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Anotação em 2010: O diretor francês Bertrand Tavernier foi aos Estados Unidos fazer este filme, um policial denso, de trama intrincada, um clima noir e um pezinho de leve no sobrenatural. A trajetória do próprio filme também é rica: foi distribuída no mercado americano uma versão completamente diferente da original.
A versão que saiu no Brasil em DVD, que eu vi, é, tudo indica, o original feito por Tavernier. A questão das duas versões será abordada mais adiante nesta anotação.
O diretor – ele próprio um apaixonado pelo cinema americano, autor de dois livros sobre o tema – foi mais especificamente à Louisiana, aquele lugar do Sul Profundo dos Estados Unidos onde há grande influência da antiga colonização francesa, diversas cidadezinhas e ruas e milhares de famílias têm nomes franceses, a música regional – o cajun – é diferente de tudo o que se toca no resto do país, e a maior cidade da área, Nova Orleans, berço do jazz, tem como uma das principais atrações o Bairro Francês.
Fala-se de Nova Orleans, no filme, logo depois que a cidade e toda a região foi tragicamente devastada pelo furacão Katrina, em 2005, mas a ação se passa numa pequena cidade chamada New Iberia, entre Nova Orleans e Lafayette, na região dos grandes pântanos cortados por bayous – correntes de água, trechos de rios ou pequenos lagos.
Uma região que exerce grande fascínio sobre o cinema
É uma região de paisagem forte, estranha, muito peculiar, onde a natureza não foi domada pelo homem; o que se vê lá hoje deve ser exatamente o que havia antes da chegada dos europeus, cinco séculos atrás; o fato de ter havido colonização francesa na região aumenta a aura de mistério, encantamento. Como é um lugar ermo, desolado, presta-se muito bem a quem está necessitando se desfazer de corpos, corpses, gente morta. Talvez também por isso, é uma região fácil de se associar a lendas, histórias de um passado muito antigo, e, por que não?, fantasmas. Por tudo isso, os pântanos do Sul da Louisiana, próximos à foz do Mississipi, exercem há muitas décadas um grande fascínio sobre o cinema.
Precisaria fazer uma pesquisinha para dar alguns exemplos, mas, sem pesquisa alguma, me lembro de Sem Perdão/No Mercy, de 1986, com Richard Gere e Kim Basinger. Gere faz o papel de um policial de Chicago que resolve ir à Louisiana atrás do homem que matou seu parceiro, mas seu superior o adverte: “Você não conhece Nova Orleans. As pessoas lá sequer falam como nós.” Acho essa frase de uma deliciosa simbologia sobre o etnocentrismo da sociedade americana: o que não está bem perto do umbigo deles é estranho, diferente, ameaçador.
Certo, mas e o filme que levou Bertrand Tavernier a atravessar o oceano e ir trabalhar naquela região estranha, esquisita, peculiar, onde, antes dele, já haviam passado gerações e gerações de outros franceses?
O corpo de uma jovem prostituta, horrivelmente dilacerado
Tommy Lee Jones, sempre bom, sempre competente, faz o papel de Dave Robicheaux (deve-se reparar no sobrenome francês), um veterano da guerra do Vietnã, atualmente detetive de polícia da região de New Iberia – perto de Nova Orleans, mas mais perto dos pântanos e bayous do interior da Louisiana do que do resto do mundo. Quando a ação começa, a polícia havia acabado de encontrar o corpo – horrorosamente dilacerado – de uma jovem de uns 19 anos, que sobrevivia da prostituição. Mais tarde surgirá, num bayou, outro corpo de jovem, também prostituída, também dilacerado pelo assassino.
A forma com que Dave Robicheaux – um ex-alcoólatra, de natureza violenta, mas abnegado, dedicado ao seu trabalho – caça o assassino é errática, como são de fato as investigações na vida real. Ele não segue uma linha reta; anda meio em círculos; é algo muito mais próximo do trabalho dos detetives das histórias de Dashiell Hammett e Raymond Chandler – e daí vem o tom noir do filme de Tavernier – do que da coisa cerebral e fria de um Sherlock Holmes, uma Jane Marple ou um Hercule Poirot.
Ao andar em círculos na sua investigação, Dave Robicheaux vai encontrar – e o espectador ficará conhecendo – diversos personagens da região e de fora dela, num grande emaranhado de relações. Há um tal de Baby Feet Balboni (boa interpretação do gordão John Goodman), o mafioso local contra quem nunca se colhem provas suficientes para botar na cadeia. No momento da ação, Balboni está co-produzindo um filme estrelado por um astro de projeção nacional, Elrod T. Sykes (Peter Sarsgaard), um bêbado, que está naquele fim de mundo acompanhado pela namorada, ela também uma atriz conhecida, Kelly Drummond (Kelly MacDonald).
Será o ator bêbado que descobrirá, durante as filmagens, um outro corpo, e levará o detetive Dave Robicheaux até lá – o de um negro que foi morto a tiros, acorrentado, muito provavelmente um preso fugitivo, assassinado uns 40 anos antes, e que a força do Katrina trouxe de volta à tona no pântano. Naquele exato lugar, 40 anos antes, o então jovem Dave Robicheaux havia presenciado um assassinato.
No pântano fantasmagórico, um general de 150 anos atrás
Como se a trama já não estivesse suficientemente complicada, o ator bêbado Sykes vai levar Robicheaux até um local no meio do pântano onde estão… o general John Bell Hood (Levon Helm), do exército confederado, e alguns de seus homens.
Epa! Péra lá – como assim? Um general do exército confederado? Mas não estamos no pós-Katrina, pós-2005? E os confederados não foram derrotados pelos ianques em 1865?
Pois é, pois é… Aquele Sul Profundo é assim, cheio de mistérios, de lendas, de fantasmas, de presenças que o nosso vão materialismo não nos permitiria ver sequer em sonhos, ou alucinações.
O fascinante é que os roteiristas Jerzy Kromolowski e Mary Olson-Kromolowski, que se basearam no livro de James Lee Burke, e o diretor Tavernier conseguem se sair bem de todo esse emaranhado de tramas e subtramas. O elenco, todo ele muito bom e bem dirigido, ajuda muito. O grande Tommy Lee Jones (segundo o AllMovie, ele também deu uns palpites no roteiro) é uma das forças que não permitem que a narrativa saia dos trilhos.
É um bom filme. Com seus fantasmas centenários e tudo o mais.
Produtores brigam com Tavernier, e criam outra versão do filme
Fui dar uma olhadinha na internet atrás de outras opiniões – e topei com um texto no site www.cineaste.com, assinado por um Chris Mosey, que é extremamente esclarecedor, revelador, importante. Em suma, é o seguinte: Tavernier e os produtores tiveram uma briga feia depois que o filme foi rodado, e há duas versões dele: uma européia, de 117 min, e outra americana, de 102 min. Mas as diferenças entre as duas são imensas – e não apenas porque a americana é bem menor. Para a versão americana, mexeu-se na obra, alterou-se a forma.
Vou traduzir o início do texto – depois dele, no site www.cineaste.com, segue-se uma longa entrevista do autor com Bertrand Tavernier
“In The Electric Mist é um filme de dupla personalidade. Pode muito bem se transformar num filme cult por essa mesma razão, examinado vários vezes para explicar as diferenças fundamentais entre as formas americana e européia de se fazer filmes. Naturalmente, ele pode também desaparecer nas suas próprias brumas. Só o tempo dirá.
“Feito nos Estados Unidos pelo premiado diretor francês Bertrand Tavernier, baseado em uma novela best-seller de James Lee Burke, com Tommy Lee Jones e John Goodman, ele certamente teria as condições de se transformar num sucesso de bilheteria e de crítica. Em vez disso, o filme existe em duas versões, nenhuma das quais até agora entusiasmou nem o público nem os críticos. Uma delas, de 117 minutos, foi mostrada no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro de 2009 antes de ser lançada nos cinemas europeus dois meses mais tarde. Ao mesmo tempo, a segunda versão – de 102 minutos, montada de forma diferente da versão européia, e contendo cenas diferentes – saiu diretamente em DVD nos Estados Unidos.
“A versão européia abre com uma bela jornada através de um bayou do Sul da Louisiana. A névoa do título cobre as árvores enquanto Tommy Lee Jones diz, com a voz em off: ‘Antigamente, as pessoas punham pedras sobre os túmulos de seus mortos para que suas almas não saíssem vagando e afligindo os vivos. Sempre pensei que isso fosse uma coisa de superstição de gente primitiva, mas eu estava para aprender que os mortos podem flutuar diante da nossa visão com a densidade e a luminosidade da névoa, e que sua vontade na Terra pode ser tão legítima e tenaz quanto a nossa’.
“O filme americano começa com Jones, que interpreta Dave Robicheaux, um tira de passado violento no Vietnã, sentado num bar ruminando sobre seu alcoolismo. Ele se expressa de uma maneira mais prosaica. Às vezes ele fica a fim de tomar uma, ele diz, mas sempre consegue resistir à tentação.
“Ao longo de todas as duas versões de In the Electric Mist, há diferenças, algumas sutis, algumas importantes, culminando com um final em que a versão européia deixa muito – talvez demais – à imaginação do espectador, enquanto a versão americana explica exatamente o que aconteceu.
“Essa situação bizarra é o resultado de uma disputa entre Tavernier e o seu produtor americano, Michael Fitzgerald, e o montador, Roberto Silvi, a respeito de como deveria ser montado o filme. Quando tornou-se claro que suas discordâncias não poderiam ser resolvidas, a única solução foi lançar duas versões do mesmo filme, uma de cada lado do Atlântico. Fitzgerald, chefe da Ithaca Pictures, supervisiou o trabalho de montagem da versão mais curta, de ritmo mais acelerado, para o mercado americano. Tavernier, com a ajuda do montador Thierry Derocles, manteve o filme no seu tamanho original, deixando cenas que, embora supérfluas quanto à trama, eram necessárias, segundo ele, para explicar a complexa personalidade de Robicheaux.
“Escrevendo na revista Variety, Leslie Felperin comparou assim as duas versões: ‘A versão americana conta tanto do passado da história que fios ficam soltos para todos os lados. A versão preferida por Tavernier é mais coerente e mais provocante, mas não chega direito ao ponto. Ambas as versões, de qualquer forma, são essencialmente enfraquecidas pelo fato de que a revelação do assassino é desapontadora. Pelo menos a versão de Tavernier evita a pequena reviravolta da estranha última tomada que transforma a versão americana num filme feito para a TV.’
“Onde fica Tavernier nisso tudo? Acabou o seu longo caso de amor com a América e seu cinema? Ele visitou os EUA em diversas ocasiões e é o autor de dois livros, o monumental 50 Ans de Cinéma Américain e uma coleção de entrevistas com grandes diretores americanos, Amis Américains: Entretiens avec les Grands Auteurs d’Hollywood (que, aliás, teve uma nova edição, revista e ampliada, lançada no final de 2008, na França).
“Nesta entrevista, na época da exibição da sua versão de In the Electric Mist no ciclo Cinema e Utopia, na antiga cidade de Avignon, o diretor se recusou a comentar sobre sua briga com Fitzgerald, que levou mais de um ano para ser solucionada, após as filmagens, ocorridas na primavera de 2007.”
E, para os interessados, segue-se a entrevista de Tavernier a Chris Mosey, no endereço http://www.cineaste.com/articles/seeing-double-in-the-electric-mist-an-interview-with-bertrand-tavernier. (Na foto, a sempre boa Mary Steenburburgen, que faz a mulher do policial Robicheaux.)
Não é um filme fácil – mas é um bom filme
Pois bem. Eu, aqui no meu cantinho – que respeito Tavernier desde que vi A Vida e Nada Mais/La Vie et Rien d’Autre, de 1989, um poderoso drama passado na Primeira Guerra Mundial – , tenho que agradecer à Califórnia Filmes por ter lançado no Brasil a versão original do filme, e não a americana.
Não é um filme fácil. Como eu disse lá em cima, antes de ficar sabendo da coisa das duas versões diferentes, é um filme denso, de trama intrincada, um clima noir e um pezinho de leve no sobrenatural. Mas é um bom filme, e, depois de saber da disputa entre Tavernier e o produtor americano, mantenho minha opinião de que ele e seus roteiristas conseguiram se sair bem de todo esse emaranhado de tramas e subtramas.
Na verdade, dá vontade de ver também a versão americana, para poder fazer as comparações. Como disse esse Chris Mosey – sujeito para a gente seguir –, é matéria-prima rica para a eterna discussão sobre as diferenças e as semelhanças entre o cinema que se faz nos EUA e o cinema que se faz na Europa.
Às Margens de um Crime/In the Electric Mist
De Bertrand Tavernier, EUA-França, 2009
Com Tommy Lee Jones (Dave Robicheaux), John Goodman (“Baby Feet” Balboni), Peter Sarsgaard (Elrod T. Sykes), Mary Steenburgen (Bootsie), Ned Beatty (Twinky Lemoyne), Kelly MacDonald (Kelly Drummond), Buddy Guy (Sam “Hogman” Patin), Levon Helm (General John Bell Hood), Justina Machado (Rosie Gomez)
Música Marco Beltrami
Roteiro Jerzy Kromolowski e Mary Olson-Kromolowski
Baseado no livro In the Electric Mist with Confederate Dead, de James Lee Burke
Fotografia Bruno de Keyzer
Produção Ithaca Pictures, Little Bear Productions, TF1 International
Cor, 117 min
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Título na França: Dans la Brume Électrique
Tambem assisti esse filme do tavenier.muito bom.realmente ele consegue amarrar muito bem as tramas e subtramas do roteiro. De fato a história e recorrente ao passado dos personagens principais e ao que aconteceu na região durante todo o tempo, desde a guerra civil. As caracteristicas do chamado sul profundo estão todas ali.Mas, sempre tem um mas, o final poderia ser menos “decepcionante”.
Este é mais um que naufragou no Atlântico; há muitos a que isto acontece.
No Atlântico ou noutro oceano qualquer, ou que se perdem em terra, da Espanha para aqui… e… pronto!