Garotas do Calendário / Calendar Girls

3.5 out of 5.0 stars

Um encanto, uma preciosidade, uma pequena gema do cinema inglês. Um desses filmes que, ao terminar, deixam você a alguns centímetros do chão, flutuando de alegria, e com vontade de sair dizendo aos amigos para não deixar de ver.

Todo mundo deveria ver Garotas do Calendário. Bem, menos as crianças, que não entenderiam ou não teriam interesse. Mas até os adolescentes deveriam ver; muitos seguramente achariam ridículo, mas na cabecinha de alguns poderia ficar uma semente do bem. Os fãs apenas de filmes de ação, esses ficariam entendiados, possivelmente. Mas acho que com a exceção das crianças e dos tarados por filmes de ação, todo mundo deveria ver Garotas do Calendário.

Em especial as mulheres, e mais especialmente ainda as mulheres que já passaram dos 35, dos 40, e começam a ficar apavoradas com a ação do tempo. Garotas do Calendário, assim como o também inglês Shirley Valentine, é uma ode às mulheres maduras.

O melhor cinema que se faz hoje no mundo

Mesmo com o risco de ser repetitivo, insisto: este é mais um dos filmes que me comprovam que o melhor cinema do mundo hoje é o feito naquelas ilhotas que no mapa ficam à esquerda do continente europeu. Como, para citar só alguns lançados nos últimos dez anos, são também Caindo no Mundo/Cemetery Junction, O Discurso do Rei/The King’s Speech, O Retorno de Tamara/Tamara Drewe, Revolução em Dagenham/Made in Dagenham, Harry Brown, Maldito Futebol Clube/The Damned United, Rastros de Justiça/Five Minutes of Heaven, Educação/An Education, Os Piratas do Rock/The Boat that Rocked, Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky, Ataque Terrorista/Shoot on Sight, Um Lugar Chamado Brick Lane/Brick Lane, A Rainha/The Queen, Sra. Henderson Apresenta/Mrs Henderson Presents, De Bico Calado/Keeping Mum, Simplesmente Amor/Love Actually, Coisas Belas e Sujas/Dirty Pretty Things.

Duas mulheres de meia-idade que acham ridículo o seu clube – mas o frequentam mesmo assim

A ação se passa bem longe de qualquer cidade grande – quase tudo acontece numa pequenina cidade do interior inglês, cercada por aquele verde absolutamente verde do campo como só existe na Inglaterra. A cidadezinha se chama Knapely, em Yorkshire. As personagens principais são senhorinhas de meia idade que moram ali; a imensa maioria delas não trabalha – só cuida da casa para os maridos, e então tem tempo de sobra para fazer o que bem entendem. Praticam tai chi chuan numa bela colina. E participam das reuniões do Women’s Institute, WI, uma organização nacional, com filiais espalhadas por todo o país, uma espécie assim de Rotary Club, ou Lion’s Club, versão feminina.

Os objetivos básicos do WI são enlightenment, fun and friendship – iluminação (esclarecimento, informação), graça e amizade.

Os temas das palestras do WI de Knapely não chegam a ser assim propriamente cheios de graça. Em janeiro, as senhoras ouviram um especialista falar sobre a história do marketing do leite na região. Em fevereiro, uma expert falou sobre tapeçaria. Em março, um senhor relatou com foi seu cruzeiro ao redor do mundo. E em abril uma especialista contou tudo sobre o brócolis.

Amigas inseparáveis, Chris e Annie (interpretadas pelas esplêndidas, maravilhosas Helen Mirren e Julie Walters, na foto acima) não são das que mais se informam e divertem com os temas das palestras do WI. Sentam-se nas últimas fileiras, gozam os temas escolhidos pela presidente da seção regional do instituto, Marie (Geraldine James), uma jovem senhora que leva tudo muito a sério. Acham tudo aquilo muito chato e a rigor não sabem muito bem o que estão fazendo participando daquelas atividades.

Bem a rigor, estão ali porque em suas vidas sobra tempo e falta o que fazer.

          A mulher bem casada vê que o marido fez a mala – e pensa que ele está indo embora

Tanto Chris quanto Annie têm casamentos felizes. O marido de Chris, Rod (Ciarán Hinds – não consigo ver esse ator que está em tantos bons filmes sem me lembrar do Júlio César marcante que ele interpretou na série Roma), tem um flora, que toca com a ajuda da mulher, embora a rigor faça praticamente todo o serviço; o negócio deles chama-se Flower Power, um indicativo de que o casal foi, na juventude, um tanto riponga. Os dois têm um filho aí de uns 16, 17 anos, Jem (John-Paul Macleod).

O marido de Annie, John (John Alderton), também cultiva flores em uma estufa junto de sua casa; foi diretor de um parque nacional, é especialmente apaixonado por girassóis.

Quando estamos com cinco minutos de filme, há uma sequência primorosa, magistral, uma pequena pérola, que define bem o tom do filme, a sensibilidade dos roteiristas Juliette Towhidi e Tim Firth e do diretor Nigel Cole, a suavidade com que contam a história.

Annie entra em casa e vê que John fez uma mala. Ela leva um tremendo susto. Ele surge no corredor.

John: – “É, precisamos ter uma uma conversa. Annie…”

Annie, o rosto tomado de pânico: – “Não me abandone”.

Ele dá um pequeno sorriso, se aproxima dela, a abraça:

John: – “Ei, ei… Venha cá. Ei, ei… Não estou abandonando você. Delícia de moça…”

Os dois estão abraçados. Close-up no rosto de John: – “Pelo menos, raios, espero que não”.

Na tomada seguinte Annie e Chris estão num corredor de hospital.

Aos 18 minutos de filme John está sendo enterrado. Chris entrega a Annie um imenso girassol para que ela deposite sobre o caixão antes que ele seja baixado.

Em que outro lugar do mundo mulheres de meia idade pensariam em posar nuas para um calendário?

Aos 20 minutos, Chris está com o filho Jem numa oficina, levando a bicicleta dele para consertar, e observa na parede um calendário, desses típicos, uma mulher nua por mês. Algum tempo antes, Chris havia se divertido muito ao descobrir, escondida embaixo da cama do filho, uma revista de mulher pelada.

E então vem a idéia, que ela expõe primeiro a Annie, e depois a outras amigas: que tal fazer um calendário, como os calendários da Pirelli, com elas próprias posando nuas?

Os calendários anuais da seção regional do Women’s Institute são sempre a mesma coisa: 12 igrejas da região; 12 paisagens da região; 12 flores da região. Vendem-se pouquíssimas cópias de cada um.

Por que não um calendário com elas posando nuas? Pode dar algum dinheiro, que elas usariam para comprar um sofá melhor para a sala de espera do hospital em que John foi tratado.

Seria uma forma de homenagear John.

Em nenhum outro lugar do mundo, a não ser naqueles ilhotas malucas

Em que outro lugar do mundo um grupo de mulheres interioranas de meia-idade pensaria em posar sem roupa para um calendário?

Só naquela ilhota maluca, a mais sólida democracia do mundo, aquele país classista a não mais poder, o império da caretice – e, no entanto, a ilhota onde surgiram os Beatles, os Stones, a minissaia, a ilhota em que, no enterro da princesa mais querida das últimas décadas, talvez séculos, no principal templo da Igreja Anglicana, a Westminster Abbey, na presença da família real e de chefes de Estado do mundo inteiro, uma das homenagens mais emocionantes foi um cantor abertamente gay e muitas vezes escandalosamente veado cantar uma música de sua autoria, adaptada com letra nova em homenagem à falecida. O império da caretice – e, no entanto, a ilhota que fez de Elton John Sir, cavaleiro do reino.

Só na Inglaterra. Só num filme inglês os roteiristas conseguiriam pensar numa trama dessas – da mesma forma que, anos antes, haviam criado a história de um grupo de operários desempregados pós Margaret Bloody Thatcher que resolve fazer strip tease para ganhar algum dinheirinho – o delicioso, maravilhoso Ou Tudo ou Nada/The Full Monthy.

Só na Inglaterra.

Só que os roteiristas não inventaram a trama de Garotas do Calendário. Eles só recriaram algo que aconteceu de verdade, numa cidadezinha de Yorkshire mesmo.

Em 1999, um grupo de senhorinhas de uma cidadezinha de Yorkshire, após a morte do marido de uma delas, fez, sim, um calendário.

Atenção: os parágrafos seguintes fazem revelações, spoilers. Melhor pular para o próximo intertítulo

Eu não sabia, é claro, que o filme é a reconstituição, em forma de ficção, de uma história absolutamente real. E o filme não usa o fato de ser baseado em uma história real como ponto de venda, como estratégia de marketing. Nos cartazes do filme, na capa do DVD, não há aquele aviso tão comum, e que funciona bastante como peça de venda: “Baseado em uma história real”.

Quem não gosta de ler sobre os filmes antes de vê-los não deveria ter lido esta anotação até aqui.

Só no final, nos créditos finais, os letreiros dizem que o filme é dedicado a John Baker – o marido de uma das senhoras da cidadezinha da vida real que morreu de leucemia em 1999.

Os letreiros finais informam também que, até aquela data – o filme é de 2003 –, o calendário havia rendido para o Fundo de Estudos sobre Leucemia a quantia de 578 mil libras esterlinas – o suficiente para construir uma unidade nova para tratamento de doentes de leucemia no hospital local… e para comprar um sofá.

Nos especiais que vêm no DVD do filme, as verdadeiras garotas do calendário são entrevistadas, assim como o verdadeiro autor das fotos do calendário original.

O filme participou do Festival de Cannes, e algumas das garotas verdadeiras estiveram no tapete vermelho da Croisette, juntamente com as atrizes que as interpretaram na tela.

          Os ingleses adoram histórias de gente que tira a roupa em público. Naughty people…

Nesse ponto – a recriação de uma história verdadeira, com making off que mostra as pessoas da vida real em que o filme se baseia –, Garotas do Calendário faz lembrar Sra. Henderson Apresenta, a delícia que Stephen Frears criou em 2005. No filme, a Sra. Henderson, mulher rica, que fica viúva e não sabe o que fazer com seu tempo e sua fortuna, interpretada por outra grande atriz inglesa, Judi Dench, acaba tendo a idéia de comprar um teatro. E, quando o teatro começa a não ter lotação esgotada, tem outra idéia: a de botar em cena mulheres nuas.
Parece uma idéia saída da cabeça de roteirista que tomou ácido – mas é o retrato de algo que aconteceu de fato, nos anos 40, os anos em que Londres era bombardeada pelos aviões nazistas.

Mulheres nuas em cena, em Sra. Henderson Apresenta. Homens fazendo strip-tease, em Ou Tudo ou Nada. Mulheres de meia-idade, várias delas já na terceira idade, posando nuas para fotos de calendário. Hum… Povinho meio safado, aquele, né? Naughty people…

O guia francês gostou das atrizes “so British”. O americano diz que o roteiro não é inspirad0

Outras opiniões.

No Guide des Films de Jean Tulard, se diz que o filme tem todo o charme do compo inglês, suas pradarias verdes, suas casas de pedra cinza, as pessoas pitorescas, em particular essas damas cheias de inocência e malícia. “A história é, parece, verídica!” Segundo o guia francês, na sua primeira parte o filme é agradável, levado por atrizes “so British” – assim, em inglês; a segunda parte é mais banal, e parece se alongar. “Um filme gentil, inofensivo, em todos os pontos previsível.”

Leonard Maltin deu só 2.5 estrelas num total de 4. Diz que é uma comédia amável baseada em história real, e que Helen Mirren e Julie Walters estão tão agradável, e todo o elenco que as cerca é tão bom, que é uma vergonha que o roteiro não seja mais inspirado.

Cada cabeça, uma sentença. Para mim, o roteiro é inspiradíssimo.

Ao longo dos deliciosos diálogos no inspirado roteiro de Juliette Towhidi e Tim Firth, fala-se muito, com aquele típico humor inglês, da diferença entre naked e nude. Não seriam fotos – argumentam Chris, a autora da idéia, e Annie, que a comprou de imediato – delas peladas. Seriam fotos de nus. Naked, pelada, é pornografia. Nude, nu, é arte. Simples assim.

(E aqui não consigo deixar de lembrar que a expressão in the nude foi usada por Bernie Taupin na letra original de “Candle in the Wind”, a canção dele e de seu parceiro habitual Elton John, em homenagem a Marilyn Monroe.  “A solidão era dura, o papel mais difícil que você desempenhou. Hollywood criou uma superstar e dor foi o preço que você pagou. Mesmo quando você morreu, a imprensa ainda perseguiu você; tudo que os jornais tiveram para dizer foi que Marilyn foi encontrada nua.” Na segunda versão da letra, feita para a Princesa Diana, o verso inicial, “Goodbye, Norma Jean”, passou a ser “Goodbye, England’s rose”. E, nessa estrofe que começa com a solidão, “loniless was tough”, se disse “loveliness we’ve lost”. Grande Elton John, grande Bernie Taupin.)

Um belíssimo filme sobre a vida o amor a morte, feito com extraordinário senso de humor

Há saborosas piadas ao longo de toda a narrativa. As situações – um bando de senhorinhas casadas dispostas a ficar in the nude, é verdade que por uma boa causa, mas de qualquer forma dispostas a ficar in the nude – é claro que ajudam muito.

A seqüência em que os maridos vão se reunindo em silêncio no pub enquanto as mulheres estão posando para as fotos é hilária, bem feitíssima, deliciosa.

“Não é uma comedinha”, sentenciou Mary, quando o filme terminou, e estávamos os dois levitando de alegria por ter visto uma obra maior. É um filme sério, sobre coisas sérias, importantes, da vida das pessoas, feito com um extraordinário bom humor – não foram essas palavras exatamente, mas foi essa a idéia.

Mary deveria ter um site de filmes.

É exatamente isso. É um belíssimo filme sobre a vida o amor a morte – que por acaso é feito com um extraordinário senso de humor.

Um filme imperdível.

Anotação em julho de 2012

Garotas do Calendário/Calendar Girls

De Nigel Cole, Inglaterra-EUA, 2003

Com Helen Mirren (Chris), Julie Walters (Annie), Linda Bassett (Cora), Annette Crosbie (Jessie), Celia Imrie (Celia), Penelope Wilton (Ruth), Ciarán Hinds (Rod), John Alderton (John), Philip Glenister (Lawrence), Geraldine James (Marie), John-Paul Macleod (Jem)

Roteiro Juliette Towhidi e Tim Firth

Fotografia Ashley Rowe

Música Patrick Doyle

Produção Touchstone Pictures, Harbour Pictures. DVD Buena Vista.

Cor, 108 min

***1/2

 

7 Comentários para “Garotas do Calendário / Calendar Girls”

  1. Sérgio, também adorei esse filme, vi uma vez em DVD e a outra quando passou na TV a cabo. Mas não sabia que era “baseado em fatos reais” como os funcionários das locadoras adoram falar p a gente para nos convencer a alugar um filme, como se esse fato tornasse um filme mais interessante. Vc acha q é um mérito a mais ou nada a ver?
    E realmente eu lembro das cenas das mulheres fazendo poses com frutas e flores na frente dos seios, com receio de mostrar que eles já não tinham o viço dos 20-30 anos, que coisa mais linda!Mas é claro q vc não dá os spoilers, fica só elogiando q um país tão careta tenha tido a coragem de ter tido mulheres que posaram nuas- mais ou menos, certo?- esquecendo-se da polêmica criada pelo clubinho delas, que criou o maior caso quando soube dos planos delas.
    Mas concordo com vc: é um filme imperdível, para ver e, de vez em quando, rever.
    Guenia Bunchaft
    http://www.sospesquisaerorschach.com.br

  2. Agora vi. Bem bacana. Gostei bastante, ainda mais porque não termina na explosão de sucesso delas. Grande dica, Sergio!

  3. Quero ver este filme. Fico mais fissurada ainda po saber que é baseado em fatos reais. Adoro, Será que darei sorte de achá-lo nessa nossa “bendita” locadora? Vamos ver. Sábado tá chegando.
    Lúcia

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