Anotação em 2011: Este Amor por Contrato/The Joneses é um filme surpreendente. E a verdade é que quanto menos o espectador souber previamente sobre ele, melhor será o prazer de vê-lo.
Não vou antecipar muita coisa sobre a trama. A rigor, vou antecipar quase nada. Mas, mesmo assim, aqui vai uma sugestão: se o eventual leitor tiver interesse em ver o filme, melhor parar por aqui. E voltar – se quiser – só depois de vê-lo.
Bem, a advertência foi feita: quanto menos se souber sobre o filme, melhor
Amor por Contrato vem com a aparência – o trailer, os cartazes, as fotos do DVD – de uma comedinha romântica. É um virulento panfleto contra alguns dos mais caros valores da sociedade capitalista, o consumismo, a capacidade de transformar em necessidades básicas produtos absolutamente supérfluos, a adoração pelas grifes, as aparências como o objetivo final da vida.
A trama é inteligente, interessante, original. A questão é que esta é uma trama cujo brilho consiste em ir revelando aos poucos do que, afinal, se está tratando. Se o espectador fica sabendo com antecedência, antes de ver o filme, qual é a história que vai ver, o impacto fica prejudicado.
É mais ou menos como em The Trumam Show: uma vez alertado para o que vai ver, o espectador perde muito da graça, do engenho do filme.
E, no entanto, o trailer deste filme, a pequena sinopse na caixinha do Blu-ray ou do DVD já revelam mais do que seria o certo, o justo, o devido.
Em suma: no caso de Amor por Contrato, assim como no de The Truman Show, tudo o que se revelar é um spoiler, um entrega-segredo, um estraga-prazer. Mesmo o primeiro parágrafo que escrevi, a rigor, que não revela nada da trama em si, pode funcionar como um spoiler.
Posso estar sendo rigoroso demais – pode ser. Mas tenho tomado cada vez mais cuidado, nestas anotações, para não revelar segredos das tramas, coisas que o próprio filme vai demorar algum tempo para mostrar. Tento não adiantar nada do que vem a acontecer na trama após uns 15, no máximo 20 minutos de filme.
Como uma coleção de quadros de Norman Rockwell, o pintor do Sonho Americano
O roteiro de Amor por Contrato foi construído de tal maneira que, nos primeiros 12 minutos da ação, não se dá pista alguma do que vai, afinal, vir a ser a história. O que se vê, nesse início do filme, é algo como uma coleção de quadros de Norman Rockwell (1894-1978), o pintor e ilustrador que sintetizou os mitos do Sonho Americano, os confortos, o bem-estar das famílias abastadas.
Um gigantesco caminhão de mudanças chega a uma bela, ampla, confortável casa em um bairro de classe média alta de alguma cidade americana – não se diz qual é, exatamente porque pode ser qualquer uma. Um grande exército de funcionários instala belos móveis em todos os muitos cômodos da casa.
Enquanto isso, dentro de um belo carro importado, um Audi, uma aparentemente feliz família viaja em direção àquela casa de sonhos. Ao volante, Steve (o papel de David Duchovny); a seu lado, Kate (Demi Moore). No banco de trás, Jenn (Amber Heard) e Mick (Benjamin Hollingsworth), dois adolescentes, aí na faixa dos 17 a 19 anos.
Nem bem os Joneses estão se instalando na casa já perfeitamente arrumada pelo tal exército de funcionários que chegou com o caminhão de mudança, o casal de vizinhos – Larry (Gary Cole) e Summer (Glenne Headly) – toca a campainha para oferecer aos recém-chegados um presentinho e os votos de que sejam bem-vindos.
Os Joneses convidam Larry e Summer para entrar, Steve oferece uma cerveja a Larry.
No dia seguinte, os jovens vão para seu primeiro dia de aula na sua nova cidade. Kate vai ao melhor salão de beleza da cidade, Steve vai ao clube de golfe.
É perfeição demais na vida daquelas pessoas
Tudo parece perfeito demais. Até Norman Rockwell acharia exagerada tanta perfeição, tanta coisa cara, elegante, de primeiríssima, na casa, tanto bem-estar, tanto conforto material.
Cheguei a me lembrar, nesse início de filme, de Esposas em Conflito/The Stepford Wives, fascinante filme de 1974, em que um casal de classe média (interpretado por Peter Masterson e Katharine Ross) deixa Nova York para viver numa pequenina cidade, a Stepford do título original, uma cidade onde todos parecem ser felizes demais. Esposas em Conflito é uma espécie de ficção-científica/mistério.
O clima que o diretor Derrick Borte, também autor do argumento e do roteiro, consegue criar neste início de The Joneses faz de fato lembrar o filme de 1974.
Faz lembrar as distopias da literatura, muitas delas já levadas para o cinema, claro, como a aparente perfeição da vida da mulher do bombeiro em Fahrenheit 451, naquele futuro sombrio em que os livros eram proibidos.
Bem, mas eu sabia, Mary sabia, provavelmente todas as pessoas que forem ver o filme já sabiam que aquela perfeição toda da família Jones era só aparência – porque o trailer já tinha antecipado, todas as sinopses já tinham antecipado.
Uma sociedade construída sobre uma escala de valores totalmente errada
Estamos com exatos 13 minutos de ação quando surgem os primeiros sinais de que as coisas não são bem como pareciam ser. O que virá a seguir é um tanto espantoso – mas, ao mesmo tempo, a rigor, não muito distante da realidade.
Gostei bastante do filme. É bem feito, é crível, os personagens são interessantes. E a denúncia do absurdo que é o consumismo é forte, vibrante, contundente.
OK, o final é um desapontamento. Sem as duas ou três últimas tomadas, seria muito melhor, mais consistente com o que filme mostrou até ali. Mas paciência. Vale, e muito, pelos demais 90 minutos – o filme tem 96.
Me fez lembrar outros panfletaços contra a sociedade estruturada em cima do consumo, da ostentação, da exibição de riqueza, das aparências. A Guerra dos Roses, um belo filme sobre um casamento – dos jovens e belos Kathleen Turner e Michael Dougas – que começa como um conto de fadas e vira o pior dos infernos. Movidos pelo Ódio/The Arrangement, que Elia Kazan fez em 1969, com base no romance de sua autoria, sobre um publicitário (Kirk Douglas) que de repente percebe que todo o conforto material de que dispõe não serve para nada.
Quando saí do Cine Astor, um tanto chapado, chocado, como se tivesse levado uma surra, depois de ver The Arrangement, no início dos anos 70, me encontrei com um colega, um fotógrafo. Ele disse uma frase que jamais esqueci. Algo assim: “A gente está aqui brigando para ter um mínimo das coisas que aquele cara tem, e para ele elas não têm o mínimo valor”.
Os valores, os valores, a escala de valores.
A verdade é que construímos uma sociedade cuja escala de valores é totalmente errada.
Que sejam sempre bem-vindos os filmes que nos fazem lembrar disso.
“Uma sensacional idéia central, algumas boas observações sobre as coisas”
Há pouquíssimas informações sobre o diretor-autor deste filme, Derrick Borte. Nasceu na Alemanha, em 1967; este foi o primeiro filme que dirigiu.
No All Movie, Jason Buchanan começa sua crítica assim: “Para um filme que tira seu título de um clichê, The Joneses de fato tem algumas observações interessantes sobre os efeitos doentios de nosso inexplicável desejo de estar entre os primeiros a adotar novos hábitos, de ser uma das figuras mais fashionable de nossa comunidade.”
E, num site chamado Den of Geek!, encontro uma relação do que o autor, ou autores, sei lá, considera(m) os dez filmes mais subestimados de 2010. The Joneses está lá: “Considerando a reclamação comum sobre a falta de originalidade nos filmes de Hollywood, é ainda mais surpreendente que The Joneses, um filme com uma excelente idéia na sua base, tenha passado tão despercebido por tanta gente.” Repete que o filme “tem uma sensacional idéia central em sua manga, que usa para fazer algumas boas observações sobre as coisas”, e afirma que Demi Moore teve seu melhor papel em vários anos. E, no final, diz exatamente o que eu já disse: “Quanto menos você souber sobre o filme, melhor. Então vamos calar a boca já, para deixar que você o descubra por você mesmo”.
Legal, legal. É bom saber que não estamos sozinhos.
Amor por Contrato/The Joneses
De Derrick Borte, EUA, 2009
Com David Duchovny (Steve Jones), Demi Moore (Kate Jones), Amber Heard (Jenn Jones), Benjamin Hollingsworth (Mick Jones), Gary Cole (Larry), Lauren Hutton (KC), Glenne Headly (Summer), Christine Evangelista (Naomi)
Roteiro Derrick Borte
Baseado em história de Randy T. Dinzler
Fotografia Yaron Orbach
Música Nick Urata
Montagem Janice Hampton
Produção Echo Lake Productions, Premiere Picture. Blu-ray e DVD Califórnia Filmes.
Cor, 96 min
***1/2
O melhor filme do ano para mim. Amor por Contrato é um filmaço.
Gostei do final. Eu sei que não combinou com o tom satírico, mas, quem conseguiria resistir ao convite do David Duchovny?
Eu não conseguiria…
Eu tinha vindo aqui ler sobre o filme, mas segui seu conselho de não ler antes de assistir; tampouco li as sinopses que sempre entregam uma coisa ou outra.
Então assisti no escuro, sem saber de nada.
Comecei a notar algo estranho quando eles se reuniram para receber os vizinhos, achei todo mundo muito simpático e sorridente, uma coisa forçada. E depois fui juntando uma peça aqui e ali. Antes disso já tinha achado estranha a não-interação dos filhos com os pais, dentro do carro, mas como no geral os aborrescentes são assim, relevei.
Confesso que ver aquele ambiente plastificado, com tudo muito lindo, caro e asséptico foi me dando agonia. Me sentia asfixiada.
A escolha dos dois atores principais não sei se foi proposital, mas achei que tem tudo a ver: o David Duchovny tá com a cara super lisa pra idade que tem, é óbvio que fez alguma intervenção cirúrgica. E Demi Moore é Demi Moore. Faz plástica desde sempre, e tem aquele rosto e corpo que nenhuma outra mulher na idade dela tem. Para um filme que critica o consumo e as aparências, achei a escolha ótima, ainda que tenha sido ao acaso. Aliás, acho que essa busca desenfreada pela magreza extrema e pela juventude a qualquer preço, dos dias de hoje, tem tudo a ver tb com a escala de valores errada da nossa sociedade. Parece que agora, mais do que nunca, é proibido ter rugas, flacidez e cabelo branco. Confesso que tenho medo disso.