A Rainha do Castelo de Ar / Luftslottet som sprängdes

[rating:3]

Houve imensa divergência de opiniões sobre os três filmes suecos baseados na Trilogia Millennium, de Stieg Larsson – Os Homens que Não Amavam as Mulheres, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar. Houve quem gostasse muito do primeiro, houve quem detastasse; muita gente concordou que o segundo e o terceiro não ficaram à altura do primeiro.

Nada mais normal a divergência. Não existe unanimidade – e, se existir, é burra, como ensinava Nelson Rodrigues.

Achei Os Homens que Não Amavam as Mulheres uma beleza, uma maravilha. E é bom realçar, ressaltar, logo de cara, que aqui se está falando dos filmes originais, os suecos, em que os personagens, suecos, são interpretados por suecos e falam sueco. Me recuso a ver a refilmagem americana, que entrou em cartaz no Brasil em janeiro de 2012 com imensa divulgação na imprensa, como todo produto milionário do cinemão comercial de Hollywood.

Os três filmes originais, os suecos, foram feitos praticamente ao mesmo tempo, consecutivamente, em 2009, pela mesma equipe, com os mesmos atores. O segundo e o terceiro foram feitos pelo mesmo diretor, Daniel Alfredson, e pelo mesmo roteirista, Jonas Frygberg.

É subtrama demais, personagem demais – o filme não conseguiria contar tudo

Na minha opinião, o segundo, A Menina que Brincava com Fogo, é um filme muito bom, mas inferior ao primeiro, em parte por ser a continuação de uma história. A sensação que tive é de que quem não leu primeiro os livros extraordinários de Stieg Larsson dificilmente teria condições de acompanhar a trama complexa, com muitos personagens, subplots intrincados. Além de tudo, o segundo não tinha um fim, exatamente como o livro – não há uma finalização de história. É como o fim de um capítulo de uma novela, de uma minissérie – a continuação da história viria no seguinte.

Tive sensação semelhante ao ver agora o terceiro, A Rainha do Castelo de Ar. É um ótimo filme – mas não tem existência própria. É preciso que o espectador tenha visto os dois filmes anteriores. E, de preferência, que o espectador tenha lido os livros.

Para que leu os livros, é uma beleza – mesmo que ele não possa contar direito todas as muitas subtramas presentes no terceiro romance. (Na foto acima, os dois protagonistas da história: Mikael Blomkvist, interpretado por Michael Nyqvist, e Lisbeth Salander, o papel de Noomi Rapace. Lisbeth-Noomi Rapace aparece na maioria das fotos do post.)

Vimos A Rainha do Castelo de Ar com grande prazer, Mary e eu – e, ao final, fica um certo banzo, um certo vazio, aquela sensação ruim de que, pô, acabou, não tem mais. Uma sensação semelhante à que se tem ao final da leitura do terceiro livro – ou ao final, por exemplo, da primeira temporada de The Good Wife, ou de qualquer uma das quatro primeiras temporadas de Dexter. Ao final, em suma, de qualquer bela grande obra.

Mas concordamos, Mary e eu: dificilmente quem não leu os livros vai poder curtir bem o filme. É personagem demais, é subtrama demais. Todos os três são assim, mas o terceiro tem o maior número de subtramas e personagens e diferentes situações. É quando se resolvem diversas das subtramas espalhadas ao longo de Os Homens que Não Amavam as Mulheres e A Menina que Brincava com Fogo.

A policial Figuerola, personagem fascinante do livro, aparece pouco no filme

Só para dar dois exemplos: Rosa/Monica Figuerola e o jornalão Svenska Morgon-Posten, ou simplesmente SMP.

Um dos personagens mais fascinantes de A Rainha do Castelo de Ar, o livro, na minha opinião, é Rosa Figuerola, inspetora do serviço de Proteção à Constituição da DGPN/Säpo, um dos organismos de segurança do governo sueco. Ela só aparece lá pelo capítulo 12, na altura da página 270 do livro (numa das várias edições brasileiras da Companhia das Letras), mas a partir daí sua presença é forte. É uma figura fascinante.

Stieg Larsson começa a descrever Rosa Figuerola assim:

“Era uma dessas mulheres em que as pessoas reparam, e por diversos motivos. Tinha trinta e seis anos, olhos azuis, e não media menos do que um metro e oitenta e quatro. Era bonita, e seu jeito de se vestir a tornava ainda mais atraente. E tinha o corpo excepcionalmente bem definido.”

Bela, grande, atraente, gostosa. Malhava cinco vezes por semana, duas horas por dia. “Concluíra o secundário com as melhores notas e aos 21 anos ingressara na Escola de Polícia, trabalhando depois por nove anos na polícia de Uppsala, enquanto em seu tempo livre estudava Direito. Só por brincadeira, prestara exame para Ciências Políticas, e também passara.”

Nunca perdia tempo com romances policiais ou qualquer literatura de lazer. “Em compensação, mergulhava com o maior interesse nos assuntos mais variados, do Direito Internacional à história da Antiguidade.”

Mikael Blomkvist, um dos dois personagens centrais da trilogia, um grande comedor, será comido por Rosa Figuerola.

Pois bem: no filme, Monica Figuerola (não dá para saber por que resolveram mudar o primeiro nome), interpretada por uma bela atriz, Mirja Turestedt, passa pela ação como um raio. O personagem tem alguma importância, participa de uma cena de ação muitíssimo bem feita – um atentado num bar –, mas, naturalmente, não dá para o roteiro se aprofundar no delineamento de sua personalidade. Não dá, não cabe. É humanamente impossível.

O livro dedica dezenas e dezenas de páginas ao dia-a-dia de um jornalão – que no filme não existe

O segundo exemplo é o jornalão Svenska Morgon-Posten, a que todos se referem pelas iniciais, SMP. O nome do jornal é fictício, foi criado por Stieg Larsson, mas o retrato que o autor faz dele é de um grande jornalão, dos maiores do país, tipo Estadão, O Globo. No livro, Erika Berger, a co-proprietária e co-editora da revista independente Millennium, juntamente com Mikael Blomkvist, recebe um convite para ser redatora-chefe do SMP. É um convite absolutamente irrecusável – que grande jornalista brasileiro poderia recusar o cargo de redator-chefe do Globo, do Estadão? E então, embora cheia de dúvidas, por causa de seu apego à revista Millennium, Erika Berger (nos filmes, interpretada por Lena Endre), aceita o convite.

Stieg Larsson dedica dezenas e dezenas de páginas para descrever a experiência de Erika Berger – jornalista competente, dedicada, com fino senso de edição, mas que sempre trabalhara numa pequena revista independente, embora respeitada – ao chegar do dia para a noite a uma redação gigantesca e assumir sua chefia.

Chegar a uma redação gigantesca para assumir sua chefia deve ser uma das experiências mais apavorantes, estressantes, difíceis, que existem. Que o diga meu amigo Sandro Vaia, que foi chamado para assumir a direção do Estadão depois que Pimenta Neves assassinou com vários tiros a editora Sandra Gomide.

(Eu mesmo tive uma micro experiência dessas, quando caí de pára-quedas para assumir a chefia de redação da revista Marie Claire, então com dois anos de existência. Digo micro por causa do tamanho da redação, umas 50 vezes menor que a do Estadão. Suei frio durante semanas e semanas, enquanto todas aquelas editoras competentes, experientes, ficavam me analisando, me testando – e olha que cheguei com as costas quentes, pois quem me botou na função foi a diretora de redação, Regina Lemos, minha ex-mulher.)

E então Stieg Larsson conta com detalhes a experiência de Erika Berger ao assumir a imensa redação do jornalão SMP, tendo que enfrentar subordinados preguiçosos, outros sem talento, outros trabalhadores e talentosos mas abertamente hostis a ela.

Nada disso entrou no filme. Sabiamente, o roteirista Jonas Frykberg capou fora toda e qualquer referência a um jornalão para onde Erika Berger foi parar. No filme, ele jamais deixa seu posto na revista Millennium. Corretíssima a decisão: não cabia mais essa subtrama no filme, mesmo ele tendo 147 minutos, que aliás passam muito depressa.

Para quem conhece a história, é um filme muito bom

Pois bem. Então é isso: mesmo tirando fora toda uma subtrama, mesmo não tendo tempo para se aprofundar num personagem saboroso, tesudo, como o de Rosa/Monica Figuerola, o livro A Rainha do Castelo de Ar tem subtrama demais, personagem demais, que não caberiam mesmo no filme.

Acho que realmente o filme deve ser um tanto incompreensível para quem não leu os livros.

Mas é um filme muito bom para quem conhece a história, quem teve antes o prazer de se atracar com as cerca de duas mil páginas da Trilogia Millenium.

Era para ser um decálogo. Mas a Trilogia tem existência própria, fecha um ciclo

Quis o destino – ou quiseram os deuses, Deus, a fatalidade, a história, o que for – que Stieg Larsson morresse tão jovem, de ataque cardíaco, em novembro de 2004, com apenas 50 anos. Larsson não chegou a ver o sucesso estrondoso, mundial, dos três livros. Todos eles foram publicados postumamente.

Larsson imaginava fazer uma série de dez livros com os personagens Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist. Teria já bolado um planejamento, as idéias básicas dos dez. Ao morrer, deixou inacabado um quarto volume – chegou a escrever o começo e o fim, faltando completar o miolo, segundo explicou em carta a um amigo.

Teria sido um decálogo.

Não dá para imaginar o que poderia ter sido.

Estranhamente, no entanto, tenho a impressão de que o terceiro livro encerra as subtramas abertas até então nas duas mil páginas. Ou seja: a Trilogia é uma obra completa, com perfeitos começo, meio e fim.

Claro, o final do terceiro livro – assim como o do filme – deixa o futuro em aberto. A partir daí, poderia haver novas histórias envolvendo Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist. Mas as tramas e subtramas que foram abertas nos três primeiros volumes encerraram-se ao final do terceiro. Não ficaram abertos parênteses, colchetes, para serem fechados nos volumes seguintes.

Mais ou menos, me ocorre, como em Casablanca. O capitão francês Louis Renault, o personagem de Claude Rains, fala a frase imortal, naquele filme cheio de frases imortais: “Este é o começo de uma bela amizade”. Aquela história se encerrou – mas algum louco poderia querer fazer um filme mostrando o que Ricky Blaine e Claude Rains resolveram viver a partir dali.

Ou seja: na minha opinião, o destino foi absolutamente cruel ao impedir que Stieg Larsson prosseguisse sua obra, seu Guerra e Paz da literatura de lazer. Mas, dentro dessa crueldade, há um consolo: a Trilogia tem existência própria, com começo, meio e fim. Teria sido muito pior se ele tivesse morrido sem completar o terceiro volume.

Eis aí um pensamento que não serve para nada. Não é consolo, não é nada.

E, no entanto – a vida é feita de adversativas –, tem alguma verdade.

Anotação em fevereiro de 2012

A Rainha do Castelo de Ar/Luftslottet som sprängdes

De Daniel Alfredson, Suécia-Dinamarca-Alemanha, 2009

Com Michael Nyqvist (Mikael Blomkvist), Noomi Rapace (Lisbeth Salander), Annika Hallin (Annika Giannini), Lena Endre (Erika Berger),

Jacob Ericksson (Christer Malm), Sofia Ledarp (Malin Erikson), Anders Ahlbom Rosendahl (Dr. Peter Teleborian), Mikael Spreitz (Ronald Niedermann), Georgi Staykov (Alexander Zalachenko), Mirja Turestedt (Monica Figuerola), Tomas Köhler (Plague), Niklas Falk (Edklinth), Lennart Hjulström (Fredrik Clinton), Jan Holmquist (Hallberg), Niklas Hjulström (Ekström)

Roteiro Jonas Frykberg

Fotografia Peter Mokrosinski

Música Jacob Groth

Produção Film i Väst, Nordisk Film, Sveriges Television, Yellow Bird Films, ZDF Enterprises

Cor, 147 min

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