O tema é sério, pesado: o abismo entre as classes sociais, a convivência dentro de casa de patrões e empregadas domésticas. Uma espécie assim de Histórias Cruzadas/The Help, de Tate Taylor, ou Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival, versão francesa.
O filme americano pega pesado na questão do racismo no Sul Profundo; é duro, denso. As Mulheres do 6º Andar tem um tom bem mais próximo ao do filme brasileiro: fala de injustiça social, do Grand Canyon que existe entre a burguesia parisiense do início dos anos 60 e a dura vida das empregadas domésticas, mulheres espanholas que fugiam da pobreza e da ditadura do generalíssimo Franco, mas o tom é leve, suave, até engraçado – em diversos momentos, muito engraçado.
A rigor, As Mulheres do 6º Andar beira a simplificação pura e simples, roça o maniqueísmo: os burgueses são chatos, emproados, vazios, bobos; as bonnes espanholas (que palavra mais irônica para designar empregada doméstica, bonne!) levam vida dura, mas são alegres, cheias de vida.
Madame (a novata empregada Maria a chamará no primeiro dia de Madame Joubert, mas ela exigirá ser chamada apenas de Madame, assim, tout court) dirá isso com absolutamente todas as letras – maior explicitude seria impossível:
– “Essas mulheres lá de cima estão vivas. Aqui embaixo estamos mortas.”
Antes um capitalista frio e frívolo, Monsieur fica suave e doce, ao conhecer as bonnes
O cinema francês já nos deu dezenas de obras que mostram os burgueses como pessoas chatas, emproadas, vazias, bobas. Claude Chabrol, por exemplo, passou toda a sua vida repetindo este bordão: os burgueses são uns chatos insuportáveis. No sentido inverso, belas obras de grandes cineastas como Jacques Demy, Agnès Varda, Philippe De Broca, Yves Robert faziam o elogio do operário, do homem simples, comum.
Na vizinha Itália, essa foi sempre a grande verdade universal: o operário, o trabalhador, esse é honrado, honesto, e feliz, apesar de todas as dificuldades; passou da classe média, teve algum conforto e nenhuma necessidade material básica, aí é pequeno-burguês, ou, muito pior ainda, burguês, ruim da cabeça e doente do pé.
As Mulheres do 6º Andar segue essa tradição antiga dos cinemas francês e italiano – mas com uma diferença fundamental: Monsieur, Le Patron, eis que de repente descobre a existência das espanholas que moram logo acima de sua cabeça, e aí (como acontecia com os personagens ricos dos filmes de Frank Capra) aprende com elas os valores bons da vida; seu coração, antes de pedra, se amolece. Antes um capitalista frio e frívolo, de repente fica suave e doce, devido ao convívio com as imigrantes batalhadoras.
Le Patron, Monsieur Jean-Louis Joubert, vem na pele de Fabrice Luchini, aquele grande ator que tem a característica de ter gestos, voz, entonação, todo o physique du rôle suave demais, afetado demais, muito perto do que, antes do politicamente correto, a gente podia chamar de bicha, veado.
Madame é interpretada por Sandrine Kiberlain, também excelente atriz (além de cantora deliciosa e talentosa compositora). Grande atriz, Sandrine não é bela. Tive, no entanto, a nítida impressão de que houve um trabalho do diretor de fotografia, da equipe de maquiagem e dela mesma para torná-la feia para interpretar Suzanne Joubert, moça do interior, da campagne, que aconteceu de ter conhecido, muito jovem, esse Jean-Louis, filho e neto de capitalistas, herdeiro da empresa financeira familiar que administra fortunas de gente rica no mercado de capitais.
Jean-Louis nasceu no amplo apartamento em que vive agora – um letreiro nos avisa que estamos em 1962 – com Suzanne; o casal tem dois filhos adolescentes, aí entre os 12 e os 16 anos, que, naturalmente, estudam em internato caro, e só aparecem na casa dos pais nas férias e feriados. Jean-Louis nunca viveu em outro lugar a não ser ali.
Quando a narrativa começa – depois de gostosos créditos iniciais em que diversas atrizes que interpretam as empregadas espanholas se apresentam à câmara –, Jean-Louis está sentado à mesa do café da manhã, lendo o jornal. Germaine, a empregada que está com a família faz 25 anos, uma matrona da Bretanha (Michèle Gleizer), demonstra alguns fatos para o espectador já na primeira sequência em que aparece: a) ainda é fiel à antiga patroa, a mãe de Jean-Louis, morta faz pelo menos meio ano, e não suporta a atual patroa, Suzanne; b) depois de um quarto de século trabalhando ali, se sente um tanto mais patroa que a patroa; c) está indignada porque Suzanne quer desfazer o quarto ocupado pela mãe do marido; e d) em um quarto de século, jamais aprendeu a preparar o ovo cozido do jeito que o patrão aprecia – molinho, pastoso, quase líquido, jamais duro.
Nas sequências seguintes, veremos, bem rapidamente, que Suzanne, a Madame, é uma dondoca perfeitamente, completamente babaca.
Paris, 1962, prédio rico – mas as empregadas vivem como os miseráveis de Dickens
Os Joubert moram no quinto andar de um belo prédio. O sexto e último andar é um cortiço, que serve para abrigar uma dúzia de empregadas das famílias dos andares abaixo. A bretã Germaine é a única francesa no meio de um grande grupo de espanholas.
Por ser francesa, Germaine se crê superior às demais empregadas que dividem com ela os quartinhos do sexto andar. Mas, na prática, tem, exatamente como as imigrantes, que usar o vaso sanitário sempre entupido do único banheiro do andar. Ali não há água corrente. É Paris, 1962, bairro bom, edifício elegante – mas as condições materiais das mulheres do sexto andar não são muito diferentes daquelas dos miseráveis da Inglaterra do início do século XIX que Charles Dickens descreve em seus romances.
A convivência entre Suzanne e Germaine passou a ser impossível; Germaine, diante da ameaça iminente da demissão, resolve ela mesma cascar fora.
Como a dondoca Suzanne não move uma palha dentro de casa, rapidamente o apartamento vira um lixo. Hora de procurar nova bonne – e a escolha é Maria, ou Marriá, como dizem os patrões, uma jovem que acabou de chegar a Paris para tentar a vida, aproveitando que sua tia Concepción já vive na capital francesa.
Concepción é interpretada por Carmen Maura, aquele ícone do cinema espanhol, mais de 120 títulos no currículo, diversos deles com Pedro Almodóvar.
Maria Marriá vem na pele de Natalia Verbeke. Eu me lembrava dela, mas vagamente; depois que o filme terminou, vi que já há três filmes com Natalia Verbeke neste site – a porcaria Apasionados (2002), o interessante Jogo de Sedução/Dot the I (2003) e o excepcional O Que Você Faria?/El Método (2005). Ah, sim: e ela está, maravilhosa, em O Filho da Noiva, aquela obra-prima.
Carmen Maura está ótima, as demais atrizes espanholas que fazem as outras empregadas estão ótimas, Patrice Luchini e Sandrine Kiberlain estão irretorquíveis – mas Natalia Verbeke rouba cada cena em que aparece.
No primeiro dia, Maria, a nova empregada, dá um prazer inenarrável ao patrão
No primeiro dia de Maria no lar, entendiante lar dos Joubert, Jean-Louis faz para ela um discurso a respeito do ovo cozido entre 3 e 4 minutos. Depois que fala bastante, ocorre a ele que talvez a jovem espanhola não estivesse entendendo palavra alguma – mas Maria havia estudado francês na Espanha. Nem sempre as pessoas de países mais pobres são necessariamente pouco educadas – essa é uma bela lição que Jean-Louis aprende.
Jean-Louis explica que, se puder comer no café da manhã um ovo cozido no ponto certo, seu dia será perfeito.
O primeiro ovo cozido preparado por Marriá, após 25 anos de ovos insuportavelmente duros da truculenta bonne bretã, vem tão gostoso que o espectador fica com água na boca – e Jean-Louis experimenta um prazer inenarrável.
Uma sequência fenomenal: o trabalho em grupo de gente solidária
Nesse primeiro dia de trabalho no apartamento deixado imundo após alguns dias sem empregada para cuidar das coisas, Madame dá uma série de ordens para Marriá e sai de casa para fazer as coisas que as dondocas fazem na vida.
Maria vai até a janela dos fundos e pede a ajuda da tia Concepción. A tia Concepción pede a ajuda das outras espanholas todas. Aquela mulherada toda vai ajudar Maria; uma delas liga o rádio, que toca a versão francesa de “Itsy Bitsy Teenie Weenie Yellow Polka Dot Bikini”, no Brasil “Biquíni de Bolinha Amarelinha”, e, ao som de “Biquíni de Bolinha Amarelinha” em francês, o diretor Philippe Le Guay nos presenteia com uma seqüência fenomenal, antológica,
Acontece quando o filme está com 15 minutos.
É emocionante.
Enquanto via aquela beleza, embevecido, não pensei nisso, mas ela tem a ver com outra sequência antológica, a de A Testemunha/Witness, que Peter Weir fez em 1985, em que as mãos solidárias do grupo de amish constroem um silo, um celeiro para dois jovens recém-casados.
Mãos solidárias trabalhando juntas por um ideal. Não por um ideal distante, que tem a ver com ideologia, a construção de uma sociedade nova, o socialismo – não, nada disso. Um ideal para o amigo presente ali perto. A solidariedade entre pessoas, amigas, construindo para elas mesmas algo de bom.
Solidariedade, companheirismo, em vez de concorrência, disputa. Trabalho duro em comum, para o bem de gente querida.
A humanidade é capaz disso.
Oh, when they ever learn?
Eu daria a Natalia Verbeke qualquer prêmio
Philippe Le Guay é da classe de 1956. Nasceu um ano antes de eu aprender a ler. Dá aula na Fémis, a L’École nationale supérieure des métiers de l’image et du son, de Paris; 20 títulos como roteirista, 11 como diretor, dos quais três feitos para a TV. Não conheço nenhum dos outros títulos dele como diretor.
Carmen Maura ganhou o César de coadjuvante, o Oscar francês, por sua interpretação. Carmen Maura é uma maravilha, uma instituição, mas euzinho teria dado qualquer prêmio não a ela, mas a Natalia Verbeke.
O filme teve duas outras indicações ao César, e perdeu – nas categorias técnicas de figurinos e desenho de produção. OK, não levaram o César, mas os figurinos e a direção de arte são primorosas.
O filme está mais para Frank Capra do que para Scola, Godard, Chabrol
Então, considerações finais, duas linhas e meia para as considerações finais.
As Mulheres do 6º Andar não é um grande filme. Como foi dito antes, às vezes beira o maniqueísmo, a simplificação absoluta. Mas também não é, de forma alguma, um filme ruim. Tem coisas muito interessantes, belos momentos, belas interpretações, uma trilha sonora sensacional (assinada por Jorge Arriagada, uma maravilha em que os sons espanhóis vão penetrando nas melodias, e tomando conta delas por alguns instantes).
Se chega a beirar o maniqueísmo dos ricos/infelizes x pobres/felizes, foge também da coisa simplista, ela também maniqueísta, de A Revolução Popular Vai Triunfar na Grande Nova Sociedade Comunista, tão presente em tantas obras dos cinemas francês e italiano dos anos 50 até 80.
De alguma maneira, o filme do professor de cinema Philippe Le Guay é mais Frank Capra que Ettore Scola, Godard, Chabrol. É mais centrado em pessoas que em ideologia.
Epa, candidato, seu tempo de considerações finais já se esgotou!
Sobretudo, As Mulheres do 6º Andar é um filme gostoso de se ver. Não é chato.
É um filme feito para ser visto por pessoas normais, como eu e você, que gostaríamos que o mundo fosse melhor. Não é um filme feito para agradar às pessoas de nariz empinado que dizem só gostar de “filmes de arte”.
Anotação em janeiro de 2013
As Mulheres do 6º Andar/Les Femmes du 6ème Étage
De Philippe Le Guay, França, 2010
Com Fabrice Luchini (Jean-Louis Joubert), Sandrine Kiberlain (Suzanne Joubert), Natalia Verbeke (María),
e Carmen Maura (Concepción, a tia de Maria), Lola Dueñas (Carmen, a comunista), Berta Ojea (Dolores, a senhora nariguda), Nuria Solé (Teresa, a da peruca loura), Concha Galán (Pilar, a que apanha do marido), Marie-Armelle Deguy (Colette de Bergeret), Muriel Solvay (Nicole de Grandcourt), Audrey Fleurot (Bettina de Brossolette), Annie Mercier (Mme Triboulet, a concièrge), Michèle Gleizer (Germaine, a bretã), Camille Gigot (Bertrand Joubert), Jean-Charles Deval (Olivier Joubert)
Argumento, roteiro e diálogos Philippe Le Guay e Jérôme Tonnerre
Fotografia Jean-Claude Larrieu
Música Jorge Arriagada
Montagem Monica Coleman
Direção de arte Pierre-François Limbosch
Produção Vendôme Production, France 2 Cinéma, SND,
Canal+, CinéCinéma. DVD Paramount.
Cor, 104 min
***
Gostei muito deste filme. Gostoso de verdade.
Para mim, Sergio, é aquele tipo de filme que tu dizes do tipo onde “saímos do cinema mais leves, de bem com a vida”, eu achei assim.
Se bem que não vi no cinema, e sim no DVD.
Gostei muito da Natalia Verbeke (Maria). Ela também está muito bem em “O filho da Noiva”.
O filme tem diálogos interessantes e alguns bem divertidos ( na parte comédia ).
Eu também daría qualquer prêmio para a linda e ótima atriz, Natalia.
” Que bom se nós também tivésemos o nosso 6 andar ” , uma mulher dizendo para a amiga.
Filme muito gostoso !!