Um dos mais brilhantes atores de sua geração, 30 títulos na filmografia, 21 prêmios e outras 21 indicações (inclusive duas ao Oscar), Edward Norton só se aventurou a dirigir um filme até agora. Nascido em 1969, estava com apenas 31 anos em 2000 quando fez este Tenha Fé/Keeping the Faith.
É uma delícia de filme. Uma comédia gostosa, divertida, com excelentes piadas – mas é daquele tipo de comédia que também diz coisas sérias. Fala de fé, religião, neste nosso tempo em que fé e religião parecem tão ausentes da vida das pessoas de classe média, com boa educação. E faz belas afirmações contra diversos tipos de preconceitos.
Ao final, antes dos créditos de encerramento, há a seguinte dedicatória: “Em memória de Robin Norton, que tinha fé em todas as pessoas”. Robin, a mãe de Edward Norton, uma executiva e professora, havia morrido três anos antes, em 1997.
Uma dedicatória assim indica que o jovem ator fez o filme com seriedade, respeito. Não foi apenas uma brincadeirinha, ou uma forma de ganhar um bom salário.
Os três atores principais são o próprio Edward Norton, Ben Stiller e Jenna Elfman. Ben Stiller é conhecidíssimo, Jenna Elfman, nem tanto – especialmente fora dos Estados Unidos, porque fez bem menos filmes do que séries de TV.
Em papéis pequenos, há grandes nomes. O veteraníssimo Eli Wallach, mais de 160 filmes no currículo, faz um rabino. A maravilhosa Anne Bancroft, Oscar por O Milagre de Annie Sullivan, de 1962, quatro outras indicações ao prêmio da Academia, inclusive pelo papel de Mrs. Robinson em A Primeira Noite de um Homem, faz a mãe do personagem interpretado por Ben Stiller.
E, numa participação especialíssima, no papel de um padre, está Milos Forman, o extraordinário diretor que deixou a Checoslováquia quando os tanques russos sufocaram a Primavera de Praga e, em Hollywood, firmou-se como um dos melhores realizadores do cinema mundial. Só a participação de Milos Forman já seria uma garantia de que se trata de um bom filme.
O barman já ouviu todo tipo de história. Mas aquela o deixa atônito
O filme abre com um Edward Norton absolutamente bêbado andando pelas ruas de Manhattan. Num bar praticamente vazio, diz para uma mulher sentada diante do balcão:
– “Se eu fosse dizer que amo você e abandonaria tudo para ficar com você, o que você diria?”
A mulher se levanta e se despede do barman: – “Boa noite, Paulie”.
Brian Finn (este é o nome do personagem de Edward Norton) tira uma foto de um bolso e fica olhando para ela. Vemos a foto: dois garotos e uma garota, todos aí na faixa de 10, 11 anos.
O bar agora está quase absolutamente vazio. Só estão ali o bêbado e o barman, como na fantástica canção “One For My Baby (And One For The Road)”, de Harold Arlen e Johnny Mercer.
Segue-se o seguinte diálogo:
Paulie, o barman, com forte sotaque indiano: – “Deixa ver se eu adivinho. Sua mulher ficou cansada de ver você sair por aí atrás de saias, e então levou esses pequenos e te abandonou.”
Brian Finn, o bêbado: – “É um pouco mais complicado que isso.”
Paulie: – “Claro que é. Todo mundo acha que sua história é a especial. Pois vou te dizer: eu já ouvi tudo o que se tem para…”
Brian abre o alto da camisa e deixa à mostra o colarinho típico dos padres católicos
Paulie: – “Puta merda!”
Padre Brian: – “Exatamente.”
(A frase exata de Paulie é “Holly shit!” Em português não temos uma exclamação que misture sagrado com merda, por isso optei pela tradução não literal mais adequada.)
Um triângulo amoroso envolvendo um padre e um rabino
Sim: a trama de Tenha Fé é um triângulo amoroso formado por uma belíssima mulher, um padre e um rabino. Ben Stiller faz Jack, o rabino, e a bela Jenna Elfman faz Anna, a mulher por quem os dois se apaixonam.
Jack e Brian eram amigos de infância, inseparáveis desde o primário. Conheceram Anna quando estavam todos na faixa dos 10, 11 anos, cresceram juntos. (Os garotos Jack, Brian e Anna são interpretados, respectivamente, por Samuel Goldberg, Michael Roman e Blythe Auffarth.)
Quando estavam aí com uns 16 anos, acontece a tragédia, para usar o termo que o padre Brian, bêbado, usa ao contar a história para o barman Paulie e para o espectador: o pai de Annie arranja um emprego na Califórnia.
O garoto judeu e o garoto descendente de irlandeses continuam amigos inseparáveis. Optam, os dois, pelo ministério religioso, cada um em sua religião. Apanham bastante nos primeiros anos no sacerdócio – e vemos, em ações paralelas, o rabino foca desmaiar diante da primeira cerimônia de circuncisão de um bebê e o padre se enrolar com a caixinha de incenso, que primeira taca na cabeça de um fiel e depois com ela ateia fogo em suas próprias vestes, obrigando-o a correr para apagar o incêndio na pia batismal.
Essas sequências paralelas da iniciação religiosa dos dois jovens são absolutamente, escrachadamente hilariantes. Mary, ali ao lado, teve um acesso de gargalhada como só tem diante de cenas totalmente hilárias.
Depois dos primeiros tempos de peripécias como novatos, vão se firmando, os dois. Adotam, em paralelo, um estilo avançadinho, moderninho, jovem, de falar a suas congregações, e a igreja do velho padre Havel (o papel de Milos Forman) e a sinagoga do velho rabino Ben Lewis (o papel de Eli Wallach, como já havia sido dito) passam a atrair mais fiéis do que antes.
Depois de anos, Anna liga para o padre – e o rabino fica com ciúme
O padre Brian leva numa boa o obrigatório celibato dos sacerdotes católicos. Já o rabino Jack enfrenta uma questão oposta: espera-se que os rabinos se casem, e as mães das jovens judias incentivam o moço de boa aparência a namorarem suas filhas. Vemos um encontro de Jack com uma das moças de sua congregação, Ali; de saia curtíssima, liberadíssima, Ali quer porque quer dar para Jack – mas ele não está nem um pouco a fim de entrar naquela fria.
De repente, do nada, out of the blue, quando o padre e o rabino estão aí passados dos 30 anos, Anna liga para Brian: está vindo passar uma temporada em Nova York. O diálogo entre Brian e Jack quando o primeiro conta para o segundo sobre o telefonema de Anna é uma total delícia, como muitos dos diálogos do filme.
Brian: – “Qual é a mulher mais legal que nós já conhecemos?”
Jake: – “Isso é fácil. Anna Reilly, oitava série. Sem dúvida.”
Brian: – “Acertou.”
Jake: – “O quê? Ela ligou pra você? Anna Reilly ligou para você?
Brian: – “É. Totalmente do nada.”
Jake: – “Por quê?”
Brian: – “Por que ela está vindo trabalhar em Nova York e quer se encontrar conosco. Achou meu telefone.”
Jake: – “É mesmo? Anna Reilly. O que ela está fazendo?”
Brian: – “Ela… Ela é analista de sinergias, ou sinergista de analogias, ou… ou algo assim. Não consegui entender direito. Ela é uma poderosa mulher de negócios.”
Jake: – “Uau! E você contou para ele sobre nós?”
Brian: “Contei. Ela riu durante uns dez minutos, mas achou legal.”
Jake: – “Por que será que ela ligou para você?”
Brian: – “Como assim?”
Jake: – “Bom, ela ligou para você.”
Brian: – “O quê? Você ainda está na oitava série?”
Jake: – “É uma pergunta legítima. Quer dizer: nós dois estamos na lista telefônica.”
Brian: – “Finn vem antes de Schram, tá certo? Você é ridículo.”
Jake: – “É… Ordem alfabética…”
Um monte de citações sobre filmes e atores, coisa de cinéfilo
A Anna Reilly que aparece no aeroporto, onde padre e rabino esperam por ela, é um mulherão. Em todos os sentidos. A tal Jenna Elfman é uma bela espécie, olhos maravilhosos, sorrisão imenso, fantástico, belíssimas e longas pernas. Segundo o IMDb, a moça tem 1 metro e 78. Veremos em várias cenas em que ela aparece em pé ao lado de Ben Stiller que ela é mais alta que ele, mesmo de sapato sem salto algum. (O detalhe do sapato sem salto foi, é claro, notado por Mary.)
O autor do argumento e do roteiro, Stuart Blumberg, e o diretor Edward Norton encheram o filme de citações a filmes, essa coisa de gente apaixonada por cinema. Citam-se filmes, obras literárias – é uma citação atrás da outra. Num sermão, o padre Brian pergunta quem sabe quais são os sete pecados capitais. Como ninguém se pronuncia, ele diz: “Vamos lá, gente, tem um filme com Brad Pitt, Seven…”
(Edward Norton havia trabalhado ao lado de Brad Pitt em Clube da Luta, um ano antes.)
Numa conversa entre os três protagonistas, Edward Norton imita Dustin Hoffman em Rain Man.
Quando estão no táxi, indo do aeroporto John F. Kennedy para Manhattan, falam de colegas de escola, e Brian diz: “Lembra do Aaron Portnoy? Vivia se queixando” – uma óbvia citação de Portnoy’s Complaint, o livro de Philip Roth.
Jake e Anna vão ao cinema ver “o filme do Garcia” – o filme é Quando um Homem Ama uma Mulher, com Andy Garcia e Meg Ryan.
Entre as várias citações, há uma que – confesso, embora cheio de vergonha – não notei. Segundo o IMDb, a cena em que os três garotos correm no parque é igual a uma que aparece em Jules et Jim, o filme de François Truffaut sobre um triângulo amoroso que ilustra este site e sobre o qual ainda não criei coragem para escrever.
Há também um monte de piadas internas. Na cena em que Brian e Jake aguardam Anna no aeroporto, segurando um cartaz com “Anna Banana”, um motorista exibe um cartaz com “S Blumberg” – o nome do roteirista do filme. O próprio Stuart Blumberg faz uma participação especial como Len, um colega de trabalho de Anna num banco de investimentos.
Num prédio vizinho ao do escritório de Anna, há um executivo safado, que come várias mulheres em seu local de trabalho; Anna observa as cenas com um binóculo. O sujeito, a quem ela dá o apelido de Casanova, e que o espectador só vem bem de longe, é interpretado por Bodhi Elfman, o marido da atriz Jenna Elfman.
Uma comédia engraçadíssima. E um um abençoado hino à paz entre os homens de boa vontade
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Em sua primeira realização, Edward Norton assina uma comédia original, leve e romântica que mereceria uma montagem mais incisiva. Circundado por coadjuvantes escolhidos com felicidade, o trio formado por Ben Stiller, Edward Norton e a radiante Jenna Elfman nos leva a uma história gentil – um pouco longa – associada a imagens muito belas de Manhattan.”
Leonard Maltin diz que é uma comédia inteligente (embora previsível), que o trio central é muito agradável, mas que o filme é longo.
Engraçado: não achei o filme longo. Não me dei conta de que o filme tem 128 minutos. Para mim, foi como se tivesse os 90 minutos – a duração mais tradicional. Como é bom, passa depressa.
É de fato um filme inteligente, como disse Maltin, e original, como notou o Guide de Tulard.
Há muita coisa deliciosa, ao longo deste Tenha Fé. Alguns exemplos:
* Há uma única fala mais longa do padre Havel; nela, Milos Forman, com seu sotaque forte e delicioso, conta sobre uma história de amor em Praga, pouco antes de os tanques soviéticos chegarem. Sua frase final é uma delícia: “Sou padre há 40 anos, e me apaixonei pelo menos uma vez em cada década”
* O barman, ao ouvir a história do padre e do rabino apaixonados pela mesma mulher, confessa que vem de ascendentes sikhs, católicos, muçulmanos e com contra-parentes judeus…
* O padre Brian sai do confessionário para dar um abraço – fraternal – em Anna, e ouve uma mulher na fila do confessionário dizer: “É impressão minha ou a confissão está ficando um tanto grudenta ultimamente?”
* O rabino Jake leva um coral protestante do Harlem para dar uma animada nos cânticos judeus da sinagoga…
Acho interessantíssimo um filme feito há pouco que fala de religião – e, apesar das piadas todas, fala de religião de maneira respeitosa.
Tenha Fé é uma comédia engraçadíssima. Mas, agora falando sério, é um abençoado hino à paz entre os homens de boa vontade.
E isso nunca é demais.
Anotação em fevereiro de 2013
Tenha Fé/Keeping the Faith
De Edward Norton, EUA, 2000
Com Ben Stiller (rabino Jake Schram), Edward Norton (padre Brian Finn), Jenna Elfman (Anna Rilley),
e Anne Bancroft (Ruth Schram), Eli Wallach (rabino Ben Lewis), Ron Rifkin (rabino Larry Friedman), Milos Forman (padre Havel), Holland Taylor (Bonnie Rose), Lisa Edelstein (Ali Decker), Rena Sofer (Rachel Rose), Ken Leung (Don), Brian George (Paulie Chopra, o barman), Stuart Blumberg (Len), Samuel Goldberg (Jake Schram garoto), Michael Roman (Brain Finn garoto), Blythe Auffarth (Anna Riley garota)
Argumento e roteiro Stuart Blumberg
Fotografia Anastas N. Michos
Música Elmer Bernstein
Montagem Malcolm Campbell
Produção Spyglass Entertainment, Touchstone Pictures.
Cor, 128 min
***1/2
Título em Portugal: Sedutora Tentação. Na França: Au Nom d’Anna.
O filme passa tão rápido quanto o seu texto! Queria mais… 😀
Muito obrigada!
Ja tinha assistido esse filme um tempo atras, e tava assistindo de novo, e de repente me deparei com esse texto e o resumo muito bem elaborado, parabens por todas as curiosidades dos bastidores e citações. (=
Filme maravilyoso. Não entendi o texto falar sobre preconceito em nossos tempos em relacão a tantas coisas e ver escrito que na classe media, onde estao os de boa educacao… (…)
Eu queria o filme eu ñ achei, também acho lindo a parte em que o padre fala em seu sermão sobre a fé.