3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Sinédoque Nova York é um filme muito, muito doido. É assim uma espécie do Oito e Meio de Charlie Kaufman, o roteirista mais ousado, imaginativo e doido que já surgiu no cinema americano nos últimos vários anos. E é muitíssimo bem feito. Doido, mas talentoso.
Lembrando: Kaufman, um nova-iorquino nascido em 1958, foi o sujeito que escreveu o roteiro de Quero Ser John Malkovich/Being John Malkovich, de 1999, em que as pessoas entram no cérebro do ator careteiro e ficam passeando lá dentro (há bastante espaço). Em 2002, escreveu o roteiro de Adaptação, um filme em que o roteirista Charlie Kaufman (interpretado por Nicolas Cage), tão inteligente e talentoso quanto neurótico, depois do sucesso do filme Quero Ser John Malkovich, é contratado para escrever o roteiro de um filme baseado em um livro de não-ficção, O Ladrão de Orquídeas. Em 2004, foi o autor do roteiro do espetacular Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, em que um cientista cria uma máquina que consegue apagar parte da memória das pessoas, a parte que causa dor da perda de um ser amado.
Uma lógica assim dos sonhos, dos delírios, meu!
Ou seja: o cara não é fácil. Não se pode esperar dele uma história normal, que tenha alguma proximidade com a lógica (tá bem: ou a falta de lógica) que rege a vida real das pessoas. O que ele faz é pra lá de surreal. É algo próximo da lógica dos sonhos – ou das alucinações. A sensação que se tem é de que, antes de sentar-se para escrever, Kaufman manda brasa num ácido forte, poderoso, daqueles de entortar, de fazer neguinho se segurar à árvore diante de casa porque o chão está tremendo. Ou é isso, ou o cara, como o Obelix, caiu no caldeirão quando era bebê.
Nos filmes anteriores, citados acima, Kaufman teve a sorte de entregar seus roteiros criativos a diretores competentes: Spike Jonze dirigiu Being John Malkovich e Adaptação, e Michel Gondry fez Brilho Eterno.
Para fazer Sinédoque, Nova York, o próprio Kaufman tomou para si a tarefa de dirigir; Spike Jonze foi um dos produtores. E o cara se revela tão competente como diretor quanto já havia provado ser como roteirista.
Juntou um elenco espetacular, impressionante: Philip Seymour Hoffman, esse ator excepcional, faz o protagonista; em torno dele gravitam os personagens interpretados por Samantha Morton, Michelle Williams, Catherine Keener (que trabalhou em Being John Malkovich), Emily Watson, Dianne Wiest, Jennifer Jason Leigh, Hope Davis. Tem talento aí para fazer uns cinco filmes.
Uma casa permanentemente pegando fogo
O protagonista é Caden Cotard, dramaturgo e diretor de teatro, sujeito hipocondríaco, que pensa em doença e morte o tempo todo. É casado com Adele (Catherine Keener) e tem uma filhinha de quatro anos, Olive (Sadie Goldstein). Adele é pintora: faz quadros mínimos, tipo 3 x 4, como fotos dos documentos de identidade; para vê-los, é preciso o auxílio de poderosas lentes de aumento. Olive, a filha, é uma gracinha, mas questiona tudo o que acontece à sua volta, desde a cor do seu cocô até a existência de sangue dentro de seu corpo.
O casamento não está muito bem; Caden e Adele vão juntos a uma psiquiatra, Madeleine Gravis (Hope Davis), autora de uns 200 volumes de livros de auto-ajuda. Um dos livros dela – veremos bem mais tarde – vai sendo escrito à medida em que é lido por Caden. Adele está para viajar para a Alemanha, para uma exposição de seus microquadros; às vésperas da viagem, informa ao marido que ele não vai junto – e vai para a Alemanha com a filha para nunca mais voltar.
Abandonado, Caden vai se envolver primeiro com a moça da bilheteria do teatro, Hazel (Samantha Morton, essa atriz de mil caras – no filme, ele aparece com umas cinco diferentes). Hazel lá pelas tantas se muda para uma casa que está permanentemente pegando fogo. E mais tarde Caden se envolverá com Claire (Michelle Williams), a atriz que ele dirige em uma peça.
A essa altura, Caden estará tentando escrever uma peça inspirada, naturalmente, em sua própria vida. Os acontecimentos surreais da vida de Caden serão mostrados lado a lado com as tentativas do protagonista de simultaneamente escrever e montar sua nova peça. Os atores que farão os papéis do próprio Caden (Sammy, interpretado por Tom Noonan) e de Hazel (Tammya, interpretada por Emily Watson) ganharão vida própria e interferirão no plot da peça e na vida de Caden.
Tudo isso dura diversas décadas – e, enquanto os personagens vão ficando velhinhos, disparam como metralhadoras frases filosóficas a respeito da vida do amor da morte.
Uma fascinante doideira, até para um velhinho capricorniano
Tô velhinho, e cada vez menos chegado a criativóis; já escrevi aqui umas 20 vezes sobre isso; prefiro um bom simancol a uma leve dose de criativol. Ou por outra, só pra brincar, porque nunca fui chegado nisto: sou capricórnio, pés enfiados na terra. Ou ainda por outra, pra citar o jovem Belchior, antes que ele ficasse tão alucinadamente perdido nos fantásticos shows da vida: “a minha alucinação é suportar as coisas do dia-a-dia”.
No entanto, o talento do roteirista e diretor Kaufman é tão grande que, ao contrário do que seria de esperar, não pensei por um momento em abandonar o filme pela metade.
É tudo delirante, alucinante, doido – mas inteligente, ágil, e competente, talentoso. Com um elenco desses, bem dirigido, então, é, de fato, um filme fascinante.
Sinédoque Nova York/Synecdoche, New York
De Charlie Kaufman, EUA, 2008
Com Philip Seymour Hoffman (Caden Cotard), Samantha Morton (Hazel), Michelle Williams (Claire), Catherine Keener (Adele), Emily Watson (Tammy), Dianne Wiest (Ellen Bascomb e Millicent Weems),
Jennifer Jason Leigh (Maria), Hope Davis (Madeleine Gravis), Tom Noonan (Sammy Barnathan), Sadie Goldstein (Olive)
Argumento e roteiro Charlie Kaufman
Fotografia Frederick Elmes
Música Jon Brion
Produção Likely Story, Projective Testing Service
Cor, 124 min
***
Achei Sinédoque bem mais fraco que os outros. É realmente muito doido, mas acho que Kaufman precisa de um diretor – não pode ser ele o diretor de seus roteiros. Confuso ao extremo, o filme é mantido pela atuação de Philip Seymour Hoffman, mais uma vez muito bem.
Aliás, Sérgio, outro dia vi A Natureza Quase Humana, também de Kaufman. Esse é beeemmm doido, mas é ruim. Beeem ruim.
Achei o filme belíssimo, li que Kaufman pensou em fazer um filme que te dá sensações diferentes a cada vez que for revisto. uando vi o título, pensei que Sinédoque se referia a uma cidade ou a um estado. Após uma rápida pesquisa, descobri que sinédoque (ou synecdoche, em inglês) é uma figura de linguagem muito parecida com a metonímia. É quando a parte refere-se ao todo. Um exemplo seria: “eu não tenho um teto para dormir”, o teto refere-se à casa. Talvez a sinédoque do filme trata-se justamente da peça de teatro que o personagem principal passa a vida tentando concluir. Talvez a palavra nos impulsione a refletir que aquele mundo ficcional criado pelo personagem é a sinédoque de NY, ou do mundo, ou da vida. Pode ser isso. Pode não ser nada disso. Só uma observação quanto a casa que pega fogo: Ao que tudo indica, Kaufman queria evidenciar que sempre sofremos as consequências dos nossos atos, todas as nossas escolhas condicionam o nosso futuro. Quando Hazel decide morar em uma casa que pega fogo ela sabe que pode morrer intoxicada. A metáfora também pode estar ligada ao discurso do padre:” Há um milhão de pequenos textos… anexados a cada escolha que você faz. Você pode destruir sua vida, cada vez que você escolher”