Anotação em 2010 (postada em fevereiro de 2011): É difícil imaginar que possa haver um outro filme com uma visão mais negativa, mais triste, mais virulenta, mais cruel do casamento do que A Guerra dos Roses. Só que é muito mais que isso.
O ataque ao casamento é só a fachada. O filme feito por Danny DeVito em 1989 é, na verdade, uma paulada fortíssima, vigorosíssima, em um estilo de vida – o apego a coisas, objetos, bens materiais que indicam riqueza, status social. É um panfleto contra o consumismo, o materialismo, essas faces lustrosas, brilhantes, do capitalismo.
O filme é tão duro, ácido, tão amargo, que me deixou zonzo da primeira vez em que o vi, em 1990. Não anotei nada sobre ele na época, a não ser o nome, o diretor, os atores principais, a data, o cinema (o antigo Olido, na Avenida São João), a indicação “com Fê”, e coloquei duas estrelas. Vejo agora que foi um absurdo ter levado minha filha, então com 15 anos, para ver esse pesadíssimo tratado sobre o inferno em que pode ser transformado um casamento construído como uma empresa voltada para a acumulação de tralhas – provavelmente fui induzido ao erro pelo fato de o filme ser classificado como comédia.
Nunca mais tive vontade de revê-lo – até que, numa madrugada, ele me surgiu na TV a cabo, já na metade, e não consegui parar de ver. Na tarde seguinte fui pegar na locadora, para ver inteiro e direito.
Confesso que só depois dessa revisão me caiu direito a ficha do que é o filme.
É um filme muito, muito bom. Vi nele agora muito mais qualidades do que da primeira vez, 20 anos atrás. Só que, de fato, é tão violento, tão virulento, que há momentos em que chega a ser opressivo, deprimente, repelente, quase nojento.
Um belo casal 20, recém-saído de aventuras alegres e despreocupadas
Mas é muito bom. É extremamente bem feito. Os diálogos são inteligentes, ferinos; o diretor Danny DeVito nos faz mergulhar no clima de loucura em que o casal Rose vai chafurdando, se afundando cada vez mais. A todo momento há pequenos detalhes bem sacados, espertos.
A própria escolha dos atores que fazem Oliver e Barbara Rose é uma sacada inteligente. Michael Douglas e Kathleen Turner estavam no auge da fama e da beleza jovem, e tinham feito juntos, pouco antes, duas saborosas brincadeiras cheias de aventura, sex-appeal, simpatia, alegria, nenhum problema sério à vista – Tudo por uma Esmeralda/Romancing the Stone, de 1983, e A Jóia do Nilo/The Jewel of the Nile, de 1985. Um terceiro filme com eles seria quase como transformá-los assim em algo tipo Spencer Tracy-Katharine Hepburn, Alan Ladd-Veronica Lake.
Aí a audiência ia lá ver aqueles dois seres jovens bonitos – meu Deus do céu e também da terra, como Kathleen Turner era linda, gostosa, sensual – e aí, crau! Levava uma porrada na cara.
Uma abertura cheia de brilho
Falei de pequenos detalhes bem sacados, diálogos inteligentes. A abertura do filme já reúne isso. É um brilho. Os créditos iniciais são absolutamente sóbrios: um fundo branco, suavemente ondulado, enquanto os nomes dos atores e da equipe vão aparecendo em preto, ao som da trilha de um bom compositor, David Newman, filho do grande Alfred Nove Oscars Newman, irmão de Thomas, primo de Randy – eta família pra ter compositor bom.
Os créditos iniciais não são muito compridos, mas o espectador rapidamente percebe que aquele fundo branco ondulado é como se fosse um rico lençol, imaculado, pronto para ser maculado. Hum… o filme tem Michael Douglas e Kathleen Turner, e já começa com um lençol, que sugere belas trepadas…
Pois aí acabam os créditos iniciais, depois do nome do diretor Danny DeVito, e vemos um grande close – de um lenço! Um lenço, e a câmara faz um zoom para trás e vemos que o ator Danny DeVito está assoando o nariz!
Danny DeVito faz o papel de Gavin, advogado veterano, raposa felpuda. Um cliente veio consultá-lo sobre a possibilidade de representá-lo em seu processo de divórcio. No escritório imenso, cheirando a prosperidade financeira, com paredes forradas de grossos livros encadernados, Gavin fala ao candidato a cliente sem parar – de seu nariz sensível que está sempre com problemas, do cigarro (acende um), do fato de que passou 13 anos sem fumar. Treze anos, sabe o que isso?
– “… até que uma tarde Barbara veio me ver”.
E aí vemos Barbara na pele aveludada de Kathleen Turner, despedindo-se de Gavin e insinuando que, caso ele mudasse de idéia…
E ela é estonteante, e sua voz é aquela coisa linda e rouca, rouca e linda, mais sensual do que duas coleções inteiras de vídeos pornôs – só aquela voz poderia falar em nome de Jessica Rabbitt, a coelha tesuda de Uma Cilada para Roger Rabbit/Who Framed Roger Rabit, a sensacional mistura de filme com atores e animação que havia sido grande sucesso em 1988, um ano antes deste A Guerra dos Roses.
É uma tomada rápida essa em que aparece Barbara-Kathleen Turner, e voltamos ao escritório de Gavin, em que ele fala sem parar para o cliente que não diz uma única palavra. É outro pequeno detalhe gostoso: ao longo de todo o filme, o cliente do advogado não conseguirá emitir uma palavra.
– “Barbara e Oliver Rose. Você teria ouvido falar deles, se eu não tivesse conseguido manter o assunto fora dos jornais. Acho que você deveria ouvir essa história. Pode ser importante para você. Não vou começar a cobrar ainda. Cobro US$ 450 por hora. Quando um cara que cobra US$ 450 por hora quer contar uma coisa de graça, você deveria ouvir.”
No começo, um conto de fadas. Depois, o inferno
E então Gavin começa a contar para o cliente e para os espectadores do filme a história de Oliver e Barbara Rose, desde a época em que se conheceram, durante um verão, na ilha de Nantucket, junto à costa de Massachusetts, ele estudante de Direito em Harvard, mas bolsista – “pobre, mas inteligente”, como ele mesmo se definia –, ela uma ex-estudante de ginástica. Conhecem-se num leilão de objetos de decoração; disputam uma estatueta japonesa do século XVIII. Ela está indo pegar a balsa de volta para o continente, ele a acompanha, no caminho ela faz uma demonstração de suas aptidões para a ginástica, planta uma bananeira, e a saia, é claro, rende-se à lei da gravidade, ele vê as coxas dela e grita que ama Nantucket, e partem direto para a trepada homérica.
Voltamos ao escritório de Gavin – a narrativa algumas vezes voltará ao escritório de Gavin, onde ele está contando a história para o cliente que quer se divorciar:
– “Parece um conto de fadas, não é?”
Quando voltamos a ver na tela a história que Gavin está narrando, Oliver e Barbara já têm dois filhos, uma garota e um garoto, que estão aí com uns cinco e quatro anos. Depois novo corte, os garotos estão no início da adolescência. Oliver está subindo na vida, trabalhando mais e mais, ganhando mais e mais dinheiro, e Barbara namora uma casa imensa, um daqueles palacetes americanos de dois andares, hall com escada circular, imenso, gigantesco, mastodôntico candelabro bem no alto do hall de pé direito duplo, triplo. Seu maior sonho da vida é comprar aquela casa.
(O candelabro será peça importante na guerra dos Roses.)
Barbara tem um golpe de sorte, consegue se insinuar junto à filha da recém-falecida dona da casa. Os Rose, em meteórica ascensão no paraíso capitalista, compram a mansão de sonhos. Oliver trabalha e trabalha e trabalha; Barbara gasta o dinheiro que ele ganha reformando, redecorando a casa, enchendo a casa de objetos caros, imponentes, de impressionar as visitas.
O roteirista Michael Leeson e o diretor Danny DeVito vão fundo na descrição da loucura – insana, inútil, vazia, besta – do consumismo.
E aí, muito ricos e vivendo numa mansão atulhada de objetos caros, imponentes, os filhos já crescidos, indo para a faculdade, os Rose descobrem que o casamento está uma merda absoluta. Barbara sonha com a morte de Oliver. Na impossibilidade de que ele morra, quer o divórcio – e, naturalmente, a casa, e tudo que há dentro dela.
Vai começar a guerra.
Toda guerra é suja, mas, meu Deus do céu e também da terra, como é suja a guerra dos Roses.
Uma história que ultrapassa todas as fronteiras da loucura
Tenho – não é a primeira vez que confesso isso aqui – um problema sério com comédia de humor negro. Há organismos que não conseguem digerir a lactose e seus derivados, por exemplo. Minha cabeça, tadinha, não consegue digerir comédia de humor negro. Não pego o espírito da coisa.
Não dei nenhuma risada, ao rever A Guerra dos Roses. Nenhum sorrisinho sequer. Para mim isso não é comédia, classificação dada por todo mundo ao filme – é drama, drama pesado. De assustar, de chocar. Não tem nada a ver com graça, riso.
É um belo filme, sem dúvida – um bem elaborado retrato de como duas pessoas que vivem juntas conseguem passar a se odiar profundamente, e entrar numa espiral maluca morro abaixo, rumo ao pior dos infernos.
A Guerra dos Roses é uma história exagerada – propositalmente exagerada, que ultrapassa todas as fronteiras da loucura. Mas isso acontece. A gente sabe que acontece, a gente conhece exemplos. É além da loucura, mas é factível – e até mais comum do que parece.
Por isso é que é assustador, chocante.
No mundo do culto à beleza, o cara é feio, gorducho, baixinho
Danny DeVito é uma figura fascinante. Seu personagem neste filme definirá que a expressão “divórcio civilizado” é uma contradição absoluta. Se fosse mais metido, poderia ter usado o termo oxímoro – combinação de palavras contraditórias, como silêncio barulhento, grito silencioso. O ator de sucesso Danny DeVito é quase um oxímoro, uma contradição absoluta – num mundo de beldades e galãs, ele é feioso, gorducho e baixinho, muito baixinho.
E no entanto é um ator de sucesso, e um bom diretor. “Esse excelente ator revela-se também autor de comédias bem ritmadas”, define Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema. “A batalha a que se entregam Barbara e Oliver Rose depois do divórcio para ficar com a casa, símbolo de seu sucesso, mostra como é possível rejuvenescer a comédia americana.”
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 para o filme. “Como um comentário satírico sobre o materialismo yuppie, essa comédia muito negra consegue um tento – por cerca de uma hora. Então, tendo dito o que queria, continua por mais quase uma hora, enquanto o casal fica cada vez mais irracional. (…) Algumas pessoas adoraram este filme (as atuações dos astros são perfeitas), e então obviamente é uma questão de gosto. Os pontos de vista e loucos ângulos da câmara de DeVito estão sempre presentes.”
O grifo na palavra “são” é do próprio texto de Maltin. E ele tem razão ao destacar os ângulos da câmara de DeVito. Há uma seqüência fantástica em que Barbara e Oliver estão jantando em casa, os dois sozinhos, os dois em silêncio, cada um numa das cabeceiras de uma longa mesa retangular. (Essa situação está presente em Cidadão Kane, e depois em diversos outros filmes, para retratar o vazio em que vai caindo a relação marido-mulher.) A câmara pega em primeiríssimo plano o prato de comida de Barbara, Oliver lá longe, ao fundo; e em seguida inverte, o prato de Oliver em primeríssimo plano, Barbara lá no fundo. Não sei que raio de grande angular (não entendo nada disso) o diretor de fotografia usou, mas é uma visão única – e ele consegue fazer que a imagem não pareça retorcida.
De alguma forma, a rápida avaliação de Maltin apóia o que eu disse acima, vem ao encontro do que falei. É um filme de que você pode gostar – ou que você pode perfeitamente detestar, achar nojento, ou exagerado, ou longo, ou torturante.
Como Xanadu, como Rosebud
Eu, de minha parte, repito: ao revê-lo agora, vi grandes qualidades no filme que não tinha percebido da primeira vez. É uma obra feita com um olhar ácido, acre – mas com inegável talento. E, de fato, não é um propriamente um panfleto contra o casamento. É um panfleto contra o consumismo.
Acho que Maltin resumiu muito bem o que não havia me ocorrido antes: sim, é um panfleto anti-yuppismo, feito na época certa, 1989, o auge do yuppismo. Mas acho que ele vai além disso. É um panfleto contra todos os casamentos, todas as associações de pessoas, todas as vidas que se dedicam a juntar coisas, objetos, símbolos de riqueza.
Me ocorre agora que, sim, a seqüência em que Barbara e Oliver jantam sozinhos, em silêncio, a câmara pegando um ângulo inusitado, atravessando a mesa, é de fato uma citação de Cidadão Kane. A casa dos Roses é o Xanadu deles – como Kane, os Roses passaram a vida juntando coisas, coisas, coisas. E perdendo a razão.
Mais ainda: a tal estatueta japonesa do século XVIII que os então jovens Barbara e Oliver disputam no leilão, no dia em que se conhecem, está para eles assim como Rosebud está para Kane.
Um gigantesco amontado de coisas.
Tudo inútil. Uma idiotice, um desperdício. Porque, como todos sabemos, e o poeta tão bem sintetizou, “além de flores, nada mais vai no caixão”.
A Guerra dos Roses/The War of the Roses
De Danny DeVito, EUA, 1989
Com Michael Douglas (Oliver Rose), Kathleen Turner (Barbara Rose), Danny DeVito (Gavin), Marianne Sägebrecht (Susan)
Roteiro Michael Leeson
Baseado no livro de Warren Adler
Fotografia Stephen H. Burum
Música David Newman
Produção 20th Century Fox, Gracie Films
Cor, 116 min
R, ***1/2
Está bem realizado, bem interpretado e tem um argumento muito original. Quando vi o filme gostei. Mas confesso que não tenho vontade nenhuma de o voltar a ver
Também não vi nada de comédia neste filme. Vi sim, algumas passagens que podem ter sido divertidas mas que também não me fizeram rir.
4 coisas(dizia o pai do advogado)definem um homem. Sua casa, seu carro, sua mulher, seus sapatos. Verdade?
O casarão onde moravam não era do agrado dele. E, ainda se incomodava sim, com o que os outros pensavam.
É como dizes, puro consumismo,ostentação e materialismo ainda que, a Barbara tenha dito para a entrevistada que ela não era assim.
Onde houve tanto amor, um dia haver tanto ódio. Como pode ? Mas como dizes, sabemos que pode sim.
Quando começam a guerrear de todas formas como aconteceu, não vou fazer spoiler,pode até ser exagerado mas, na loucura de cada um, isso acontece sim, depende do tamanho do que a pessôa tem.
Ao contrário do José Luiz,com todo respeito, acho que é um filme que merece ser visto uma segunda vez, sim.
Aquele candelabro . . .
Abraços !!