor da natureza humana, passará a mexer pauzinhos para que o sonho das boas freiras vire realidade.
Nos filmes de Frank Capra, o cineasta mais esperançoso, otimista, believer da História, os milionários são sempre azedos, egoístas, avarentos, exatamente como este nosso Horace P. Bogardus daqui. Têm o coração feito de pedra, de rocha maciça. No final, porém, o coração de pedra se transforma no de Madre Teresa de Calcutá.
A presença de Henry Travers no elenco, no papel de Bogardus, aproxima ainda mais este Os Sinos de Santa Maria dos filmes de Frank Capra. Henry Travers é o ator que faz o anjo iniciante, desastrado, Clarence, que o Senhor envia à Terra para ajudar o pobre George Bailey, que está à beira do suicídio, em A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life, de 1946.
Está ótimo no papel do ricaço Bogardus, esse simpático ator que é Henry Travers.
Não há ninguém que esteja mal no elenco de Os Sinos de Santa Maria. Todos os atores, inclusive os garotos, estão perfeitos em seus papéis. Mas claro que o brilho maior é da dupla de protagonistas, Bing Crosby e Ingrid Bergman. É simplesmente impossível que o espectador não simpatize com aquele padre e aquela freira.
Uma cantiga natalina feita nos puritanos anos 40 fala de uma prostituta de luxo!
A história original é de autoria do próprio diretor Leo McCarey, assim como a do filme anterior, O Bom Pastor. Ele e o roteirista Dudley Nichols (autor ou co-autor dos roteiros de No Tempo das Diligências, Levada da Breca, Almas Perversas, O Tempo é uma Ilusão, O Juiz Priest, para citar só alguns) criaram diversas subtramas. Uma delas gira em torno de Patsy (Joan Carroll), uma garotinha que é levada pela mãe para estudar na escola das freiras.
A mãe de Patsy, Patricia (interpretada por Martha Sleeper, na foto) chega para conversar com o padre O’Malley num belo carrão. É uma mulher bastante bonita, atraente, está muito bem vestida, elegante. Conta sua história: foi casada com Joe Gallagher (William Gargan), um músico, pianista, líder de uma pequena orquestra. Um belo dia, Joe saiu de casa para um turnê com sua orquestra e nunca mais voltou. A filha dos dois nasceu depois que ele a abandonou.
O diálogo que se segue é extraordinário.
Padre O’Malley: – “Você a sustentou sozinha este tempo todo?”
Patricia: – “Suponho que o senhor está tentando imaginar como. (Uma pausa.) Ela também. Ela está crescendo, padre. Está começando a pensar que eu não presto. Quero colocá-la sob seus cuidados antes que ela descubra que está certa.”
Uau! Sem dizer explicitamente com todas as palavras, mas deixando as coisas muito claras, Os Sinos de Santa Maria, uma cantiga natalina feita nos puritanos anos 40 por Hollywood, mostra uma prostituta de luxo!
A resposta do padre O’Malley é uma maravilha:
– “Acho que uma pessoa tão preocupada com a filha quando você não é uma pessoa ruim.”
Muitos dos cartazes originais ocultavam o fato de que era um filme sobre padre e freira
O Bom Pastor, o primeiro dos dois filmes que têm o padre O’Malley como protagonista, foi um tremendo sucesso de público e crítica. Ganhou sete Oscars, os de filme, direção, ator para Bing Crosby, argumento (havia esse prêmio em 1944), roteiro e canção.
Este Os Sinos de Santa Maria teve oito indicações ao Oscar, nas categorias filme, direção, ator para Bing Crosby, atriz para Ingrid Bergman, montagem, trilha sonora, canção e som, mas só levou a estatueta para essa última categoria.
Segundo o IMDb, Os Sinos de Santa Maria foi a primeira continuação a ter uma indicação ao Oscar na categoria de melhor filme. Se não estou enganado, a primeira sequência a levar o prêmio de melhor filme foi O Poderoso Chefão II.
Eis aí algumas historinhas e/ou detalhinhos sobre o filme, muitas delas tiradas do IMDb:
* A produção contou com um consultor para assuntos católicos, um padre. Na hora da filmagem da seqüência em o padre O’Malley e a irmã Benedict se despedem, Bing Crosby e Ingrid Bergman combinaram uma travessura. Pediram ao diretor McCarey para fazer uma nova tomada, e então, após dizerem adeus, os dois se abraçaram e deram um beijo apaixonado, para estupefação do padre-consultor, que pulou e berrou em protesto.
* Bing Crosby foi o primeiro ator a receber duas indicações ao Oscar pelo mesmo personagem; como já foi dito, ganhou o prêmio por O Bom Pastor.
* Tanto Bing Crosby quanto Ingrid Bergman haviam sido premiados com o Oscar no ano anterior ao lançamento do filme – ele por O Bom Pastor, ela por À Meia Luz/Gaslight. Ingrid voltaria a ganhar o Oscar de melhor atriz por Anastasia, de 1956, e de coadjuvante por Assassinato no Expresso Oriente.
* Embora dirigidos pelo mesmo realizador, estrelados pelo mesmo ator fazendo o mesmo personagem, os dois filmes foram produzidos e distribuídos por estúdios diferentes – o primeiro pela Paramount, o segundo pela RKO. Bing Crosby era contratado da Paramount, e nunca fez contrato com a RKO.
* Nos créditos iniciais, quando aparecem os nomes dos dois astros, há, em letras bem menores, a informação de que Ingrid Bergman aparece por autorização de David O. Selznick, o produtor todo-poderoso que tinha a atriz sueca sob contrato. Parece coisa de senhor feudal, de escravidão.
* O diretor Leo McCarey tinha uma tia querida que era freira e se chamava Mary Benedict. Essa boa alma foi uma das freiras que criaram um convento em Hollywood. Foi a inspiração da história.
* Sacanagem marqueteira: muitos dos cartazes originais do filme mostravam os dois astros em roupas civis, sem os hábitos religiosos. A idéia óbvia era de que um filme com um padre e uma freira atrairia menos espectadores do que um com aqueles dois astros em um provável romance.
Foi o filme de maior bilheteria no ano do lançamento
O Bom Pastor havia sido o filme de maior bilheteria de 1944 nos Estados Unidos.
Pois Os Sinos de Santa Maria também foi o filme de maior bilheteria de 1945 no país – e o filme de maior bilheteria da história da RKO. Segundo o livro The RKO Story, ele rendeu, líquido, US$ 3,715 milhões de dólares, uma absoluta fortuna para a época. O livro Box Office Hits registra US$ 8 milhões, provavelmente por atualizar o valor de acordo com a inflação até a data de publicação.
É, repito, para encerrar, uma delícia de filme. As pessoas de boa vontade de todas as idades, de qualquer religião, deveriam vê-lo. Só é contra-indicado para os de coração duro que não derrete jamais, para os cínicos e desiludidos de maneira geral.
Anotação em dezembro de 2013
Os Sinos de Santa Maria/The Bell’s of St. Mary’s
De Leo McCarey, EUA, 1945.
Com Bing Crosby (padre Chuck O’Malley), Ingrid Bergman (irmã Benedict)
e Henry Travers (Mr. Bogardus), Ruth Donnelly (Irmã Michael), Joan Carroll (Patsy), Martha Sleeper (Patricia, a mãe de Patsy), William Gargan (Joe Gallagher), Rhys Williams (Dr. McKay), Dick Tyler (Eddie), Una O’Connor (Mrs. Breen), Bobby Frasco (Tommy)
Roteiro Dudley Nichols
Baseado em história de Leo McCarey
Fotografia George Barnes
Música Robert Emmett Dolan
Montagem Harry Marker
Figurinos Edith Head
Produção Leo McCarey, Rainbow Productions, RKO Radio Pictures. DVD Paramount.
P&B, 125 min.
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Se o mundo fosse um lugar justo eu seria linda como a Ingrid…
Nunca vi mas tenho vontade. A maneira carinhosa com que o Sérgio fala de Ingrid é maravilhosa e idêntica À minha pela Rita Hayworth. Anseio para que escreva Gaslight, o meu filme favorito da Ingrid
Um filme feito no final da segunda guerra, a Europa destroçada, tudo arrebentado, daí que precisava dizer pro povo ter fé, que rezando e sendo bonzinho, um milagre pode acontecer. Ainda mais quando quem diz isso é a linda da Ingrid Bergman. Só a fé mesmo… Filme atualíssimo. Vai pra Igreja (agora evangélica) que tudo vai ficar bem, o milagre vai acontecer! Dê seus bens para a Igreja que seu coração vai sarar e ficar feliz mesmo que seus filhos tenham morrido na guerra. Pena que o filme é lindo mesmo. Melhor fotografia! E esse sorrido do padre? Pra quê tão lindos meu Deus!!!