3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Tem muito talento esse Kevin Macdonald, jovem diretor escocês nascido em Glasgow em 1967. Comprova isso mais uma vez com este filme de 2009, um belo thriller passado na capital do Império, que mistura política, jornalismo, crimes, corrupção e crítica ao poder gigantesco das grandes corporações.
Para lembrar: Macdonald começou como documentarista. Em 1999, com apenas 32 anos, ganhou o Oscar de melhor documentário longa-metragem por One Day in September, sobre o absurdo atentado cometido por terroristas palestinos contra atletas israelenses na Olimpíada de Munique em setembro de 1972. (Steven Spielberg contaria a implacável perseguição que o Mossad, o serviço secreto israelense, promovou contra todos os terroristas envolvidos no atentado, no ótimo Munique, de 2005.)
Em 2006, Macdonald dirigiu O Último Rei da Escócia, ótimo filme que relata as relações entre um jovem médico escocês e o ditador de Uganda, Idi Amin Dada, interpretado, com brilhantismo, por Forest Whitaker, que ganhou o Oscar pelo papel. Em 2007, demonstrando mais uma vez que é um animal político, um artista preocupado com os fatos políticos e históricos, fez My Enemy’s Enemy, um documentário longa-metragem sobre Klaus Barbie, o criminoso nazista da Gestapo que passou à História como o Açougueiro de Lyon. (Barbie exilou-se na Bolívia, onde foi preso depois que o jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, do Jornal da Tarde e do Estadão, o localizou e entrevistou, no início dos anos 70, quando eu começava no jornalismo no JT). Barbie é citado várias vezes em outro importante documentário, O Advogado do Terror, de Barbet Schroeder.)
E, neste ano de 2009, Macdonald dirigiu, nos Estados Unidos – o filme foi rodado em Washington e em estúdios em Hollywood – este Intrigas de Estado, com um elenco de grande nomes e diversos países: o neo-zelandês Russell Crowe, a magnífica inglesa Helen Mirren, a canadense Rachel McAdams e os americanos Ben Affleck, Robin Wright Penn, Jeff Daniels e Jason Bateman.
Uma bela abertura, de tirar o fôlego
O filme abre com uma tomada aérea, noturna, de Washington, D.C.; em seguida, vemos um jovem negro correndo como um doido – atravessa uma rua, atropela um casal de velhos, um carro, escapa de outro, derruba uma moto, entra numa loja, atravessa-a, sai pelas portas do fundo, foge por várias quadras, passa por uma praça gramada e íngrime, cai, se levanta, até se esconder, exausto, entre grandes latas de lixo em um beco mal iluminado. Não adiantou nada a fuga: depois de alguns segundos em que tenta recuperar o fôlego, o jovem é assassinado por dois tiros certeiros, dados por uma arma com silenciador. O assassino – obviamente um profissional – ainda ali, de pé, observando se a vítima de fato morreu, quando passa pelo lugar um rapaz numa bicicleta. Uma potencial testemunha. O assassino – o espectador vê bem o rosto dele – dá dois tiros no rapaz, e foge da cena dos crimes. A câmara mostra que o rapaz da bicicleta ainda respira.
Belo lead. Bela abertura. De tirar o fôlego. Os outros espectadores, não sei – eu dei rewind para ver de novo a bela seqüência.
Somos então apresentados ao protoganista – um Russell Crowe, esse ator de tantas caras e tantos sotaques tão diferentes um do outro, aqui com um cabelão grande, aspecto todo desmazelado, largadão, dirigindo seu carro velho e bagunçado, cheio de trastes no banco traseiro, até o local do crime. Com algumas poucas tomadas, Macdonald e Crowe traçam o perfil do personagem, o jornalista Cal McAffrey, repórter do Washington Globe. Washington Globe, sabe qualquer espectador com alguma informação, não existe, é um nome inventado. Mas só o nome do jornal é ficção, porque o repórter Cal McAffrey parece de carne e osso, tão real quanto qualquer repórter de verdade.
Um personagem bem construído, uma redação de jornal perfeita
O personagem é muito bem construído. Vemos rapidamente que ele é um bom repórter, experiente, sério, seguro, cheio de fontes na polícia. É daquele tipo raro de bom repórter que permanece trabalhando como repórter mesmo depois de muitos anos, em vez de passar para funções internas mais bem pagas. Gosta do que faz, e faz bem seu serviço. Depois conheceremos a redação do Washington Globe, e a redação do fictício Washington Globe cheira a redação de verdade, tem a cara de redação de verdade. (É um trabalho de primeira qualidade a construção daquela redação pelos diretor de arte e sua equipe, figurinistas, toda a equipe técnica. Um brilho.)
Na redação, conheceremos a editora-chefe, Cameron Lynne (o papel de Helen Mirren), boa profissional, experiente, madura, dedicada à atividade-fim mas, como toda editora-chefe, às voltas também com outros problemas, a queda de circulação do jornal, a pressão dos novos donos por vendagem, corte de despesas, procura de maior número de leitores. E conheceremos também a jovem Della Frye (Rachel McAdams – boa atriz), da parte online do jornal, moderna, ainda inexperiente, verde, um tanto ingênua, mas promissora. Ela e o veterano repórter Cal vão a princípio se estranhar, é óbvio.
(Eu não me lembrava de Rachel McAdams; a sempre atenta Jussara Ormond mandou comentário dizendo que ela está em Diário de uma Paixão/The Notebook; e está também em Tudo em Família/The Family Stone.)
E aí, também nos 15 minutos iniciais deste filme de 127 minutos que passam muito rapidamente, veremos uma moça que sai do Capitol Hill, a House of Representatives, a Câmara dos Deputados deles, e vai para uma estação de metrô. A seqüência é esplêndida: o diretor escolheu mostrar em elipse o que vai acontecer, ou seja, não vai mostrar, ou vai mostrar sem de fato mostrar o que vai acontecer. Vemos a moça chegar à plataforma, ficar pronta para embarcar no trem que está chegando – e não vemos mais nada. Mas sabemos que a moça morrerá ali, naquele momento.
E em seguida – ainda não se passaram 15 minutos de filme – somos apresentados ao deputado Stephen Collins (o papel de Ben Affleck). De seus assessores, Stephen recebe a notícia de que Sonia Baker – esse era o nome da moça no metrô – morreu. Stephen está indo, naquele momento, para uma audiência de uma comissão da Câmara que investiga os contratos bilionários de uma empresa de segurança, praticamente um exército privado, que também tem bilionários contratos com o governo federal, com o governo de Washington. Stephen faz parte da comissão e é o deputado mais empenhado em fuçar e descobrir as mazelas da empresa. Quando ele inicia sua participação na sessão daquele dia, que está sendo transmitida ao vivo pela TV, informa sobre a morte de sua funcionária e colaborada Sonia Baker – e, ao vivo e em cores, começa a chorar.
A jovem, verdinha mas online Della Frye, assim como dezenas de outros blogueiros e repórteres de TV, vai rapidamente divulgar que o nobre congressista da Pensilvânia, casado, teve um caso com sua assessora Sonia Baker, morta naquele mesmo dia.
Uma história rica, complexa, com uma narrativa às claras
Ando cada vez mais prolixo, e lá se foram vários parágrafos para falar dos primeiros minutos de ação. Sim, são muitos fatos que o filme nos apresenta logo em seu início. São várias histórias – mas logo depois veremos que todas estão conectadas, umbilicalmente ligadas. O desleixado e competente repórter Cal foi colega de faculdade e grande amigo do agora deputado Stephen Collins; foi também grande amigo, e mais que isso, de Anne Collins (a sempre bela e competente Robin Wright Penn), a mulher do deputado.
A partir daí, desses primeiros 15, 20 minutos de filme, será apresentada aos espectadores uma trama complexa envolvendo todas essas histórias – e haverá até mesmo uma até desnecessária mas grande e surpreendente reviravolta no final.
Os thrillers do cinemão americano têm apresentado cada vez mais tramas complexas, cheias de subtramas, cruzamentos de subtramas. Um filme que por acaso vi no mesmo dia, Trama Internacional/The International, do alemão Tom Tykwer, também feito em 2009, é um exemplo perfeito disso. Muitos desses filmes parecem ser feitos seguindo aquela proposta que chamo de Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar? Não é, absolutamente, o caso de Intrigas de Estado. A trama é complexa, cheia de elementos, sim – mas, em vez de procurar complicar para parecer mais inteligente, ou mais profundo, o diretor Macdonald faz uma narrativa às claras, lógica, inteligente.
Na entrevista no making of presente no DVD, Macdonald fala o que já havia ficado evidente durante o filme: ele quis fazer uma homenagem aos filmes sobre política e jornalismo, dos quais o mais popular é Todos os Homens do Presidente, de Alan Pakula, de 1976, reconstituindo o trabalho dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, sobre o escândalo de Watergate, que resultou na única renúncia de um presidente dos Estados Unidos em 200 anos de história. Para tornar mais explícita essa homenagem, o filme incluiu cenas no complexo de prédios Watergate, e também uma ótima seqüência numa grande garagem – foi numa garagem que Woodward e Bernstein obtiverem informações de uma fonte identificada como Deep Throat que os levaram a, na investigação de quem foram os mandantes do assalto ao comitê democrata no edifício Watergate, ir chegando cada vez mais perto do presidente Richard Nixon.
Os grandes jornais são tão necessários quanto o ar que respiramos
Pelos créditos finais, e pelas entrevistas no making of, ficamos sabendo que o Washington Post auxiliou nas filmagens. Os atores tiveram acesso à redação do Post, para observar o clima da redação, a forma como trabalham os jornalistas, como eles se relacionam, como é seu dia-a-dia. A seqüência final do filme, em que uma edição do fictício Washington Globe está sendo rodada, foi filmada na gráfica do Post, na vizinha Virgínia.
É uma belíssima, comovente, linda homenagem à imprensa, este filme.
E é fascinante – e triste, extremamente triste, e trágico – que essa homenagem venha num momento em que os grandes jornais estão ameaçados de extinção, assim como os mico-leões dourados, as tartarugas marinhas, a floresta amazônica, as geleiras antes eternas, o Ártico, a Antártida, o clima e o próprio planeta. Ameaçados de ter o mesmo destino que os dinossauros, por seu tamanho e seus custos dinossáuricos – mas ameaçados também por esses ditadorezinhos ou candidatos a ditadorezinhos de merda, de Chávez aos Kirchners, de Morales a Ahmadinejad, de Corrêa a Kim Jong-il, por esse esquerdismo infantilóide, debilóide, que vê na “grande imprensa” o retrato de todos os males do mundo, quando na verdade a imprensa é o maior aliado, senão o único, do povo, das pessoas comuns, gente como a gente, dos seus direitos.
Este filme mostra como os grandes jornais são tão necessários quanto “el aire que exigimos trece vezes por minuto”, como diz a canção do comunista espanhol.
Mil vezes ter que conviver com o reacionarismo idiota, cego e pretensioso de uma Veja e com o poder acachapante de uma Rede Globo do que viver num mundo de Pravdas e Granmas.
Intrigas de Estado/State of Play
De Kevin Macdonald, EUA-Inglaterra-França, 2009
Com Russell Crowe, Rachel McAdams, Ben Affleck, Helen Mirren, Robin Wright Penn, Jeff Daniels, Jason Bateman, Michael Barresse, Maria Thayer, Harry Lennix
Roteiro Matthew Michael Carnahan, Tony Gilroy e Billy Ray
Baseado em uma série da BBC
Fotografia Rodrigo Prieto
Música Alex Heffes
Produção Universal Pictures, Andell Entertainment, Relativity Midia, Studio Canal
Cor, 127 min
***1/2
Título em Portugal: Ligações Perigosas
Achei a direção ótima, mas o roteiro é meio confuso. Muitos nomes, organizações e tal. Sempre fico perdida em filmes assim pq tenho preguiça de gravar os nomes, rs. Tudo bem que eu estava pingando de sono quando assisti e isso tb atrapalha. É um bom filme, gostei, e tb achei desnecessária a reviravolta no final. A parte do suspense me fez suar frio, que coisa! Não gosto dessa história de jornalistas que dão uma de policial, acho loucura arriscar a vida. Mas achei muito legal a parte de mostrar como é uma redação ( que segundo vc disse, muito próxima à realidade). Eu fico pasma em ver como os jornalistas conseguem trabalhar daquele jeito, apenas com divisórias, em meio a tantos papéis , bagunça, falação, com os chefões pegando no pé, fazendo pressão (achei que a Helen Mirren está bem, mas um tom acima). O Ben Affleck achei fraquinho, como sempre, e o Russel Crowe, pra mim, foi o que esteve melhor.
Tb achei muito bonita a homenagem à imprensa e por que não dizer à liberdade de expressão. E concordo plenamente que “os grandes jornais são tão necessários quanto o ar que respiramos”.
Isto posto, preciso informar que vc já conhecia sim a Rachel McAdams, rs. Ela fez Diário de uma Paixão e tem até texto sobre ele aqui no site (fui lá conferir e estranhamente o nome dela não aparece na sua ficha). Eu a acho apenas mediana, mas fiquei chocada ao saber que ela tem quase a minha idade e cara de 25. Deve ser o cabelo curto. Vou ali no salão cortar meu cabelo e já volto :D.
Ah, eu tb voltei o filme pra poder rever a sequência inicial, rs. E tb achei mto bom o cara que fez o *ex-militar. Tudo bem que ele quase não teve falas, mas só o jeitão de mau, fanático e psicopata me causou arrepios.
*não tenho certeza se era ex, mas ele já não estava mais na ativa, estava?
Jussara, você é mais atenta que eu. De fato, não me lembrava da Rachel McAdams; depois que li seu comentário, alterei o texto. Ah, sim, e acrescentei o nome dela na ficha técnica do Diário de uma Paixão.
Obrigado.
E a sua frase “Vou ali no salão cortar meu cabelo e já volto” é um brilho absoluto.
Uau, nunca imaginei que a minha frase simples e despojada fosse receber um elogio seu. E elogios vindos de Sérgio Vaz não são de se recusar. Então , só posso agradecer embevecida e envaidecida, e claro, um pouco corada. rsrs
Vi ontem este filme e gostei mesmo muito, fiquei babado.
A reviravolta no final é que me deixou uma má impressão, é mesmo desnessária e estraga um tanto um filme que me empolgou.
Caro Sergio, já perdi a conta ao número de filmes que vi graças a estas suas crónicas e que de outro modo nunca veria.
E se não vi mais é porque não há o DVD para alugar na minha locadora, ou, ainda pior, o filme nem chegou a Portugal.
Vi e gostei de quase tudo o que vi.
Este quase é muito pequenino – apenas um filme!
Parece que, contra todos, gostei da reviravolta no final. Achei que ‘fechou’ a sequência dando um final mais que surpreendente. Acho que é isso que espero de filmes deste gênero… sem contar que Russell Crowe ‘coube’ perfeitamente no papel. Até a próxima!