O Efeito Dominó / The Trigger Effect

Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: O Efeito Dominó/The Trigger Effect, feito em 1996, estréia na direção de David Koepp, é surpreendente e muito, muito interessante. É um filme quase autoral, coisa não muito comum no cinema americano, nem mesmo no cinema independente. E discute idéias. Tem uma tese a defender. Parece mais um de tantos filmes de ação, beirando a ficção científica, mas na verdade é uma parábola, uma fábula.

Não sei o eventual leitor, mas eu gosto muito de surpresas. Não costumo ler críticas, sequer sinopses, antes de ver um filme. Prefiro ler outras opiniões depois que eu mesmo tiver visto o filme, para que, enquanto estiver vendo, tudo seja novo, desconhecido, talvez, quem sabe, surpreendente. Não tinha idéia de quem é esse diretor – o que me atraiu no filme, na estante da locadora, foi exatamente o fato de eu nunca ter falado nele – e também, confesso sem qualquer vergonha, o nome de Elisabeth Shue no elenco. Elisabeth Shue é boa atriz, uma bela mulher, com uma aura de grande sensualidade, como demonstrou no belo thriller noir Crimes em Palmetto, entre outros.

O filme abre com a voz em off de Elisabeth Shue lendo uma história infantil, totalmente desconhecida para mim. Há uma tomada geral de uma estação de distribuidora de energia, em seguida algumas tomadas de coiotes comendo um animal que acaba de morrer. Imagino que sejam coiotes – poderiam ser lobos, hienas, mas imagino que sejam coiotes porque os coiotes, a gente sabe disso por senso comum, costumam uivar para a lua, e aqueles animais ali uivam para a lua após a refeição.

Um longo, bem longo, belo plano-seqüência, logo na abertura

E em seguida temos um longo plano-sequência. Começa mostrando um fio elétrico, junto do chão, e daí a câmara acompanha os pés de um homem, que entra num shopping center e se choca de frente com um rapaz que carregava na mão um sorvete, ou refrigerante; o homem fica com a roupa toda suja daquilo, e em seguida esbarra em mais alguém, e depois num casal de jovens que está entrando numa escada rolante; o rapaz do casal quer discutir com o homem, enquanto vai subindo na escada rolante; a namorada faz um gesto em direção ao namorado e ele diz para ela não ficar tocando nele; os dois sobem a escada rolante, a câmara sempre atrás, sem corte algum, belo plano-sequência, e esse casal se encontra com um casal de amigos perto da bilheteria de um cinema, e a câmara segue agora o novo casal, mais especificamente a mulher desse novo casal, que fura a fila para comprar pipoca ou qualquer coisa, deixando irritadíssimo um homem que estava na fila, e esse homem, que por acaso tem a pele negra, furioso, resolve desistir da fila e entrar logo na sala de cinema, pois o filme já estava começando, e ele entra, a câmara sempre atrás, e ele se senta ao lado de um amigo e começa a contar a história da mulher que furou a fila da pipoca, e a câmara então se move para focalizar um casal sentado na fileira adiante da dois amigos que não param de falar – e só então há um corte no longo plano-sequência.

O casal sentado na fileira à frente dos dois que não param de falar é formado pelos protagonistas da história. O personagem interpretado por Elisabeth Shue se chama Annie, o personagem feito por Kyle MacLachlan é Matt (na foto acima e também na abaixo.)

Um letreiro avisa ao espectador que é sexta-feira.

O casal conversa baixinho: será que Matt tem que falar alguma coisa para o vizinho da poltrona de trás calar a boca?

Acabam mudando de lugar, mas o rapaz negro que não parava de falar os observa e fica bastante irritado com eles, manda Annie calar a boca.

Como se um vírus do mau humor, da intolerância, fosse se espalhando

Tenho absoluta paixão por planos-sequências. Plano-sequência, para mim, é cinema em sua essência – kinema, afinal, é a palavra grega para movimento. Algo que nenhum outro tipo de arte, de linguagem pode fazer, só o cinema.

Revimos o plano-seqüência. É bem feitíssimo. Dá uma sensação estranha, uma coisa assim de que estávamos vendo a transmissão, de uma pessoa para outra, desta para a seguinte, e assim por diante, de uma espécie de vírus do mau humor, da intolerância, da agressividade, da incivilidade.

À saída do cinema, Matt está inquieto, chateado com o episódio da altercação com o rapaz negro – o espectador percebe isso perfeitamente. Um tanto assim como se estivesse se cobrando por não ter chamado o rapaz para uma briga; como se estivesse um tanto envergonhado por não ter sido “macho” direito.

Apesar de bastante jovens, Matt e Annie são casados, têm uma filhinha de menos de um ano, que havia ficado com uma babá. Moram numa casa bastante confortável, num bom bairro de classe média – não saberemos a profissão de Matt, não importa, mas eles estão bem de vida, materialmente falando. A filhinha, no entanto, está chorando muito, possivelmente com inflamação no ouvido.

No meio daquela noite de sexta para sábado, acaba a luz.

Acaba a luz na cidade inteira. O espectador vê isso, numa tomada de grande beleza visual, um plano geral da cidade não identificada. Matt e Annie percebem que a luz acabou, mas não sabem se é só da casa. Matt se levanta, vê que o problema é de todo o bairro. Vai até a rua, lanterna na mão, e trava um diálogo com seu vizinho da frente, ele também de lanterna na mão.

Na manhã de sábado, a luz ainda não voltou, e o bebê chora de dor. Matt vai à farmácia – mergulhada em tumulto por causa da falta de energia – comprar o remédio que o bebê já havia tomado outras vezes, mas o farmacêutico exige a receita médica, e Matt não havia conseguido falar com o médico, até porque os telefones estão mudos.

Em casa, depois de uma aventura inimaginável vivida por Matt, o casal recebe a visitade um grande amigo deles, Joe (o papel de Dermot Mulroney). Annie propõe que os três fiquem juntos, bebam bastante, enquanto a luz e os telefones não voltam.

É como se fosse o fim do mundo – mas o mundo não está acabando

A partir daí, as coisas ficarão cada vez mais estranhas, inesperadas, assustadoras.

Com uns 60 minutos de filme, estamos no meio de uma narrativa que faz lembrar muito de filmes sobre o fim do mundo. Me lembrei bastante de Até o Fim do Mundo, o fascinante filme de Wim Wenders que também fala de uma pane mundial criada a partir do desligamento de toda a energia criada pelo homem.

Me lembrei também, e muito, de O Fim dos Tempos/The Happening, de M. Night Shayamalan.

Só que, neste O Efeito Dominó, o mundo não está acabando. Até parece que está, mas, não, não é o fim dos tempos, o fim do mundo.

Diz o diretor David Koepp – autor dos roteiros de Jurassic Park e O Homem Aranha – que seu interesse foi mostrar como os seres humanos foram ficando dependentes de coisas criadas pela tecnologia – a luz elétrica, o telefone. Eu acrescentaria a informática, mas nem é preciso. Diz o diretor que quis falar sobre como ficamos dependentes de coisas que não sabemos como funcionam – mas sem elas simplesmente não conseguimos conduzir nossas vidas.

Quando se vêem fragilizadas, as pessoas tendem à violência

É verdade: o filme fala disso, sim. Mas, na minha opinião, ele não quis explicitar em palavras o que o seu filme quis mostrar, e mostra, com uma clareza absurda.

Está lá no título original – The Trigger Effect. O efeito gatilho. Foi uma boa sacada dos exibidores brasileiros optar por O Efeito Dominó – é uma expressão muito clara, límpida, óbvia, na língua portuguesa. Mas ooriginal vai mais fundo. O efeito gatilho.

Quando se vêem repentinamente despido daquilo a que estão habituadas no dia-a-dia, os confortos básicos proporcionados pela energia elétrica, por exemplo, quando se vêem fragilizadas diante de um universo que não conseguem compreender, as pessoas, de uma maneira geral, mas em especial os seres daquela sociedade do Império mais rico que já houve sobre a Terra, tendem a botar a mão no gatilho. Literalmente.

E, se a vida sem as coisas básicas às quais nos acostumamos desde o nascimento já parece ilógica, muito mais ilógico, irracional, animal ainda é o efeito gatilho.

E aí, ao final deste filme estranho e fascinante, me peguei lembrando ainda de um outro filme, o ótimo Jogos de Guerra/WarGames, de John Badham, de 1983, que vem com a aparência de um filme infanto-juvenil de aventura, em que o computador-gigante acaba se cansando do brinquedo de extermínio do inimigo, quando finalmente compreende que na verdade aquilo tem apenas o significado do jogo da velha: se os dois contendores sabem jogar, só dá empate. Ninguém ganha nada, nunca.

– “Que tal um bom jogo de xadrez?”, pergunta a seu criador, ao final da história de Jogos de Guerra, aquele descendente do HAL 9000 de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick.

Neste seu filme aqui, David Koepp defende a mesma tese. A violência só pára quando um dos lados percebe que não haverá vencedores, nem vencidos, que serão todos exterminados caso a violência continue.

Exatamente como fez o diretor Robert Guédiguian, francês de origem operária, comunista e armênia, em seu belo Lady Jane, de 2008.

São filmes, estes, que seguramente desagradam aos que defendem a lei de talião, o olho por olho, dente por dente, os “falcões” de todos os matizes, os israelenses pró-expansão das colônias em territórios palestinos tanto quanto os árabes que não admitem a existência de Israel, os que protestam contra qualquer tentativa de desarmamento da sociedade.

A National Rifle Association – que Charlton Heston, coitado, tão belo, tão bom ator, tão reacionário, tão babaca, dirigiu por anos – seguramente deve ter feito forte lobby contra este filme aqui.

Não é um grande filme, na minha opinião. Mas quase chega lá. Tem alguns problemas no roteiro. Algumas situações parecem esquisitas, forçadas demais – mesmo se considerarmos a lógica estranha daqueles dias de loucura generalizada provocada pela falta de energia. A bebedeira da segunda noite parece exagerada, o charme que Annie sobre o amigo do casal parece deslocado; a bela coxa de Elisabeth Shue à mostra numa das cenas de maior tensão também me parece fora de propósito (embora seja de fato muito bela, a coxa). E os atores não estão muito bem em alguns momentos – talvez indício da falta de experiência do diretor novato.

Mas o filme tem sacadas visuais belíssimas, impressionantes movimentos de câmara. Consegue criar um clima pesado de medo, insegurança, envolve o espectador, deixa-o angustiado, inquieto. E, sobretudo, é um filme importante. Uma importante fábula contra o princípio do gatilho.

O Efeito Dominó/The Trigger Effect

De David Koepp, EUA, 1996

Com Kyle MacLachlan (Matt), Elisabeth Shue (Annie), Dermot Mulroney (Joe), Richard T. Jones (Raymond), Michael Rooker (Gary), Bill Smitrovich (Steph)

Argumento e roteiro David Koepp

Inspirado na série Connections, da BBB, de James L. Burke

Fotografia Newton Thomas Sigel

Musica James Newton Howard

Produção Amblin Entertainment, Gramercy Pictures. DVD NBO Entertainment

Cor, 96 min

***

5 Comentários para “O Efeito Dominó / The Trigger Effect”

  1. Ótima resenha. O filme é um boa surpresa mesmo. Comprei esses dias, no bacião das Americanas. Nessa linha de tensão social/possível apocalipse, o filme “Miracle Mile” também é uma boa pedida.

    Ps: Joshua, o computador de “Jogos de Guerra”, seria o ascendente do Hal-9000, não? 🙂

  2. Boa questão: ascendente ou descendente? Hal-9000 é um computador mais moderno, existente no futuro – e, nesse caso, você estaria certo, Joshua seria ascendente de Hal-9000. Mas, se considerarmos que o filme de Kubrick é de 1968, e “Jogos de Guerra” é de 1983, é o contrário, certo?
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *