Flores Raras

Nota: ★★★½

(Disponível na GloboPlay em 9/2022)

É uma beleza de filme este Flores Raras, que Bruno Barreto lançou em 2013. Conta, com muita sensibilidade, ternura e admiração, a longa e bela história de amor entre duas mulheres de trajetórias importantes, que deixaram marcas fortes de suas passagens pelo planeta.

Duas mulheres fascinantes, marcantes.

Elizabeth Bishop (1911-1979) é amplamente reconhecida como uma das grandes poetas norte-americanas – recebeu o Prêmio Pulitzer de Poesia em 1956, o National Book Award em 1970, o National Book Critics Circle Award e o Neustadt International Prize for Literature em 1976.

Lota de Macedo Soares (1910-1967), nascida Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, de família proeminente na sociedade e na política do Rio de Janeiro, era paisagista e arquiteta respeitada, embora autodidata, sem galardões acadêmicos. Atribui-se a ela – e o filme mostra isso – a idéia de criar o belíssimo parque que hoje ocupa toda a extensão do Aterro do Flamengo. Não foi apenas a idealizadora, mas também a principal paisagista e coordenadora da implantação do parque.

A Elizabeth que o filme mostra era uma mulher tímida, encolhida em si mesma, frágil, um finíssimo cristal prestes a trincar diante de um vento um pouco mais forte. Era filha única de família rica de Worcester, Massachusetts, mas teve infância trágica: o pai, homem de sucesso nos negócios de construção, morreu quando ela estava com oito meses de idade, e a mãe foi internada em hospital psiquiátrico quando a garota tinha seis anos. No filme, ela conta esses dois fatos – e vemos, num belo flashback, a mãe sendo conduzida à força por enfermeiros para a ambulância que a levaria embora. Elizabeth nunca mais conviveria com a mãe, morta em um asilo em 1934, e foi criada pelos avós maternos numa fazenda da Nova Scotia. Em seus contos, falou da mãe e também desse período com os avós – mas, no filme, não há referência a seus trabalhos em prosa, apenas à poesia.

Já a Lota mostrada no filme é o exato oposto da fragilidade. É uma mulher absolutamente forte, poderosa, firme, decidida. Um tanto mandona, até. (Uma “sapa de coturno meio pesada demais para o meu gosto”, segundo definiu o grande Luiz Carlos Merten em seu blog no Estadão assim que viu o filme, apresentado fora da competição no Festival de Berlim de 2013.)

Lota não se dava nada bem com o pai, José Carlos de Macedo Soares (1883-1968), jurista, historiador, político, interventor federal no Estado de São Paulo de novembro de 1945 a março de 1947, ministro da Justiça e de Negócios Interiores de Getúlio Vargas. O filme não mostra a origem da fortuna dela, mas era uma mulher rica, e, em 1951, quando começa a ação, morava numa propriedade imensa e paradisíaca chamada Samambaia, na Serra Fluminense, no município de Petrópolis.

Miranda Otto e Glória Pires estão ótimas

Uma das grandes qualidades do filme – prova da sorte e do talento de Bruno Barreto – é a escolha das atrizes para interpretar essas mulheres aparentemente tão opostas, antípodas, a tímida e frágil como um cristal e a forte como uma rocha. Glória Pires está ótima como aquela Lota cheia de confiança em si mesma e admirada por todos à sua volta. E a australiana Miranda Otto, que admiro desde que a vi pela primeira vez, possivelmente nunca esteve tão bela e tão magistral quanto como essa poeta de raro talento e rara dificuldade para enfrentar as durezas da vida.

Registro que a primeira vez que vi Miranda Otto foi em Voltando para Casa/Julie Walking Home (2002), da polonesa Agnieszka Holland. Por Glória Pires, tenho admiração desde sempre – dizer que é ela uma das melhores atrizes brasileiras é chover no molhado.

Uma americana frágil como um cristal, uma brasileira forte como as rochas que manda explodir para construir, no alto de uma colina dentro de sua enorme e bela Samambaia, um estúdio para Elizabeth escrever seus poemas.

(Foi impossível não lembrar do homem de vidro e do homem de aço, interpretados respectivamente por Samuel L. Jackson e Bruce Willis em Corpo Fechado/Unbreakable (2000), de M. Night Shyamalan.)

O filme abre no Central Park de Nova York – Elizabeth Bishop-Miranda Otto está sentada com seu grande amigo Robert Lowell em um banco do parque, diante do lago para barquinhos de brinquedo. Esse detalhinho, o lago dos adeptos de modelismo náutico, será importante na trama – uma prova do bom gosto, da sensibilidade, do talento de Bruno Barreto e dos roteiristas Matthew Chapman e Julie Sayres.

O espectador não é obrigado a saber, mas Robert Lowell (interpretado por Treat Williams, o inesquecível Berger do Hair de Milos Forman) foi um grande poeta, dos maiores, também vencedor do Pulitzer e do National Book Award, tido como o grande nome do que foi chamado pelos críticos de poesia confessional americana.

Fica muito claro nessa primeira sequência – talento de diretor-roteiristas-atores é uma coisa maravilhosa – que Elizabeth e Robert são amigos íntimos, que ela confia demais nos conhecimentos e no julgamento dele, que ele funciona como um crítico, um instrutor dela. Ele ouve, julga o que ela escreve, comenta, dá opiniões – mas é visível que gostaria de algo mais com ela. Algo que a bela moça, delicadamente, recusa.

Já nessa primeira sequência é citado o álcool – Elizabeth e Robert gostam de conversar diante de copos de bebida. Álcool será um tema presente ao longo de toda a narrativa de Flores Raras.

Ela comenta com o amigo que está precisando de descansar, mudar de ares, viajar.

Corta, e Elizabeth está num transatlântico, cruzando a linha do Equador.

Lota estava casada com uma amiga da poeta

O transatlântico faz uma parada de dois dias numa cidade chamada Rio de Janeiro, então capital de um país grandão, gigantesco, sobre o qual Elizabeth, mulher culta, com formação em Vassar, uma das escolas mais tradicionais e mais exclusivas dos Estados Unidos, seguramente já deveria ter ouvido falar um pouco. Até porque morava ali uma de suas grandes amigas, uma ex-colega exatamente de Vassar, chamada Mary (o papel de Tracy Middendorf, uma atriz que eu não conhecia).

É bem possível que o livro Flores Raras e Banalíssimas – A História de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop, da carioca Carmen L. Oliveira, escritora, pós-graduada em literatura pela University of Notre Dame, lançado pela Rocco em 1995, explique exatamente o que Elizabeth pretendia fazer, na sua viagem ao universo que existe ao Sul do Equador. É bem provável que ela tenha pensado em ir até o destino final daquele transatlântico, que dá para imaginar que fosse Buenos Aires, aquela capital tão charmosa e famosa à época quanto o Rio de Janeiro.

O que o filme baseado no livro de Carmen L. Oliveira mostra é que, ao descer no cais do porto do Rio de Janeiro para passar dois dias naquele país tropical, Elizabeth foi recebida por sua amiga Mary – que estava acompanhada por uma brasileira exuberante, expansiva. A brasileira comanda os carregadores, as malas são colocadas em seu belo carro esporte, e as três zarpam para longe da capital da República, estrada acima, rumo a Samambaia, a propriedade serrana que não fica muito atrás dos mais belos domínios senhoriais do país rico do Norte.

Mary conta para a amiga que os pais romperam completamente com ela, ao saber que ela estava vivendo com outra mulher.

Três amigos vão visitar Samambaia, conhecer a famosa poeta americana: duas amigas de Lota, creio, sem certeza, que Dindinha e Malu, papéis de Tânia Costa e Marianna Mac Niven, e um amigo, um tal Carlos, grandes óculos pretos. Todos falam bem o inglês – e Carlos recita um poema de Elizabeth, quase inteiro. Diz então que não se lembra dos últimos versos, pede para que a própria Elisabeth os recite. A poeta, tímida, frágil, diz que não se lembra.

Lota, a dona da casa, toma então a palavra, e diz os últimos versos.

Mais tarde, bate na porta da sua hóspede e logo em seguida, antes de ouvir qualquer resposta, abre a porta e, aquela rocha de pé diante do frágil cristal, diz que não ter recitado os dois últimos versos havia sido uma atitude desrespeitosa, deseducada. Fala com sua hóspede de uma maneira agressiva, desrespeitosa, deseducada.

A sequência termina com um close-up do rosto belo e triste de Elizabeth-Miranda Otto depois que a brasileira sai do quarto e fecha de novo a porta.

Um triângulo amoroso muito estranho

Um filme “baseado em fatos reais” – como diz o letreiro que aparece bem no início de Flores Raras – não tem absolutamente nada a ver com um documentário. Não é jamais a tentativa de reconstituição exata dos fatos reais – até porque, diabo, ninguém neste mundo seria capaz de reconstituir exatamente como eles se deram. Um filme baseado em fatos reais é sempre, necessariamente, obrigatoriamente, uma tentativa de recriação, de encenação. Uma interpretação – segundo as informações recolhidas e a sensibilidade dos realizadores – de como deve provavelmente terem sido os eventos.

Não sei dizer até que ponto os roteiristas Matthew Chapman e Julie Sayres e o realizador Bruno Barreto reproduziram o que a escritora Carmen L. Oliveira registrou, por sua vez baseada em não sei dizer o quanto de veracidade que obteve em suas pesquisas. Mas o fato é que o filme nos passa a idéia de que Lota se apaixonou de cara por Elizabeth. Amor à primeira vista – fulminante, e imenso. E Elizabeth, que absolutamente não estava preparada para nada daquilo, que sequer tinha clara uma opção pela homossexualidade, que não queria de forma alguma causar a infelicidade de sua amiga Mary, foi tomada por aquela paixão arrebatadora que Lota lançava sobre ela.

Elizabeth Bishop – é o que o filme mostra – simplesmente não conseguiu resistir à avalanche de paixão daquela mulher forte demais da conta. E também se apaixonou.

Não marquei os minutos, enquanto via o filme – mas dá para dizer que, ali pelos 20 dos 118 minutos de Flores Raras, Elizabeth e Lota estão trepando, absolutamente apaixonadas, as duas.

Criou-se ali, naquele ambiente rico da Serra Fluminense do iniciozinho dos anos 1950, um triângulo amoroso um tanto inimaginável. Lota pediu a Mary que ficasse ali, que ocupasse uma das casas da Samambaia – elas iriam satisfazer ao grande desejo da vida de Mary, adotar uma criança. Mary confessou que não tinha outro lugar do mundo para ficar – porque não conseguiria viver longe de Lota. E ficou.

O filme dá a entender que dali em diante não houve mais sexo entre Lota e Mary, que sexo era algo que Lota só fazia com Elisabeth. Não se diz isso explicitamente, de forma alguma – mas é o que o espectador pode inferir do que o filme mostra.

Mesmo assim, diacho… É um triângulo amoroso difícil de a gente acreditar que pudesse existir – e persistir.

O fato de Lota ser de direita afasta parte do público

Passam-se anos – muitos. Vemos Lota e Mary adotando um bebê, vemos a menininha, a quem dão o nome de Clara, crescendo. O começo havia sido, repito, em 1951. Logo vemos que já estamos nos anos 60. Carlos, o amigo de Lota, visitante constante de Samambaia, era Carlos Lacerda, o jornalista e político de direita que havia combatido com imensa ferocidade o governo constitucional de Getúlio Vargas. Ele conta para Lota e Elizabeth que vai ser candidato a governador.

Lacerda governou o então Estado da Guanabara de dezembro de 1960 a outubro de 1965. E o filme dedica muito tempo e atenção às obras do Parque do Flamengo, executadas naquele período. Como já foi dito, o filme credita tudo referente ao Parque a Lota – desde a idéia, a sugestão de se criar um parque sobre aquela área que havia sido aterrada desde a Glória até o Morro da Viúva, na divisa entre Flamengo e Botafogo, até a construção do parque. Burle Marx, que também trabalhou no paisagismo do parque, sequer é citado: tudo vai para a conta de Lota.

E a narrativa avança no tempo, até o golpe militar de 1964, e depois até mais adiante, até 1967.

Há aí uma questão tão delicada quanto importante. Lota de Macedo Soares apoiou o golpe militar. Torceu por ele, como seu amigo Carlos Lacerda, e, inicialmente, pelo menos, apoiou a ditadura implantada a partir dele.

Por causa disso, ela se torna uma personagem antipática a boa parte dos brasileiros. Não apenas os de esquerda, mas todos os que são contra ditadura e a favor da democracia.

O roteiro toma o cuidado de colocar Elizabeth se contrapondo à amante, defendendo a democracia, criticando o golpe. Mais ainda: mostra que os militares acabaram sendo contra algumas das idéias de Lota para o Parque do Flamengo. E que Lacerda, um dos grandes articuladores políticos do golpe, rapidamente foi tornado persona non grata da ditadura.

Pois é. Mesmo assim, creio que o filme acabou sofrendo pelo fato de que uma das suas protagonistas foi uma defensora do golpe e da ditadura militar. A frase de Luiz Carlos Merten, um crítico que admiro muito, me parece uma indicação clara disso: em seu blog no Estadão, em 12 de março de 2013, afirmou que não gostou muito do filme, “nem estética nem politicamente”. “Não gostei nem de Gloria Pires, uma atriz que normalmente admiro, como Lota de Macedo Soares, uma sapa de coturno meio pesada demais para o meu gosto.” (Lota está na foto abaixo.)

Nos EUA e Reino Unido, Reaching for the Moon

Ainda quanto ao golpe militar de 1964: o filme comete um errinho bobo demais, mas importante, que nos chamou bastante a atenção. Os personagens ouvem no rádio um locutor noticiando que, naquele dia 1º de abril, o golpe militar havia sido vitorioso, e o marechal Humberto de Alencar Castello Branco estava sendo empossado como novo presidente da República.

É um erro histórico grosseiro, grotesco. Com o golpe vencedor, e o presidente João Goulart ausente de Brasília, a Presidência da República foi ocupada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili. Mazzili ficou nominalmente na Presidência até o dia 6 de abril, quando então assumiu o marechal Castello Branco.

Erro grosseiro, grotesco. E bobo, desnecessário, diabo, em um filme tão absolutamente bem realizado em todos os quesitos técnicos – fotografia (de Mauro Pinheiro Jr.), direção de arte (de José Joaquim Salles), figurinos (de Marcelo Pies e Mary Jane Marcasiano).

Porque raios não procuraram um noticiário de rádio de verdade, da época – algo tão fácil de se conseguir? E como esse erro não foi percebido hora alguma?

Bem, mas isso é só um detalhe. Importante, mas um detalhe.

Outro detalhe é o lago para modelismo náutico do Central Park, que citei acima. É um bom achado do filme ter começado com Elizabeth Bishop e Robert Lowell conversando diante desse lago. Bem mais tarde, quando Lota está projetando o Parque do Flamengo, ela diz que faz questão de construir um lago para barquinhos, como o do Central Park. Carlos Lacerda a princípio acha frescura – mas Lota insiste.

Mais tarde ainda, ditadura implantada, há uma sequência em que vemos o lugar que era o lago de barquinhos sem água, descuidado, sujo.

Mais um detalhinho. O filme foi exibido nos Estados Unidos e no Reino Unido (e também no Festival de Berlim) com o título de Reaching for the Moon – alcançando a Lua, tentando alcançar a Lua, literalmente. Não achei – em uma pesquisa bem rápida, confesso – explicação para isso, ou de quem foi a idéia. Não é um título absurdo, despropositado, de forma alguma. A Lua é presença importantíssima numa sequência em que Lota e Elizabeth estão em Ouro Preto. É ali que a arquiteta tem a idéia de que criar no Parque do Flamengo uma iluminação que lembrasse a luz da Lua. Mais adiante, vemos a colocação dos postes altíssimos, gigantescos, onde seriam colocadas lâmpadas brancas. E, numa outra bela sequência, Elizabeth passeia pelo parque à noite – e a luz clara vinda dos postes altíssimos de fato se assemelha à luz da Lua.

Um ponto importante: é preciso registrar que uma primeira versão do roteiro foi escrita por Carolina Kotscho, autora também do roteiro de Hebe: A Estrela do Brasil (2019), de Maurício Farias, e co-autora do de 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira.

Segundo o respeitabilíssimo site Filme B, Carolina Kotscho escreveu o roteiro ainda em 2009. Consta que Bruno Barreto e as duas produtoras – sua irmã Paula e sua mãe Lucy Barreto – teve dificuldade em achar quem aceitasse ajudar a financiar o filme. Quando a obra ficou pronto e foi exibida na noite de abertura do Festival de Cinema de Gramado, em outubro de 2013, Bruno Barreto disse em entrevista, para explicar a dificuldade de encontrar financiamento para um filme sobre um relacionamento homossexual: “O Brasil ainda é um país muito conservador”.

Entre 2009, quando Carolina Kotscho escreveu o roteiro, e a época da pré-produção do filme, os realizadores optaram por dar a dois profissionais norte-americanos, Matthew Chapman e Julie Sayres, a tarefa de escrever a forma final do roteiro. Nos créditos do filme, é dito que os dois autores se basearam no roteiro de Carolina Kotscho e no romance Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira.

Arnaldo Jabor escreveu belo texto sobre o filme

Assim que viu o filme, em agosto de 2013, o cineasta Arnaldo Jabor escreveu um belíssimo texto sobre ele e sobre Elisabeth Bishop e sua relação com o Brasil. O texto – com o título de “A rara flor da poesia” – foi publicado no Estadão e também em outros jornais país afora. Encontrei-o agora por pura sorte, e é impossível resistir à tentação de transcrever pelo menos parte dele.

Lá vai:

“Vi o filme novo de Bruno Barreto, Flores Raras, que entra em cartaz nesta semana. Uma história de amor entre duas mulheres nos anos 50/60 no Rio. O filme tem uma delicadeza rara hoje em nosso cinema, cheio de neochanchadas para arrasar quarteirões e embrutecer mais ainda o imaginário das platéias. Flores Raras, não. Tem um clima quase ‘de época’ na mise-en-scène, pois retrata ainda o tempo da delicadeza e da ilusão – praias, montanhas e sol cegando a cidade para seus problemas. É um dos belos filmes de Bruno, como Dona Flor e Seus Dois Maridos ou o Romance da Empregada. Duas mulheres se amam: Lota e Elizabeth Bishop.

Muita gente não sabe quem foi Elizabeth Bishop, nem é obrigada a saber. Trata-se de uma grande poeta norte-americana que, em 1951, passou pelo Brasil, apaixonou-se pela brasileira Lota Macedo Soares, intelectual da elite carioca, e aqui ficou por 16 anos, entre grandes alegrias, sofrimentos, crises de alcoolismo e extraordinários poemas. Lota era assessora de Carlos Lacerda e comandou a construção do nosso ‘Central Park’ – no Aterro do Flamengo, contra os vorazes políticos picaretas que queriam tomar conta da área. Ali, consumiu sua saúde e seu amor por Bishop.

Sempre ouvi falar de Elizabeth Bishop, mas só fui ler seus poemas há poucos anos, quando saiu a excelente tradução de Paulo Henriques Britto. Por que não li na época, eu que gostava tanto de poesia? Porque (deliciem-se, patrulheiros…) como ela era ‘caso’ de Lota, assessora de Carlos Lacerda, o inimigo máximo da esquerda janguista, ficava feio ler seus trabalhos. Ela era uma ‘americana lésbica’ e, certamente, ‘reacionária’ – palavras devastadoras para nós. Éramos assim em 1967.

No entanto, Bishop não era apenas uma ‘boa poetisa’. Ela está no nível de Marianne Moore, Robert Lowell e outros; tem uma poesia seca e dolorida, um amor transbordante e contido, uma poesia afetiva das ‘coisas’, como fez Francis Ponge, João Cabral, a Moore e, lá longe, John Donne. Elizabeth Bishop fez uma poesia não lamentosa, uma poesia crítica e seca, com forte nostalgia romântica, sem a melancolia paralisada de outro gênio como Emily Dickinson.

Bishop escreveu muitos poemas sobre o Brasil dos anos 50 e 60, nos quais se vê, mesclada a uma irritação ‘calvinista’ com nossas mazelas, uma profunda compaixão pelo desamparo social, um amor raríssimo pela fragilidade do povo, poucas vezes encontrado em poetas brasileiros.

Elizabeth Bishop não era de ‘esquerda nem de direita’, como se dividiam todos naquela época (e ainda hoje).

Era uma liberal norte-americana, com olhos anglo-saxões, que assistiu, como uma ‘brasilianista artística’, a anos cruciais de nossa história: a morte de Getúlio, JK, Jânio, até o golpe militar de 1964. É curioso ver que sua vida piora enquanto o Brasil piora. E Elizabeth tem nesse tempo a antevisão dolorosa do futuro difícil que esperava nosso país. Ela vê uma infraestrutura secular de equívocos que estão nas instituições, como um veneno que tudo contamina. Elizabeth viu além das ideologias, além dos dogmas.

Ela escreve: ‘Como país, acho que o Brasil não tem saída – não é trágico como o México; é apenas letárgico, egoísta, autocomplacente, meio maluco’. Mas, mesmo assim, tem amor por ele: ‘Um país onde a gente se sente de algum modo mais perto da verdadeira vida, a de antigamente. (…) Com todos os seus horrores e estupidez, uma parte do mundo perdido ainda não se perdeu aqui’.

Seu olhar profundo se detinha sobre os sintomas do que nos acontecia e poderia continuar acontecendo. Ela viu os indícios de tragédia e paralisia que se ocultavam por trás do egoísmo da direita udenista e também da iludida generosidade ‘de esquerda’; ela viu que uma maldade profunda nos regia, que uma impiedade secular comandava nosso atraso.”

Beleza de texto de Arnaldo Jabor.

Beleza de filme de Bruno Barreto.

Anotação em setembro de 2022

Flores Raras

De Bruno Barreto, Brasil, 2013

Com Miranda Otto (Elizabeth Bishop),

Glória Pires (Lota de Macedo Soares)

e Tracy Middendorf (Mary), Marcello Airoldi (Carlos Lacerda), Treat Williams (Robert Lowell), Tânia Costa (Dindinha), Marianna Mac Niven (Malu), Marcio Ehrlich (José Eduardo Macedo Soares), Lola Kirke (Margaret Bennett), Luciana Souza (Joana), Anna Bella     (Kathleen), Angelina de Sensi (Clara aos 5 anos), Kiria Malheiros (Clara aos 8 anos), Bruna Franca (Clara aos 3 anos), Joana Franca (Clara aos 3 anos), Thogun Teixeira (Crioulo), Isio Ghelman (Dr. Jorge), David Herman (o embaixador dos EUA), Sonia Glatt (a mulher do embaixador), Emmanuel Pasqualini (o capitão do navio), Erica Migon        (a mãe de Clara), Evandro Melo (o faz-tudo da Samambaia)

Roteiro Matthew Chapman e Julie Sayres

Baseado no roteiro de Carolina Kotscho e no romance “Flores Raras e Banalíssimas”, de Carmen L. Oliveira

Fotografia Mauro Pinheiro Jr.

Música Marcelo Zarvos

Montagem Duda Nenevides, Letícia Giffoni

Casting Marcia Andrade, Avy Kaufman

Desenho de produção José Joaquim Salles

Figurinos Marcelo Pies, Mary Jane Marcasiano

Produção Lucy Barreto, Paula Barreto, LC Barreto Productions, Imagem Filmes, Globo Filmes, Globosat, Telecine, Teleimage.

Cor, 118 min (1h58)

***1/2

Título nos EUA e Reino Unido: Reaching for the Moon

2 Comentários para “Flores Raras”

  1. Obrigado por me lembrar deste filme – não vi na época do lançamento, e vou procurar ver agora.

Comentário

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