A Grande Mentira / The Great Lie

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2.5 out of 5.0 stars

Este A Grande Mentira parece ser um daqueles muitos filmes que ficaram obscuros, pouco conhecidos, com o passar do tempo. Seguramente não é dos filmes mais conhecidos de Bette Davis.

Mary Astor ganhou o Oscar de coadjuvante por sua interpretação nele, mas na verdade sua carreira ficou muito mais marcada pelo outro filme que fez naquele mesmo ano, 1941, do que por este aqui: Relíquia Macabra/The Maltese Falcon, este, sim, é um filme marcante, importante.

A Grande Mentira não chega a ser um bom filme. Começa bem chato, datado, antiquado, até meio bobo, e na verdade demora bastante a dizer a que veio. Seu tema central só vai aparecer na segunda metade de seus 107 minutos. Aí ele cresce, fica bastante interessante – e avançado, à frente de seu tempo.

Isso pode parecer bem estranho – um filme que começa datado, antiquado, e depois fica adiante de seu tempo. É estranho mesmo, mas é o que é.

Um triângulo amoroso formado por gente muito rica

Começa com um triângulo amoroso. Nas três pontas do triângulo, gente rica, muito rica. Pete Van Allen (o papel de George Brent) é um milionário bon vivant; não se questiona de onde vem sua fortuna – presume-se que seja de herança, porque o cara não trabalha. O que ele faz é um hobby: gosta de pilotar seu pequeno avião, e é até bastante bom na brincadeira, conhece cartografia, geografia.

zzlie2Pete esteve noivo duas vezes de Maggie (o papel de Bette Davis), uma mulher também rica, que vive em sua imensa fazenda em Maryland, cercada por um grande número de serviçais, todos negros, todos apaixonados por ela, em especial Violet, que foi sua ama-seca e agora é, além de faz-tudo, pau pra toda obra, sua companheira, sua protetora. Violet é interpretada por Hattie McDaniel (1895-1952), que dois anos antes havia feito a empregada de Scarlett O’Hara em … E o Vento Levou e ganhado o Oscar de coadjuvante pelo papel – o primeiro ator negro a ganhar a estatueta dourada.

Namoraram, noivaram duas vezes, o rico Pete e a rica Maggie – mas não chegaram a se casar.

Quando a ação começa, Pete está recém-casado com Sandra Kovak (o papel de Mary Astor), uma pianista clássica de fama crescente. E a vida que levam, na Nova York mal saída da Grande Depressão, é uma festa eterna de fazer inveja a Zelda e F. Scott Fitzgerald, com muita, mas muita bebida, desde a hora em que acordam até a hora em que apagam de novo.

No dia em que a ação começa, Pete resolve ficar sóbrio pela primeira vez em um bom tempo. E, ao saber pelos empregados que seu amigo e advogado Jock Thompson (Jerome Cowan) anda ligando sem parar, vai finalmente ao escritório dele.

O advogado Jock explica que o casamento de Pete e Sandra – realizado com os noivos de porre – simplesmente não é válido. Isso porque o divórcio de Sandra de seu casamento anterior ainda não havia sido oficializado, o que só iria acontecer na terça-feira seguinte. Portanto, se quisesse mesmo ficar com Sandra, ele precisaria se casar de novo a partir da outra terça.

E então Pete embarca no seu aviãozinho e vai até a fazenda de Maggie em Maryland. Enfrenta a dura barreira formada por Violet, e finalmente vê Maggie. Mal humorada, em depressão por causa do casamento do ex-noivo ao quadrado com outra, Maggie conversa um pouco com ele mas acaba o mandando embora sem que ele conseguisse dar a informação de que, afinal de contas, ainda era solteiro.

De volta ao gigantesco apartamento de Sandra em Manhattan, conta a novidade para a esposa ainda não efetivamente esposa, e a pede em casamento novamente – desde que ela aceite se casar na terça-feira seguinte. Só que na terça-feira seguinte ela tem um concerto na Filadélfia. Ele repete o pedido: casa-se de novo, mas na terça-feira.

Ela viaja para dar o concerto – e ele tem assim a desculpa perfeita para cascar fora e ir contar toda a história para Maggie.

zzlie3Casam-se, Pete e Maggie, na fazenda dela, enquanto os empregados apaixonados pela boa patroa cantam de alegria.

Os racialistas, os neo-racistas, ah, esses baniriam definitivamente o filme por fazer um retrato do negro como empregado espoliado esfoliado e ainda por cima feliz.

A rival avisa Maggie que vai tomar o marido dela

Mas que essa trama toda até aí é de assustar qualquer um, lá isso é. Os figurinos exagerados, criados para demonstrar riqueza, são um caso à parte – uma coisa absolutamente ridícula.

Então Pete e Maggie têm uma lua de mel absolutamente idílica na fazenda – que dura apenas cinco dias. Porque Maggie, que desejava transformar o agora maridão de um eterno bon vivant em uma pessoa sóbria e produtiva, havia mexido uns pauzinhos com seu tio, figurão importante em Washington, recomendando que o governo empregasse Pete em algum cargo na área da aviação. E, no quinto dia de lua de mel, a boa tia Ada (Lucile Watson) liga de Washington para dizer que Pete está sendo esperado lá para uma reunião.

Lá vai Pete para Washington, onde é imediatamente contratado pelo governo para uma missão na Floresta Amazônica brasileira. Enquanto o marido está em Washington, Maggie vai a Nova York; como o mundo dos muito ricos é pequeno, no bar onde ela toma um coquetel e espera por uma ligação de Pete, surge Sandra, que dá parabéns pelo casamento – e avisa que vai conquistar Pete de volta.

Estamos aí já com 40 minutos de filme. É nesse diálogo entre as duas mulheres que surge pela primeira vez o tema que ocupará o resto da narrativa.

E aí é que está. Embora as sinopses do filme – como a de Leonard Maltin no seu Movie Guide, por exemplo – adiantem o tema, não me sinto confortável em fazer isso aqui. Vou até falar sobre isso, já que, afinal de contas, é o cerne do filme, mas deixo para mais adiante, com o devido aviso de spoiler.

Desta vez, a personagem de Bette Davis não é uma mulher forte, poderosa

Antes de avançar sobre o que a trama só revela quando o filme já vai pela metade, gostaria de fazer algumas observações.

zzlie4Este é um dos filmes em que Bette Davis está mais bela. Claro, este não é o principal atributo de Bette Davis, de forma alguma, até porque propriamente bela ela nunca foi. Mas este é um dos filmes em que seu rosto está mais bonito.

E é fascinante o fato de que, em boa parte da narrativa, seu personagem, ao contrário da imensa maioria dos que ela interpretou em sua carreira longa e gloriosa, não é o de uma mulher forte, cheia de si. Ao contrário: na maioria das sequências, o que vemos é uma Maggie-Bette Davis um tanto frágil, um tanto insegura – e muitas vezes entregue à tristeza.

Bette Davis se mostrar um tanto frágil é uma prova definitiva de que é uma grande atriz: consegue entrar num personagem que é muito diferente dela mesma.

Há um pequeno detalhe que também surpreende e consolida essa sensação de fragilidade do personagem: Mary Astor aparece sempre mais alta do que Bette Davis. Mais alta, mais volumosa. Sua Sandra é a mulher ativa, forte, pianista renomada, enquanto a Maggie de Bette Davis é a que não tem profissão, talento, brilho próprio.

Leonard Maltin, além de contar toda a história em uma única frase (que naturalmente não vou reproduzir), dá 3 estrelas em 4 para o filme, que define como soaper bem montada. Soaper é de soap opera, adjetivo em tom depreciativo para designar novela de TV, folhetim. Melodramão.

E nisso Maltin está cheio de razão. A trama de The Great Lie, baseada num romance de Polan Blank, é um baita melodramão que poderia perfeitamente ter dado origem a uma novela mexicana.

zzlie5O livro The Warner Bros. Story conta toda a história, a trama inteira – que ele chama de “improvável” – para depois dizer o seguinte:

“Em absoluto contraste com os dramas sociais produzidos pelo estúdio nos anos 1930, soap operas como The Great Lie tinham tanta semelhança com a vida real quanto Flash Gordon com a ciência da astronomia. Mas eles faziam bastante sucesso nas bilheterias, e este aqui não foi exceção. Davis e Astor em combate eram fascinantes. Na verdade, foi Davis que, a fim de melhorar a trama absurda, insistiu em que o personagem de Astor tivesse uma importância maior. Como resultado, Astor ganhou um Oscar por sua atuação como coadjuvante e agradeceu a Davis – e a Tchaikovsky – no seu discurso na cerimônia. A trilha de Max Steiner era melodramática, e Edmund Goulding, dirigindo um elenco que incluía Lucile Watson, Hattie McDaniel e Virginia Brissac, trouxe um verniz de sofisticação ao conjunto, o que, considerando-se a trama, chegava a ser um milagre.”

A menção a Tchaikovsky é porque a personagem de Mary Astor executa – bombasticamente – o Concerto para Piano nº 1 do compositor russo.

Ao ver o filme, nem a figura do ator que faz Pete, George Brent, nem seu nome me disseram nada, não fizeram cair ficha alguma. Mas ele trabalhou em três filmes que já estão neste site: Serpentes de Luxo/Baby Face (1933), Jezebel (1938), também estrelado por Bette Davis, e O Amor é Eterno/Tomorrow is Forever (1946). Não (re)conhecê-lo é ignorância minha. George Brent (1899-1979) atuou em mais de cem filmes, na época de ouro de Hollywood.

O diretor Edmund Goulding (1891-1959), inglês de nascimento, radicado nos Estados Unidos quando tinha cerca de 30 anos, foi também roteirista, produtor e compositor. Realizou uns 40 filmes, inclusive o famosíssimo Grand Hotel, o primeiro filme de Hollywood a reunir um elenco com diversos astros e estrelas.

Atenção: spoiler

zzlie7O tema central da história é a discussão da seguinte questão: quem tem mais direito de criar um filho – a mãe biológica, ou a mãe que efetivamente cuidou dele?

É um assunto sério, importante, polêmico. Bons filmes abordam a questão, como O Destino de uma Vida/Losing Isaiah, que Stephen Gyllenhaal (o pai dos ótimos Jake e Maggie Gyllenhaal) dirigiu em 1995. Naquele filme, a personagem interpretada por Jessica Lange adota uma criança que havia sido abandonada pela mãe drogada (o papel de Halle Berry); depois de algum tempo, limpa, recuperada, a mãe briga pela guarda do filho que havia abandonado no lixo.

Outro filme recente, o mexicano A Outra Família, de Gustavo Loza, de 2011, discute o mesmo tema. Nele, há um elemento complicador: quem acaba cuidando de um garoto abandonado pela mãe drogada é um casal gay.

A Grande Mentira não é mesmo um bom filme. O início, como já disse e descrevi, é bobo, e a trama toda roça de fato o absurdo.

Mas o fato de ele levantar essa questão sobre mãe biológica x mãe de criação, em 1941, é corajoso, é avançado, é louvável. Não é um bom filme, mas também não é uma porcaria. Merece respeito.

Anotação em novembro de 2011

A Grande Mentira/The Great Lie

De Edmund Goulding, EUA, 1941

Com Bette Davis (Maggie Patterson), George Brent (Pete Van Allen), Mary Astor (Sandra Kovak)

e Lucile Watson (tia Ada), Hattie McDaniel (Violet), Grant Mitchell (Joshua Mason), Jerome Cowan (Jock Thompson), Sam McDaniel (Jefferson), Russell Hicks (coronel Harrison)

Roteiro Lenore Coffee

Baseado no romance The Far Horizon, de Polan Blank

Fotografia Tony Gaudio

Música Max Steiner

Montagem Ralph Dawson

Figurinos Orry-Kelly

Produção Jack Warner, Hal B. Wallis, Henry Blanke, Warner Bros. DVD ClassicLine.

P&B, 107 min

**1/2

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