Contos da Era Dourada / Amintiri din epoca de aur

Nota: ★★★★

Anotação em 2011: Nem era preciso, já tinha havido demonstrações suficientes. Mas este Contos da Era Dourada vem comprovar, definitivamente, a riqueza, o talento, o brilho do novo cinema que surgiu na Romênia, nos escombros do fim do império soviético.

É uma obra coletiva: são seis histórias diferentes, seis pequenos filmes, seis contos, ou “lendas”, reunidos, todos sobre o tema comum: como era a vida na era comunista, a era do ditador Nicolae Ceausescu, a “era dourada” do título abertamente irônico – ou “epoca de aur”, como se escreveria numa simplificação do romeno para o nosso alfabeto. “Epoca de aur” – tão próximo do português, parecendo mais próximo de nós que o catalão.

Obra coletiva, seis histórias, cinco diretores diferentes, um único roteirista, Cristian Mungiu, alguns atores que a gente reconhece dos demais filmes do novo cinema romeno vistos antes. É um filme fascinantemente uniforme e múltiplo, ao mesmo tempo. Todas as histórias são permeadas de um fascinante bom humor. Embora falem de tempos duros, tempos difíceis, tempos de ditadura, as histórias são contadas com graça, leveza. Humour, como dizem, e tanto prezam, os ingleses. Sem o humour, a vida não vale nada, não tem sentido.

Afinal, agora que já passou, é possível rever aqueles tempos rindo um pouco – ou muito – deles. Qualquer pessoa que já tenha vivido sob uma ditadura sabe disso. Os brasileiros que viveram sob a ditadura militar de 1964 a 1985 conhecem bem como é. Argentinos, uruguaios, chilenos, também. Os cubanos ainda não podem rir, mas todos os povos dos países da Europa Central e Oriental que foram submetidos à ditadura comunista após terem sido libertados do nazismo, ao fim da Segunda Guerra, conhecem bem essas verdades.

“Eu vivi muitos anos em uma sociedade comunista, onde engolir o orgulho era nosso alimento de todos os dias”, diz o checo Milos Forman.

Pimenta nos olhos da gente quando é no passado pode até ser divertido

Depois que passa, dá para rir. Pimenta nos olhos da gente quando é no passado pode até ser divertido.

O grau, o tom do humor varia um pouco, de episódio para episódio. As duas primeiras histórias, “A lenda dos vendedores de ar” e “A lenda do chofer de galinhas”, são bastante sutis. São contadas com um estudado, cuidadoso tom minimalista, um tom menor, que quer parecer o mais despretensioso possível. Na primeira, uma garota esperta, de uns 17 anos, Crina (Diana Cavallioti), depois de ser vítima de um pequeníssimo golpe aplicado por Bughi (Radu Iacoban, com Diana Cavallioti na foto acima), une-se a ele para sair por aí aplicando o mesmo golpe, que resulta no confisco, ou, talvez, numa “desapropriação em nome do povo carente”, de garrafas, vendidas em seguida por alguns trocados.

No segundo, Grigore (Vlad Ivanov, na foto acima), um motorista de caminhão que trabalha carregando galinhas até uma cidade portuária do Mar Negro, acabará descobrindo, alertado por Camelia (Tania Popa), uma incansável e solitária mulher trabalhadora, administradora de um restaurante-pousada de beira de estrada, que pode auferir vantagem com uma prosaica demora na finalização do serviço – demora essa que resulta na multiplicação dos ovos que viram de ouro, numa economia em que cada bem é escasso.

A escassez dos produtos básicos, dos bens fundamentais, do ovo ao sabão – essa coisa inerente aos regimes de economia centralizada, controlada pelo Estado. Esse tema, o pequeno indicativo de que há algo de errado no sistema, está presente na maior parte do filme, mas é fundamental nos dois primeiros e no último episódio.

No terceiro episódio, o filme pega na jugular

“A lenda dos vendedores de ar” e “A lenda do chofer de galinhas”, os dois primeiros episódios, deixam no espectador um suave sorriso. É uma beleza ver como se sai tão bem o cinema romeno, como tem maturidade, experiência – como se tivesse sido sempre uma cinematografia ativa, e livre – para contar com talento e humor essas histórias sobre o fracasso do regime.

No terceiro segmento, “A lenda da visita oficial” (foto acima), o filme enfia a faca mais profundamente nas mazelas do regime que felizmente passou desta para melhor. Ao mostrar os preparativos dos habitantes de um pequeno vilarejo para ficar brilhante, engalanado, porque no dia seguinte uma comitiva de importantes personalidades da República Socialista da Romênia poderá vir a passar pela estrada, o filme pega na jugular. Mostra o quanto é preciso de subserviência, de exercício diário de combate à coluna vertebral, para se conviver com os outros na ditadura do partido único.

O tom de alegoria se eleva algumas oitavas. Junto com o humor, vem uma sensação de ódio profundo por tudo o que a ditadura falecida representou.

E, na quarta história, o filme enfia a faca na ferida e a remexe

No quarto episódio, escancaram-se a alegoria, o humor, o ódio, o nojo pela ditadura. Este “A lenda do fotógrafo oficial” (foto abaixo) é corrosivo, virulento, violento. Abandona-se o tom minimalista dos dois primeiros segmentos. Aqui a porrada é forte. É como Dirty Harry pisando na perna do bandido que ele havia acabado de balear: os romenos de hoje enfiam a faca bem no fundo e a remexem, remexem, e afundam mais ainda o corte.

Conta-se a história – perdão, “a lenda” – da visita oficial do então presidente francês Giscard d’Estaing a Bucareste, através da necessidade de, na redação do jornal oficial, o único, serem refeitas as fotos do camarada presidente, ele, Nicolae Ceausescu em pessoa. Ceausescu não pode parecer mais baixo que os demais. E não pode, de maneira alguma, aparecer sem chapéu ao lado do capitalista francês que está com o chapéu na recepção do aeroporto. Como é possível, o camarada presidente parecendo que está tirando o chapéu para o líder do decadente capitalismo?

E lá vão os dedicados homens da fotografia refazer a verdade dos fatos e das fotos, numa era em que ainda não existia o Photoshop.

Pouquíssimas, raríssimas vezes o cinema foi tão impiedoso na crítica, na denúncia do autoritarismo, do culto à personalidade, da imprensa capacho, quanto aqui.

Chamava-se Scanteia o jornal oficial do Partido na Romênia de Nicolae Ceausescu. O Pravda, o Granma romeno chamava-se Scanteia – e é fascinante como o romeno tem tanto a ver com o latim de onde emergiu nossa língua, do lado oposto da Europa. Scanteia – o jornal que escanteava a pravda, a verdade.

Este quarto episódio – que, só por ele mesmo, já seria um filme admirável – me fez lembrar o grande clássico de Wajda, Cinzas e Diamantes, de 1958. Cinzas e Diamantes é o retrato do momento em que, o invasor nazista expulso do solo polonês, estabelece-se ali o invasor comunista. As pequenas autoridades – o prefeito da cidade em que se passa a ação, os assistentes do prefeito, o dono do hotel, o porteiro do hotel, os responsáveis pela ordem – estão todas procurando estabelecer as formas de puxar o saco dos novos donos do poder. Depois de seis anos de sujeição aos nazistas, estão todos, ou quase todos, querendo virar comunistas de carteirinha, desde criancinha.

“A lenda do fotógrafo oficial” me fez lembrar também O Baile dos Bombeiros, o filme que Milos Forman fez em 1967, ainda em seu país natal, na Primavera de Praga antes da chegada dos tanques soviéticos. Forman aproveitava a sutil liberalidade da censura para fazer, como Wajda, a denúncia do puxa-saquismo inerente às ditaduras.

“Se existem, na França, jornais de todas as opiniões, é porque a mentira lá é livre”

E aqui me permito um intermezzo para lembrar a deliciosa brincadeira que Yves Montand criou, depois de abandonar o comunismo. Nas conversas com os amigos, o grande ator-cantor-showman inventou um personagem imaginário, a sra. Pluvier, a última pessoa da França a acreditar piamente no comunismo. Uma espécie assim da velhinha de Taubaté. Uma velhinha do Marais. Jorge Semprun contou como a sra. Pluvier pensava, no seu livro Yves Montand: A Vida Continua:

“Ducon ironizava o fato de não haver imprensa opiniosa na URSS? Mas que exigência tola!, respondia a sra. Pluvier. A verdade não é una e indivisível? Se existem, na França, jornais de todas as opiniões, é porque a mentira lá é livre. Se não existisse nossa querida e valorosa Humanité (para quem não lembra: L’Humanité, o órgão oficial do Partido Comunista Francês), difundida pelos não menos queridos e valorosos CHD, as massas trabalhadoras poderiam conhecer, ainda que parcialmente, a verdade? No dia em que o socialismo triunfar na França haverá apenas uma verdade: a verdade una e indivisível. Haverá então apenas um só jornal, L’Humanité. E depois, o jornal de nossos camaradas não se chama precisamente Pravda? A verdade, portanto. E bico calado!”

Uma gozação dos ativistas que se acham donos da verdade e do povo

Depois de cortar a carne com força, violência, furor, nesse quatro episódio, Contos da Era Dourada baixa um pouco o tom. Não do ódio pela ditadura, mas da virulência. “A lenda do ativista zeloso”, a quinta história, tem um humor aberto, desbragado, bastante diferente dos dois iniciais, ao mostrar uma espécie de sra. Pluvier, de velhinha de Taubaté, o tal ativista mais soviético do que todos os sovietes (Calin Chirila), partindo para uma aldeia longínqua para, à força, a fórceps, acabar com o analfabetismo. Enfrentará um titã, um pastor (Romeo Tudor), o protótipo do homem do povo, sábio, honesto, que os ativistas acham que representam – e, naturalmente, sairá chamuscado do embate. Gláuber Rocha, afinal de contas, estava certo quando pregava que mais fortes são os poderes do povo. O povo é maior do que qualquer bando de babacas – estão aí os petralhas para não me deixar mentir – que se arrogam a achar que são os donos do povo, que sabem o que o povo quer.

E então, no sexto episódio, “A lenda do policial ganancioso (foto abaixo)”, o filme voltará aos temas iniciais, o duro cotidiano das pessoas comuns na economia centralizada, em que pode até não faltar o arroz com feijão, mas faltará sempre o que cada um quer, na hora que quiser. Aqui, falta gás – literalmente. Fazem-se filas para obter a cota de gás. O policial que dá nome ao episódio é interpretado Ion Sapdaru, que já havia brilhado em A Leste de Bucareste, outro dos filmes-símbolos desse belo cinema que se faz na Romênia agora que já se pode rir dos tristes tempos de Ceausescu.

Como um concerto – só que ao contrário, às avessas

Me ocorreu que o filme acaba tendo uma estrutura assim de um concerto – ao contrário, às avessas. Nos concertos, nas sinfonias, os primeiro e terceiro movimento são mais acelerados, enquanto o segundo é mais lento. Contos da Era Dourada começa e termina suave – e acelera no meio. É adágio no começo e no fim – e alegro, presto, no meio.

Personagens malandros, que parecem saídos de um filme de Carvana, ou Gutiérrez Alea

Contos da Era Dourada, mais talvez que os filmes romenos que havia visto antes, me pareceu mostrar uma incrível semelhança dos romenos com os cubanos e os brasileiros.

É sempre perigoso fazer essas generalizações, simplificações. Mas de fato o filme faz lembrar demais o humor que vemos em exemplos da arte cubana, que vemos no comportamento dos brasileiros.

As semelhanças entre Cuba e o Brasil têm explicações óbvias – temos tremenda influência dos mesmos povos africanos. Povos das mesmas regiões e crenças foram levados da África tanto para Cuba quanto para o Brasil. Não é à toa que muitos deuses africanos tenham os mesmos nomes no espanhol de Cuba e no português do Brasil – Iemanjá, por exemplo.

Mas, por algum motivo que escapa à fácil explicação das etnias, parece que os romenos são bastante parecidos conosco. Os romenos parecem cariocas, baianos – as coisas podem não estar bem, mas eles mantêm o bom humor, sempre. E sempre dão um jeitinho. Alguns personagens deste Contos da Era Dourada poderiam perfeitamente estar em um filme de Hugo Carvana, ou entre os personagens de Guantanamera ou Morango e Chocolate.

Se os cubanos já são bem humorados hoje, imagine-se quanto aquela ditadura caquética, esclerosada, passar, como a de Ceausescu, desta para melhor. Quantos belos filmes gozando o inspetor de quarteirão, as verdades únicas do Granma, as filas para a compra do sabonete, os cubanos poderão fazer.

Contos da Era Dourada/Amintiri din epoca de aur

De Hanno Höfer, Razvan Marculescu, Cristian Mungiu, Constantin Popescu e Ioana Uricaru, Romênia-França, 2009

Com: 1) “A lenda dos vendedores de ar”

Diana Cavallioti (Crina), Radu Iacoban (Bughi)

2) “A lenda do chofer de galinhas”

Vlad Ivanov (Grigore), Tania Popa (Camelia), Liliana Mocanu (Marusia)

3) “A lenda da visita oficial”

Alexandru Potocean (o secretário), Teodor Corban (o prefeito), Emanuel Parvu (o inspetor do Partido)

4) “A lenda do fotógrafo oficial”

Avram Birau (o fotógrafo), Paul Dunca (o assistente do fotógrafo), Viorel Comanici (o secretário do Partido)

5) “A lenda do ativista zeloso”

Calin Chirila (o ativista zeloso), Romeo Tudor (o pastor)

6) “A lenda do policial ganancioso”

Ion Sapdaru (policial Alexa), Virginia Mirea (a mulher do policial), Gabriel Spahiu (o vizinho)

Argumento e roteiro Cristian Mungiu

Fotografia Liviu Marghidan, Oleg Mutu e Alexandru Sterian

Música Hanno Höfer e Laco Jimi

Produção Mobra Films, Le Pacte. DVD Imovision.

Cor, 155 min

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Título em inglês: Tales from the Golden Age

6 Comentários para “Contos da Era Dourada / Amintiri din epoca de aur”

  1. Gostava de ver.
    Da Roménia vi “A Este de Bucareste” e “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” que o Sérgio nunca referiu o que acho estranho sendo um filne tão badalado.
    Gostei muito dos dois.
    Tenho para ver outro “A Morte do Sr. Lazarescu” – de já tenho o DVD.
    O Sérgio também não comentou este…
    Mas comentou outros que se devem ter perdido na viagem até à Lusitânia.

  2. É, caro José Luís, de fato ainda não vi “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, talvez o mais famoso de todos os filmes do novo cinema da Romênia. Pretendo ver, sim, é claro. Desse outro, “A Morte do Sr. Lazarescu”, ainda não havia ouvido falar. Mais uma para a lista dos filmes a ver…
    Um abraço.
    Sérgio

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