2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: No pequeno espaço de alguns meses, entre 2007 e 2008, o cinemão americano lançou duas produções sobre o fim do mundo, o fim dos tempos, o Apocalipse, o Doomsday, o Armageddeon, a chegada do Juízo Final.
Não por coincidência, um deles se passa inteiramente em Nova York, e o outro começa em Nova York: afinal, não há melhor lugar para se mostrar o fim dos tempos que a capital do mundo. Talvez por coincidência, o mesmo compositor, James Newton Howard, tenha sido escolhido para fazer a trilha sonora de ambos. Mas seguramente não por coincidência os dois filmes, ao fim e ao cabo, têm a mesma moral, a mesma mensagem: estamos mexendo perigosamente com tudo neste planeta, e não temos a menor idéia do que possa acontecer com ele por causa disso; é melhor termos cuidado, porque o fim pode estar muito mais próximo do que imaginamos.
É claro que Eu Sou A Lenda/I Am Legend e O Fim dos Tempos/The Happening não são os primeiros a falar do fim do mundo, nem serão os últimos. Ao contrário: este é um tema recorrente na ficção científica, e esteve especialmente na moda durante a guerra fria, nos anos 50 e 60, diante do risco que muitas vezes pareceu iminente de um confronto nuclear que destruiria a vida no planeta. De qualquer forma, é interessante ver as coincidências e as disparidades entre estes dois filmes feitos na mesma época, ambos parcialmente bancados e distribuídos por dois dos maiores estúdios do cinemão americano (Warner Bros. em Eu Sou a Lenda e 20th Century Fox em O Fim dos Tempos).
A primeira grande coincidência é justamente aquela apontada aí em cima: nestes tempos de guerras locais, em que o perigo de uma guerra nuclear total parece mais distante, os dois filmes apontam como causa do fim do mundo as ações da humanidade sobre o meio ambiente, os estudos genéticos, o próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
(Não que isso seja novidade, também. O Dia Depois de Amanhã/The Day After Tomorrow, de Roland Emmerich, de 2004, por exemplo, falava especificamente de destruição do ambiente, protocolo de Kyoto, mudanças climáticas.)
A maior diferença entre estes dois filmes, acho, é a criação de cada uma das duas histórias. O Fim dos Tempos é mais um filme com argumento, roteiro e direção de uma pessoa só, M. Night Shyamalan, o jovem de origem indiana radicado na Filadélfia que assombrou o mundo com O Sexto Sentido/The Sixth Sense, de 1999, foi incensado imediatamente como gênio e chegou a ser comparado a Hitchcock – e depois, apesar de ter feito alguns bons filmes, nunca mais conseguiu nem a qualidade nem a bilheteria de seu filme sensação.
No entanto, teimoso como uma mula, ou de ego inflado como o do mestre com quem foi comparado, seja lá por que for, M. Night Shyamalan prossegue fazendo seus filmes baseados em histórias criadas por ele mesmo, roteirizadas por ele mesmo, dirigidas por ele mesmo e às vezes até interpretadas por ele mesmo. Não divide responsabilidades; assume todas, sozinho, mesmo enfrentando críticas cada vez mais severas, violentas; o que antes era expectativa e boa vontade da mídia para com ele virou desprezo, antipatia. Outro dia o iMDB tinha uma enquete que pedia aos leitores para eleger o pior de todos os filmes do diretor que menos de uma década atrás era considerado genial.
Eu Sou a Lenda, ao contrário, é produto de várias cabeças juntas. A origem do filme é um livro de Richard Matheson, com este mesmo título, apenas sem o artigo, I Am Legend. O livro virou o filme The Last Man on Earth em 1964, dirigido por um tal de Ubaldo Ragona e estrelado por Vincent Price. Em 1967 virou um curta-metragem espanhol com o título de Soy Leyenda. Aí a Warner comprou os direitos de filmagem do livro, e, em 1971, lançou The Omega Man, dirigido por Boris Segal, com Charlton Heston no papel que tinha sido de Vincent Price e agora, no novo milênio, seria retomado por Will Smith.
Este Eu Sou a Lenda versão 2007 tem roteiro de Mark Protosevich e Akiva Goldsman, mas faz questão de creditar que eles se basearam no roteiro de John William Corrington e Joyce Hooper Corrington – os autores do roteiro do filme de 1971. Temos então cinco escritores envolvidos na história e na narrativa da aventura vivida por Will Smith – enquanto M. Night Shyamalan faz tudo sozinho.
Um pouco de cada história – só um pouquinho, só o iniciozinho de cada narrativa, para não atrapalhar em nada quem ainda não viu os filmes.
O Fim dos Tempos abre com os créditos iniciais sem ação já ocorrendo paralelamente; durante a apresentação, o que vemos são nuvens no céu azul – magníficas tomadas de nuvens se mexendo rapidamente. Terminados os créditos, estamos no Central Park, no coração de Manhattan; duas moças conversam em um banco, pessoas andam, passeiam. Tomadas curtas, mas não frenéticas. De repente, algumas pessoas param, ficam imóveis; uma das moças percebe que há algo estranho; a outra está imóvel. Close lateral sobre esta moça; lentamente, ela tira um objeto pontiagudo de metal com que prende o cabelo em coque e o enfia na garganta. Corte para uma rua a poucas quadras dali, operários de uma construção na calçada. Um operário cai de algum andar. Cai outro, e outro. Tomada de cima para baixo, contre-plongée, a música subindo muito: diversos operários estão se jogando dos andares altos para o chão.
Corta, e estamos (um letreiro informa hora e local) em um ginásio da Filadélfia, durante uma aula de ciências, em que um professor interessado, interessante, que gosta do que faz (Mark Wahlberg), pergunta aos alunos se eles ouviram falar de um artigo do New York Times sobre o desaparecimento de abelhas em diversos locais dos Estados Unidos. Convida os alunos a dizerem o que poderia ser o motivo desse fenômeno. Alguém fala doença, e ele diz que sim, pode ser uma infecção viral. Outro aluno cita a poluição, e ele diz que pode ser. Outro fala no aquecimento global, e ele diz que talvez seja. Um quarto aluno diz: “Um ato da natureza que nunca entenderemos completamente” – e o professor elogia a resposta. “Sim”, diz ele. “A ciência apresenta razões para colocarmos nos livros, mas, no final, tudo é teoria. Deixamos de reconhecer que há forças atuando além da nossa capacidade de compreensão.”
Em seguida, o professor é chamado para uma reunião de todos os docentes com o diretor; os alunos serão dispensados. O diretor informa aos professores: “Parece que há um evento acontecendo. O Central Park acaba de ser atingido pelo que parecer ser um ataque terrorista. É alguma toxina transmitida pelo ar”.
“There appears to be an event happening.” Há que se tirar o chapéu para esse M. Night Shyamalan: a frase é genial. É escorregadia como peixe ensaboado, a perfeita novilíngua que George Orwell previa. Não se sabe absolutamente nada – mas já se fala que pode ser um ataque terrorista, a guerra química…
Estamos aqui com não mais de dez minutos de filme. A narrativa seguirá os passos do professor, sua mulher (interpretada pela gracinha da Zooey Deschanel), seus amigos, a partir daí.
Agora, Eu Sou a Lenda.
Enquanto estão passando na tela os logotipos das empresas produtoras, ouvimos em off vozes de locutores de TV falando sobre esportes. Um deles passa para uma repórter no estúdio, que então surge na tela, como vista numa tela de TV, entrevistando uma cientista, a Dra. Alice Krippin (interpretada pela maravilhosa Emma Thompson, em participação especialíssima e não creditada). A repórter pede que a cientista explique sua descoberta em poucas palavras, e ela fala de vírus modificados geneticamente para se tornarem úteis ao corpo humano, em vez de nocivos; conta que fez testes clínicos em 10.009 pessoas.
A repórter: – Quantos estão livres do câncer?
A cientista: – 10.009.
A repórter: – Então, os senhores descobriam a cura do câncer?
A cientista: – Sim.
Corta, tela preta por alguns segundos, com um efeito sonoro para provocar terror. E então surge uma série de tomadas de Manhattan, com o aviso de que estamos três anos mais tarde. As tomadas são belíssimas, visualmente, e absolutamente apavorantes: não há ninguém, nenhum carro, nenhuma pessoa na capital do planeta. O mato cresce nas rachaduras do asfalto, no meio das ruas, nos passeios. Até que, numa tomada feita bem do alto, como de um satélite, como no Google Earth, vemos um carro andando. Corta, e vemos dentro do carro Will Smith, armado com uma imensa e poderosa metralhadora, tendo ao lado um cachorro. O carro passa no meio de uma revoada de centenas de aves; depois passará numa região onde correm dezenas e dezenas e dezenas de veados. Um deles será devorado por um leão.
Por uns 20, talvez 30 minutos, a narrativa acompanhará as andanças do personagem de Will Smith pelas ruas desertas e depois em sua casa, em plena Washington Square, diante do monumento a George Washington, que ele tranca ao entardecer – e durante todo este tempo o espectador está completamente às cegas, sem saber absolutamente nada do que teria acontecido nos três anos entre o momento em que a TV anunciava a descoberta da cura do câncer e esse futuro sombrio, terrível, apavorante de agora.
Com mais coisa para fazer na vida, Mary desistiu do filme por aqui. Eu o retomaria mais tarde, sozinho.
Lá por uns 35 minutos de filme, há um flashback – Nova York está sendo evacuada, Will Smith é um tenente-coronel do Exército e um cientista muito especial. Mas esse primeiro flashback revela pouco. As revelações virão a conta-gotas, ao longo do filme.
Não pude deixar de me lembrar de um filme de ficção científica dos anos 50 ou 60, que vi garoto, em Belo Horizonte. The World, the Flesh and the Devil, no Brasil O Diabo, a Carne e o Mundo. Vou checar, e vejo que é de 1959, dirigido por um Ranald MacDougall. Nunca mais revi, mas lembro bem, 40 anos depois, da fotografia em preto-e-branco das avenidas de Manhattan absolutamente vazias; havia três sobreviventes, interpretados por Harry Belafonte, Mel Ferrer e Inger Stevens. A população mundial havia sido dizimada após uma guerra atômica. (Exatamente como acontecia em A Hora Final/On the Beach, de Stanley Kramer, do mesmo ano de 1959.) Um diálogo fantástico ficou na minha memória para sempre. Lá pelas tantas, os personagens de Harry Belafonte e Mel Ferrer começam a brigar – o motivo da briga era Inger Stevens. Belafonte diz para Ferrer:
– E agora? Vamos começar a Quarta Guerra Mundial?
Antes que eu me pegue dizendo já não se fazem mais filmes sobre o Apocalipse como antigamente, devo dizer que não são filmes ruins, estes O Fim dos Tempos e Eu Sou a Lenda. O que eles têm a dizer é importante – qualquer alerta sobre a estupidez, as loucuras que estamos fazendo com o planeta é sempre bem-vindo.
Cada um deles tem suas qualidades: é interessante que o solitário M. Night Shyamalan escolha uma pessoa comum como seu protagonista, enquanto a superprodução com Will Smith pegue o Grande Herói. Mark Wahlberg está bem como o professor de ciência; Will Smith também está bem como o Grande Herói – e o filme consegue transmitir a imensa solidão dele, sua mente lutando para não se deixar dominar completamente pela loucura, pela dor insuportável.
Eu Sou a Lenda fez muito mais sucesso que Fim dos Tempos: o primeiro faturou US$ 584 milhões, contra US$ 163 milhões do segundo, até novembro de 2008, de acordo com reportagem do Estadão.
Gostei mais do filme de Shyamalan. Achei Eu Sou a Lenda mais implausível (mesmo dentro da lógica especial da ficção científica), mais falso – e muito mais estridente, espetaculoso. O filme de Shyamalan me pareceu mais inteligente, mais perturbador, mais inquietante – e com um final de muito maior impacto, redondo, bem bolado.
“Sei que não é a história que o espectador quer ouvir”, Shyamalan disse numa entrevista para o lançamento do DVD do filme, segundo relata a repórter Elaine Guerini, no Estadão. “Mas é a história na qual acredito. Fazemos parte de algo muito maior e gosto de respeitar isso.” E acrescentou: “O homem (da sociedade atual) tem a ilusão de que pode tudo”.
Finalmente, como um pouquinho de bairrismo é um sentimento normal, faz parte, não ofende ninguém, anoto: que beleza que escolheram Alice Braga para o papel de Anna em Eu Sou a Lenda. Ela está bem no filme, asssim como está bem em Cinturão Vermelho/Red Belt, de David Mamet. Essa moça está com tudo. Maravilha.
Agora, a Anna nunca ter ouvido falar em Bob Marley… Tudo bem, ela é brasileira, veio de São Paulo, quinto mundo, quintal do mundo – mas mesmo que ela viesse do Quênia, de Botswana, do Zimbábue, do Paraguai, da Bolívia, do Haiti, do Cazaquistão, da Mongólia, do Afeganistão, ela saberia quem é Bob Marley. Mas umbigo do mundo é assim mesmo: quem nasceu abaixo do Rio Grande é selvagem. Então tá.
Eu Sou a Lenda/I Am Legend
De Francis Lawrence, EUA-Austrália, 2007
Com Will Smith, Alice Braga, Sally Richardson, Willow Smith e, em participação especial não creditada, Emma Thompson
Roteiro Mark Protosevich e Akiva Goldsman
Baseado em roteiro de 1971 por John William Corrington e Joyce Hooper Corrington
Baseado na novela de Richard Matheson
Música James Newton Howard
Produção Warner. Estreou em São Paulo 18/1/2008
Cor, 101 min
**
Fim dos Tempos/The Happening
De M. Night Shyamalan, EUA, 2008
Com Mark Wahlberg, Zooey Deschanel, John Leguizamo, Ashley Sanchez
Argumento e roteiro M. Night Shyamalan
Música James Newton Howard
Produção Blinding Edge, Spyglass, 20th Century Fox. Estreou em São Paulo 13/6/2008
Cor, 91 min.
**1/2
O DIABO, A CARNE E O MUNDO: Ainda me lembro, como se fosse hoje-Na minha pequena cidade natal, na época com seus 4.000 hab, 1960 +ou-,eu tinha uns 10 anos,pobre,apaixonadíssimo por cinema,eu entrava de ré, sem pagar,na 2a sessão pela porta de saída. No final do filme os 3 sobreviventes, dois homens e uma mulher, se juntam,param de brigar, e começam o mundo novamente. Sensancional o filme.