Anotação em 2010: Depois de Coisas Que Eu Poderia Dizer Só de Olhar Para Ela, de 1999, e Questão de Vida/Nine Lives, de 2005, Rodrigo García faz mais um bom filme sobre gente comum, ordinary people, gente como a gente. Neste Destinos Ligados/Mother and Child, de 2009, ele trata, como diz o título original, das relações entre mães e filhos.
Mais especificamente ainda, da gravidez na adolescência e das questões ligadas à adoção de filhos, filhos que são dados para adoção e crescem longe das mães biológicas, os laços que permanecem sempre presente entre eles.
O roteirista e diretor, nascido em Bogotá em 1959 (ele é filho de Gabriel García Márquez), tem conseguido manter uma grande coerência na escolha de seus temas e de como contar suas histórias. Coisas Que Você Pode Dizer Só de Olhar Para Ela é um filme daquele estilo mosaico, à la Short Cuts, de Altman, focalizando cinco personagens diferentes, cujas histórias são levemente entrecruzadas.
Rodrigo Garcia (foto) repetiu o esquema em Questão de Vida/Nine Lives, em que, como indica o título original, focaliza nove diferentes personagens; para esse filme, em que trabalhou só com planos-seqüência, contou com diversos atores importantes – Robin Wright Penn, Glenn Close, Dakota Fanning, Holly Hunter, Sissy Spacek, Joe Mantegna, Aidan Quinn –, o que por si só já indica o respeito que ele inspira no meio cinematográfico americano.
Repete novamente o esquema mosaico – várias tramas entrecruzadas, vidas de pessoas que se cruzam – neste Destinos Ligados. É um esquema que tem sido muito usado pelo cinema independente americano de uma maneira geral, mas em especial por diretores latino-americanos atuando nos Estados Unidos. O mexicano Alejandro González Iñárritu o usou em 21 Gramas, de 2003, e em Babel, de 2006, ambos com roteiro do também mexicano Guillermo Arriaga. Este, por sua vez, escreveu e dirigiu Vidas Que Se Cruzam/The Burning Plain, de 2008, outro mosaico, como indica o título brasileiro.
Não é coincidência alguma que Alejandro González Iñárritu seja um dos produtores executivos de Destinos Cruzados – juntamente os também mexicanos Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro. Nem é coincidência que a inglesa criada na Austrália Naomi Watts, protagonista de 21 Gramas, seja uma das protagonistas deste novo filme de Rodrigo Garcia.
Um filme do cinemão comercial, e ele volta a fazer um filme autoral
Garcia é hoje um dos muitíssimos estrangeiros talentosos que já garantiram seu lugar na indústria cinematográfica americana – queira-se ou não, a mais importante do mundo. Trabalha no cinema e na TV; é também roteirista, tem experiência na produção, na direção de fotografia, foi operador de câmara. Tem dirigido episódios de importantes séries de TV – Os Sopranos, Six Feet Under, Amor Imenso, Em Terapia. Foi um dos criadores desta última – elogiada série sobre um psicólogo, alguns de seus clientes e sua própria terapeuta, com Gabriel Byrne e Dianne Wiest.
Em 2008, dirigiu um filme do grande cinemão comercial, mainstream, produzido pela TriStar, pertencente à Sony – Passageiros/Passengers, com Anne Hathaway, Patrick Wilson, David Morse, Dianne Wiest, sobre um desastre aéreo, os passageiros do vôo.
Depois dessa experiência de dirigir para um grande estúdio, com um roteiro escrito por outros, e entremeando com seus trabalhos na TV, voltou no ano seguinte ao esquema de filme mais pessoal, mais autoral, semelhante às experiências anteriores, em tramas que envolvem grande número de personagens. É dele mesmo o roteiro de Destinos Ligados. Segundo Garcia, foram necessários dez anos para concluir o trabalho.
Como só fazem os autores (e não meros diretores que agem de acordo com as ordens da produção), García é pessoal até na escolha dos atores com quem vai trabalhar. Neste filme está David Morse e Amy Brenneman, com quem havia trabalhado em filmes anteriores. Também participam dele, e não deve ser por coincidência, dois atores que estão na terceira temporada da série Dexter: Jimmy Smits e David Ramsey.
Uma quase fixação por personagens comuns – será que Freud explica?
Rodrigo Garcia admite abertamente que tem quase uma fixação por personagens comuns, ordinary people, gente como a gente. No making of que acompanha o filme no DVD, ele diz:
– “Gosto de histórias que acontecem em bairros muito comuns de classe média, em vidas muito comuns de pessoas da classe média. Tenho um desejo forte, teimoso, de contar uma história que acontece no lugar menos exótico que possa haver.”
Seria isso uma resposta, uma reação freudiana ao realismo fantástico que fez do pai um dos autores mais reconhecidos e admirados do século XX?
Sei lá. E não interessa. Sei é que, nisso, o cineasta e eu temos algo em comum. Nestas anotações aqui já escrevi umas 200 vezes sobre minha admiração por filmes que tratam de gente como a gente, e não de super-heróis, ou de bilionários, ou de miseráveis absolutos, ou de criminosos, assassinos seriais. Tudo bem, todo respeito às minorias – mas do jeito que o cinema anda, parece que gente normal é minoria da minoria.
Tá legal – mas e o filme propriamente dito?
(A demora em falar especificamente do filme me fez lembrar de duas historinhas de redação. Mas historinhas de redação não são para agora, são para o 50 Anos de Textos.)
Agora, finalmente, o filme
O filme propriamente dito tem uma abertura brilhante, não menos que isso.
Em apenas três minutos, nos três minutos iniciais, após a apresentação do nome das companhias produtoras, sem menção ao nome de diretor, roteirista ou atores, sem que sequer apareça o título do filme, vemos todo o desenrolar de uma vida. Em três minutos, o diretor e roteirista nos dá o tom do filme.
Revi, e anotei. São exatos 12 planos, 12 tomadas, ao som de uma música suave, minimalista (de Edward Shearmur, bom compositor), como as que Gustavo Santaolalla compôs para filmes de Alejandro González Iñarritu:
1 – Dois adolescentes se beijam;
2 – A garotinha tira a camisa;
3 – O rosto da garotinha;
4 – Uma casa para adolescentes grávidas; vemos várias delas;
5 – A garotinha grávida, em contre-plongée;
6 – Ela deitada, na hora do parto;
7 – Ela com a dor do parto;
8 – Um bebê recém, mas muito recém-nascido;
9 – Close-up do rosto da garotinha após o parto;
10 – Pézinhos do bebê; fade out; alguns segundos com a tela preta;
11 – Uma mulher madura acorda na sua cama, sobressaltada;
12 – Ela se levanta, anda pelo corredor, entra no quarto onde a mãe bem idosa dorme, deita-se na cama ao lado da mãe.
Karen, Alexandra, Lucy
A garotinha que engravidou aos 14 anos e agora vemos 37 anos depois, portanto aos 51 anos, chama-se Karen, o papel de Annette Benning (na foto acima). A mãe, de quem agora ela cuida na velhice, Nora (Eileen Ryan), obrigou-a a dar a filhinha recém-nascida para adoção.
Em seguida conheceremos Elizabeth (Naomi Watts), 37 anos incompletos, criada por pais adotivos. Advogada de currículo impressionante – apesar de não ter parado muito tempo em um único emprego, tendo passado por quatro escritórios de advocacia em três cidades diferentes nos últimos dez anos –, Elizabeth está sendo entrevistada por Paul (Samuel L. Jackson, com Naomi na foto), o dono de um grande e importante escritório de Los Angeles.
E conheceremos também o jovem casal Lucy (Kerry Washington) e Joseph (David Ramsey, os dois na foto abaixo). Lucy é infértil, e quer adotar uma criança. Suas tentativas são feitas na instituição dirigida por uma freira, a irmã Joanne (Cherry Jones). A irmã Joanne vai apresentar a Lucy e Joseph uma jovem grávida que já recusou vários casais pretendentes a adotar o filho que ela carrega na barriga. A garota, Ray (Shareeka Epps), é uma absoluta pentelha, uma chata de galocha.
O espectador não precisa ser useiro e vezeiro em filmes de Alejandro González Iñarritu e Guillermo Arriaga ou do próprio Rodrigo Garcia para saber que foi exatamente naquela mesma instituição agora dirigida pela irmã Joanne que Karen, 37 anos antes, havia dado à luz a garota que viria a ser chamada por seus pais adotivos de Elizabeth, hoje uma advogada de currículo impressionante.
Karen, Alexandra, Lucy, pessoas complicadas, problemáticas – chatas
Karen, a que não pôde criar a própria filha e agora cuida da mãe idosa e doente. Elizabeth, a advogada que jamais conheceu sua mãe biológica. Lucy, a que não pode ter filhos e quer adotar um. A história vai girar basicamente em torno dessas três mulheres.
Rodrigo Garcia diz que gosta de personagens comuns, gente comum da classe média, e isso é muito bom, acho eu. A questão é que ele, assim como seus pares González Iñárritu e Arriaga, tem uma especial paixão por pessoas complicadas, complexas, problemáticas até bem perto do limite de problemas psiquiátricos graves. Pessoas chatas.
Algum tempo atrás, uma leitora atenta que me dava a honra de enviar comentários sobre minhas anotações mandou um ótimo sobre o filme Questão de Vidas. A leitora atenta – Jussara Ormond – acabaria, com o tempo, virando minha amiga; nos correspondemos bastante, falamos de nossas coisas pessoais, ficamos nos conhecendo pessoalmente. Mas o fato é que Jussara definiu as coisas maravilhosamente no seu comentário à minha anotação sobre Questão de Vidas. Sua observação vale perfeitamente também para este Destinos Ligados:
“Será que existe alguém que goste mais de pessoas cheias de dramas e conflitos do que o Rodrigo García e o Iñárritu? Aqui o último foi produtor executivo do filme, o que acho que explica boa parte dos dramaços (embora tenha sido escrito pelo García, acho que o Iñárritu deu uma força pra ele pesar a mão em algumas histórias, rs). Do meio pro final ficou muito deprê. É o segundo filme do Rodrigo García a que assisto e termino meio deprimida, cruzes! Mas gostei mais deste do que do “Things You Can Tell Just by Looking at Her”. No mais, concordo com tudo o que você disse e tiro o chapéu pros planos-seqüências também. Como foi ele quem dirigiu a série In Treatment, poderia chamar o analista Paul e fazer uma terapia em grupo com esse povo, rs. Ô gente mal resolvida!”
Ninguém chamaria um desses personagens para um chopinho
A observação de Jussara é justa como uma luva, justa como as roupas de algumas mulheres, justa como Deus. Eu não conseguiria sintetizar o que ela resumiu tão bem.
Karen, Elizabeth e Lucy são pessoas complicadas, problemáticas até pertinho da loucura – e são pessoas danadas de chatas. Ninguém, em sã consciência, chamaria qualquer uma delas para tomar um chopinho numa tarde especialmente agradável.
Todas as três deveriam fazer terapia, pelo menos três sessões semanais, durante uns cinco anos.
Mas desta vez Rodrigo García estava um pouco mais otimista com a vida. Embora aos trancos e barrancos, embora apanhando muito (e até batendo e provocando infelicidade nas outras pessoas, no caso específico de Elizabeth), todas as três acabam melhorando um pouco, aprendendo algumas lições – verdade que, pelo menos em um caso, tarde demais.
E as três atrizes que dão vida a essas mulheres problemáticas e chatas estão maravilhosas. Os desempenhos de Annette Benning e Naomi Watts são excepcionais; todo o bom elenco está ótimo – García é um grande diretor de atores.
É um belo filme. Se descontarmos o fato de que o bebê da pentelha da garota Ray nasce após uns 13 ou 14 meses de gestação, é uma bela história.
Mary, por exemplo, não conseguiu descontar esse erro tão bobo, tão primário, tão comprometedor. Como deixaram passar uma bobagem dessas?
Um mundo em que a cor da pele não importa, não faz diferença
Destinos Ligados tem no entanto diversas qualidades – e há uma delas que é necessário realçar. Abençoadamente, este é mais um filme que mostra pessoas de pele clara e pessoas de pele escura sem que, em momento algum, a cor da pele tenha qualquer importância. A cor da pele é mencionada uma única vez, en passant. Como O Casamento de Rachel/Rachel Getting Married, de Jonathan Demme, por exemplo, Destinos Ligados mostra um mundo em que a cor da pele não tem importância, não faz diferença. Mostra que pode haver – e já há – um mundo assim. Acho isso uma coisa absolutamente saudável, admirável, importante: filmes que demonstrem que essa é uma realidade possível, que na verdade já existe – embora haja tanto racismo ainda, infelizmente.
Não é como deveria ser – e dá no que dá
Ao fim e ao cabo, depois de apresentar tantos problemas, tantos temas sérios, importantes, pertinentes, acho que Rodrigo García deixa que cada espectador conclua o que quiser.
Para mim, especificamente, o filme reforça opiniões que tenho desde praticamente sempre. Que a gravidez na adolescência deveria ser evitada de todas as maneiras – e há tantas maneiras, afinal. Basta um pouco de educação, de informação. Que só deveriam ter filhos pessoas absolutamente bem preparadas para essa tarefa pesada, gigantesca, hercúlea, ciclópica. Que a decisão de adotar um filho é tão difícil, problemática, exigindo imensas, cavalares doses de responsabilidade, de preparo para o possível enfrentamento de muitos dramas, tragédias, quanto a decisão de ter biologicamente um filho. E, sim: que toda mulher que, por qualquer motivo, enfrente uma gravidez não planejada, não desejada, não querida, deveria ter todo o direito de interrompê-la, sem que pessoa ou instituição alguma – pais, sogros, Estado, igreja, sociedade – tivesse nada a ver com isso.
Ou seja: ter filho não é coisa para amador. Para ter direito a ter filho – biológico, ou adotado –, as pessoas deveriam ter que se submeter a vestibulares rigorosos, exigentíssimos concursos de provas e títulos.
Mas não foi assim que Deus, ou a natureza, ou o destino, quiseram. Dá no que dá.
Destinos Ligados/Mother and Child
De Rodrigo García, EUA, 2009
Com Annette Bening (Karen), Eileen Ryan (Nora), Naomi Watts (Elizabeth), Kerry Washington (Lucy), Samuel L. Jackson (Paul), Cherry Jones (Irmã Joanne), David Ramsey (Joseph), Jimmy Smits (Paco), Elpidia Carrillo (Sofia), Simone Lopez (Cristi), Amy Brenneman (Dra. Eleanor Stone), Carla Gallo (Tracy), Alexandria M. Salling (Karen aos 14 anos), Connor Kramme (Tom aos 14 anos), David Morse (Tom)
Argumento e roteiro Rodrigo García
Fotografia Xavier Pérez Grobet
Música Edward Shearmur
Montagem Steven Weisberg
Produção Everest Entertainment, Mockingbird Pictures. DVD PlayArte. Estreou em SP 13/8/2010
Cor, 125 min
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