O primeiro personagem adulto interpretado por Daniel Radcliffe, após os longos anos de imersão na pele do mago Harry Potter, sofre como um condenado às galés romanas. Come o pão que o diabo amassou. Aos 21 anos, Daniel Radcliffe caiu da magia no mais profundo dos infernos.
Ele é, na verdade, jovem demais para o papel que lhe deram, o de protagonista de A Mulher de Preto, um filme de suspense-terror bastante sombrio.
Arthur Kipps, o protagonista da história, cria um filho de quatro anos, Joseph (Misha Handley), que nunca conheceu a mãe: a jovem esposa do rapaz morreu no parto. Desde a morte da mulher, Arthur se desconectou do mundo; vive como um sonâmbulo, um autômato, quase um morto-vivo. É advogado, trabalha numa firma de advocacia na Londres do início do século XX, e está na marca do pênalti; os patrões sabem de sua história trágica, mas já não estão mais dispostos a mantê-lo na empresa se ele não se dispuser a voltar a ter interesse pelo serviço, trabalhar duro.
Arthur recebe uma missão – e o aviso de que será a última. Ou ele resolve aquela questão, ou será demitido.
A missão é organizar toda a papelada de uma antiga mansão, para que ela seja posta à venda. A propriedade se chama Eel Marsh, e fica num lugar bem distante de Londres, o pequeno povoado de Crythin Gifford, à beira do mar, numa região inóspita, fria e enevoada. A dona da mansão morrera havia pouco tempo, e não deixara descendentes; seu filho havia morrido ainda garoto, nos pântanos da região, e seu corpo jamais havia sido encontrado.
Arthur parte para Crythin Gifford na terça-feira pela manhã. Seu plano é resolver o que tem que fazer até a sexta-feira, quando então a babá levará o garotinho Joseph para passar o fim de semana com o pai no campo, longe de Londres, para mudar um pouco de clima.
Durante a longa viagem de trem, Arthur tem um dos seus sonhos recorrentes sobre a morte da esposa – uma oportunidade para o espectador ficar sabendo que ela havia morrido durante o parto.
(Veremos depois que Arthur sente a presença da mulher morta junto dele. Como se ela ainda estivesse próxima, como se não houvesse partido de vez.)
Quando acorda, já perto de seu destino, tem uma companhia no vagão do trem: diante dele está um senhor com seu cachorro. Chama-se Daily (o papel de Ciarán Hinds, que sempre me faz lembrar o Júlio César que interpretou na fabulosa série Roma), e veremos que é o homem mais rico de Crythin Gifford, dono do único automóvel do lugar. É no bólido – estacionado junto da estação ferroviária – que Daily levará Arthur para a único albergue do lugar.
A firma de advocacia havia feito reserva para Arthur, mas o dono do albergue, o sr. Fischer (Shaun Dooley), sujeito de maus bofes, diz que todos os quartos estão alugados. A mulher dele (interpretada por Mary Stockley), no entanto, se apieda do forasteiro, e oferece para ele o sótão da casa, ao fim de longas escadas.
Quando Arthur entra no sótão, o espectador reconhece imediatamente o lugar. Ao fazer este longo relato sobre o princípio da história, saltei a primeira sequência, que é absolutamente impressionante.
O quarto em o jovem Arthur vai dormir é o lugar em que no passado ocorreu uma tragédia
A primeira sequência de A Mulher do Lado começa como angelical conto de fadas e termina com um tapa na cara do espectador.
Três garotinhas de uns cinco, seis, sete anos brincam de casinha. São lindas, cabelos longos, vestidinhos perfeitos. Servem chazinho imaginário para as bonecas (e, evidentemente, me lembrei de imediato de Fêzinha servindo chazinho imaginário no chão da sala para as bonecas e para o pai babão), em xícaras de verdade.
A câmara é esplêndida, como no mais caprichado filme de publicidade – faz big close-ups de cada detalhe, as xícaras, as bonecas.
Parece um conto de fadas – imagens de sonho.
As meninas se viram para um dos lados do quarto.
Põem-se então de pé, pisam nas bonecas (big close-up do pezinho de uma delas estraçalhando o rosto de uma das bonecas), encaminham-se para as grandes janelas do aposento, o sótão de sua casa, e pulam para a morte.
Surge na tela o nome do filme (apenas o nome do filme; não há créditos iniciais), e é aí que vamos conhecer Arthur Kipps, o pobre rapaz que perdeu a mulher, o sentido da vida e a conexão com o chão em que pisa.
Uma clássica história de terror, com todos os elementos necessários
Convenhamos: é um brilho, uma maravilha de abertura de filme de terror.
O que se seguirá é – exatamente como dizem o diretor James Watkins, os produtores, a autora do romance, Susan Hill, a roteirista, Jane Goldman, nos especiais que acompanham o filme no DVD – uma clássica história de terror. Tem o povoado distante, isolado, longe deste insensato mundo, onde os moradores rejeitam de todas as maneiras o jovem forasteiro que veio para revirar os papéis da casa mal assombrada que todos gostariam que fosse esquecida.
Ah, sim, claro: tem a casa mal assombrada – uma imensa mansão com mais quartos do que boa parte das pousadas do litoral brasileiro, distante do vilarejo que já é distante de tudo. Só se chega a Eel Marsh através de uma estradinha isolada, que fica entre o mar, de um lado, e um imenso pântano, de outro – o pântano em que morreu o jovem que, se estivesse vivo, teria herdado a mansão. A estrada é coberta pela maré alta – só se pode chegar a Eel Marsh na maré baixa, como na Ilha de Saint-Michel, na França.
Até o nome do lugar é assustador. Eel é enguia – bicho danado de feio. Marsh é pântano – e pântano é algo sempre apavorante.
Nosso pobre Arthur Kipps, que já convive constantemente com o fantasma da mulher morta jovem demais, ficará longas horas dentro da imensidão dos corredores e dos aposentos tétricos de Eel Marsh. E, lá, será visitado pelo fantasma da Mulher de Preto.
No povoado de Crythin Gifford, onde Arthur Kipps é mal vindo, crianças morrem. No passado, houve o caso das três menininhas angelicais que se mataram. O protagonista e o espectador ficarão sabendo que os Daily (a sra. Daily é interpretada por Janet McTeer) haviam perdido o filho quando ele era muito jovem. Uma garotinha, depois de beber água sanitária, morrerá vomitando sangue no colo do próprio Arthur.
Gostaria que Daniel Radcliffe fizesse uma ou outra comedinha romântica
É preciso registrar: Daniel Radcliffe está muito bem. Esse rapazote que foi escolhido quando tinha 11, 12 anos para interpretar o bruxinho que mais vendeu livros na história da humanidade demonstra que tem plena capacidade de sobreviver a Harry Potter. Quieto aqui no meu cantinho, torço para que Daniel Radcliffe faça muitos filmes – mas que, se possível, faça também uma ou outra comedinha, romântica ou não. Temo que, se fizer mais personagens como Arthur Kipps, ele acabe pirando.
Um filme que provoca calafrios – mas não tem esse troço de sangue esguichando
É um filme de terror, de fantasmas, com todos os elementos do gênero. Feito sob medida para isso. Tem momentos assustadores. Eu mesmo, que não creio em brujas, pero que las hay, las hay, senti calafrios algumas vezes, enquanto via o sofrimento do pobre Arthur Kipps. Creio que as pessoas que gostam de filmes de terror, de histórias de fantasmas, não terão do que reclamar.
Não os muito jovens, os adolescentes que gostam de sangue esguichando pela carótida, que curtem os slasher movies, as obviedades, as explicitudes, os exageros, o terror que não é terror, e sim terrir, tipo Garota Infernal. Esses aí – exatamente os da faixa etária que curtiram Daniel Radcliffe como Harry Potter – seguramente não encontrarão em A Mulher de Preto coisa alguma que os possa agradar.
Não há uma única cena em que o sangue esguicha de carótida no filme.
A Mulher de Preto é uma produção (entre outras) da Hammer Films, uma empresa inglesa especializada em filmes de terror, surgida em 1934. Nos Estados Unidos, por essa época a Universal lançava seus grandes clássicos de horror – Frankenstein (1932), A Múmia (1932), O Homem Invisível (1933), A Noiva de Frankenstein (1935), e era seguida pelos demais estúdios, embora sem o mesmo sucesso. A Hammer foi um patrimônio da história do cinema inglês, um tanto como foram no Brasil a Atlântida e a Vera Cruz.
Depois de alguns anos de silêncio, a Hammer voltou a produzir filmes de terror a partir de 2008. A Mulher de Preto é um dos filmes dessa retomada.
Que seja bem-vinda de volta a Hammer. Até porque pode haver e há histórias de terror em todos os cantos do mundo, em todas as civilizações, como nos lembra num dos pequenos especiais do DVD a autora do romance que deu origem a este filme aqui. Mas – não tem jeito – nesse campo, como em tantos outros, os ingleses são imbatíveis. Napoleão e Hitler, por exemplo, sabem disso.
Anotação em janeiro de 2013
A Mulher de Preto/The Woman in Black
De James Watkins, Inglaterra-Canadá, 2012.
Com Daniel Radcliffe (Arthur Kipps)
e Ciarán Hinds (Daily), Janet McTeer (Mrs. Daily), Shaun Dooley (Fisher),
David Burke (PC Collins), Liz White (Jennet), Sophie Stuckey (Stella Kipps), Misha Handley (Joseph Kipps), Roger Allam (Mr. Bentley), Mary Stockley (Mrs. Fisher)
Roteiro Jane Goldman
Baseado no livro de Susan Hill
Fotografia Tim Maurice-Jones
Música Marco Beltrami
Montagem Jon Harris
Produção Alliance Films, Exclusive Media Group, Hammer Films, UK Film Council. DVD Paris Filmes.
Cor, 95 min.
**1/2
Esse filme é bem legal, muito bom, assim como o Daniel.
Como voce diz, Sergio, a abertura a primeira sequência do filme é um brilho,um verdadeiro desbunde.
Também gostei do Radcliffe mas sinceramente não há o que me faça ver um só, dos “Harry Potters”. Não consigo, não ” desce “. Assim também como não vejo um só dos ” Indianas “.
De fato, é o tipo de filme que a pessôa sabe que em algum momento vai se assustar e, se prepara mas assim mesmo se assusta.
Ótimo filme com muito suspense, muito terror e cenas que não causam aquele sustinho não, causam medo de verdade.
Li não lembro onde que será feito o segundo.
Não sei se será uma boa, talvez já não cause o mesmo impacto mas, posso estar enganado.
Um abraço !!
A ideia de so chegar ate o local quando a mare baixa, tornando a penisula uma ilha em questao de horas, e muito, muito assustador.
Bom filme, muito eficiente e com uma cena inicial de grande categoria.
Só depois de ver é que percebi quem era o actor principal e achei que era uma boa opção para descolar da personagem de Harry Potter (que nunca vi).
Este realizador fez outro filme de terror muito diferente e que vale a pena ver – Eden Lake.