Os Intocáveis / The Untouchables


3.5 out of 5.0 stars

Texto para a revista Afinal de 20 de outubro de 1987: Quando Indiana Jones se encontra com Sergei Mikhailovitch Eisenstein, em uma das seqüências mais brilhantes, mais bem realizadas deste quase um século de cinema, a platéia aplaude, grita, assobia – como nos velhos seriados, nos velhos filmes de bangue-bangue. Claro, não importa que muita gente não saiba quem foi esse russo, mas Indiana Jones todos conhecem, Indiana Jones é demais – e ali está Indiana Jones, em mias uma de suas memoráveis aventuras, agindo desta vez sob o nome de Eliot Ness, agente do Tesouro americano, combatendo o crime, a corrupção, o fedor, o Mal, em Chicago, a capital do crime, da corrupção, do fedor, do Mal, nos Estados Unidos da Lei Seca e da Grande Depressão. São seis ou oito bandidos, na escadaria de uma estação de trem, contra apenas ele e um de seus Intocáveis – mas, como Indiana Jones, Eliot Ness é capaz de tudo.

De tudo – inclusive de montar a cavalo, ele, um urbaníssimo agente da lei em uma época em que já haviam desaparecido o Velho Oeste e todos os seus bandidos e seus agentes da lei. A seqüência de Eliot Ness e seus três companheiros intocáveis montados a cavalo começa com uma panorâmica de um despenhadeiro, os vultos dos cavaleiros recortados contra o céu, numa cena que evoca de imediato outro grande mestre do cinema, John Ford, e seus clássicos westerns.

O bem triunfa

Essas duas seqüências – a do tiroteio na escadaria e a do despenhadeiro – dão bem o tom de Os Intocáveis/The Untouchables, (1987, estréia nacional nesta quinta, 22). É a transposição para o cinema moderno, em tela gigantesca e som Dolby stereo – com tremendo requinte, maravilhoso apuro técnico, uma produção impecável, com um artesanato nunca menos que brilhante – de um dos mais persistentes mitos do cinema americano e, mais ainda, uma das mais recorrentes certezas do pensamento americano: a de que, no fim, a honestidade triunfa, a verdade aparece, o Bem se impõe. Mesmo quando todo o sistema parece apodrecido, quando toda a máquina está infectada. Mesmo quando – e nisso o cinema americano é absolutamente pródigo de exemplos – quem luta contra a máquina é um herói solitário, com poucos recursos e quase nenhum amigo.

Os exemplos são incontáveis. O xerife absolutamente solitário de Matar ou Morrer/High Noon, enfrentando o desdém e o medo da cidade inteira, o abandono da noiva no dia do casamento e mais os quatro temíveis pistoleiros. O xerife, o  bêbado e o aventureiro contra um enorme bando de pistoleiros em Onde Começa o Inferno/Rio Bravo. O xerife Wyatt Earp e seu aliado, o bêbado e tísico Doc Holliday, contra o bando dos Clanton primeiro em Paixão dos Fortes/My Darling Clementine e depois em Sem Lei e Sem Alma/Gunfight at the O.K. Corral.

 Os exemplos do homem solitário vencendo a poderosa máquina da estupidez, da covardia ou da corrupção são uma das essências dos westerns ( e Os Intocáveis lembra muito esses westerns), mas não são, é claro, exclusividade deles. Basta lembrar o homem honrado interpretado por Henry Fonda em Doze Homens e uma Sentença/Twelve Angry Men, solitária voz em um júri sonolento e preguiçoso a levantar o benefício da dúvida em favor do acusado – e que faz reverter um a um os 11 votos de culpado. Ou então pensar em qualquer dos filmes do grande Frank Capra, com seu idealismo romântico e ingênuo e sua inquebrantável fé em que, através da democracia, da livre manifestação de idéias, os pobres e enjeitados podem quebrar o coração de mármore dos ricos e poderosos, e cooptá-los para a luta solidária por uma sociedade melhor.

Às vezes até a vida real fornece para o cinema esses heróis que conseguem derrubar a máquina, como Carl Bernstein e Bob Woodward, os personagens da História e de Todos os Homens do Presidente. Esse filme, ao menos, mostra que não foi nada fácil para os dois repórteres ir escavando a verdade em direção aos crimes cometidos com o consentimento do inquilino da Casa Branca. Já para o Eliot Ness do filme de Brian De Palma, tudo foi muito, mas muito fácil.

O doce da criança

Eliot Ness, como se sabe, existiu mesmo – e foi ele, de fato, quem conseguiu levar a julgamento, em 1931, o mais poderoso de todos os chefes do crime organizado dos Estados Unidos da época, Alphonse Capone, um filho de imigrantes napolitanos que prosperou vertiginosamente nos anos 20 à custa, em especial, do tráfico e da venda de bebidas alcoólicas. (O consumo de álcool foi ilegal – era a Prohibition, ou Lei Seca – de 1920 a 1933, em todos os Estados Unidos. Foi a própria Lei Seca que fez crescer o crime organizado e a ampla corrupção da polícia e da Justiça; essa não é a principal preocupação de Brian De Palma, mas há pinceladas mostrando isso, no filme.)

Em meados de 1930, época em que começa a ação do filme, Al Capone controlava destilarias e frotas de caminhões e de barcos que faziam o contrabando de bebida, além de outros negócios avulsos que incluíam o lenocínio; mais que isso, controlava, através da corrupção, os policiais, os juízes e até o prefeito de Chicago.

A luta contra Al Capone empreendida pelo agente do Departamento do Tesouro Eliot Ness – mandado para Chicago pelo governo federal com plenos poderes – já havia servido de base para um telefilme produzido em 1959 pela cadeia americana CBS e para um famosíssimo seriado da ABC, com Robert Stack como Eliot Ness, exibido no Brasil, com muito sucesso, no começo dos anos 60. (Brian De Palma diz que não se inspirou no seriado para fazer seu filme, e conta que só assistiu ao piloto da série.)

Para sua nova versão, o roteirista David Mamet (autor do excelente roteiro de O Veredito) aparentemente não teve preocupações com fidelidade história – Eliot Ness chefiava, por exemplo, dez agentes especiais, que, no filme, foram reduzidos para apenas três. E, sobretudo, simplificou ao extremo a trajetória dos Intocáveis na luta contra o gângster. No filme, há, na verdade, apenas três enfrentamentos entre os Intocáveis e o bando de Al Capone: a captura de uma enorme quantidade de bebida, mantida pelo bando bem no prédio dos Correios, a poucos metros da central de polícia de Chicago; a captura de um grande carregamento de bebida que  vinha do Canadá, na tal seqüência em que os quatro Intocáveis aparecem como cavaleiros do Velho Oeste; e a captura do guarda-livros e guarda-todos-os-segredos de Al Capone, em uma estação de trem – a seqüência brilhantíssima da escadaria. Três golpes, e pá – o mais poderoso gângster do mundo se vê diante dos braços não tão firmes da lei. Fácil como roubar o doce de uma criança.

Dólares e talento

Para mostrar que destruir uma gigantesca, poderosíssima, bem montada e bem azeitada máquina criminosa é tão fácil como roubar o doce de uma criança, Brian De Palma contou com um belíssimo orçamento de US$ 20 milhões – o mesmo total gasto por Steven Spielberg para fazer a primeira aventura de seu herói Indiana Jones, Os Caçadores da Arca Perdida. O orçamento generoso, mais o inegável talento de Brian De Palma em captar belíssimas imagens com sua câmara sempre móvel, resultaram em um espetáculo admirável.

(Resultaram também em um excelente negócio. Em três meses de exibição nos Estados Unidos, o filme havia faturado US$ 73 milhões, quase quatro vezes o seu custo.)

Tecnicamente, o filme é um delicioso banquete. A consultora visual é Patrizia Von Brandestein, uma feiticeira na reconstituição de épocas – ela foi a responsável por esse trabalho em dois dos grandes filmes feitos nos Estados Unidos nos últimos anos, Nos Tempos do Ragtime/Ragtime e Amadeus, ambos do checo Milos Forman. A reconstituição dos interiores é fascinante, em todos os detalhes – da casa classe média de Eliot Ness ao apartamento simples de tira solteiro de seu braço direito, Jimmy Malone, com uma felicidade especial no luxuoso Lexington Hotel, onde Al Capone vivia. Contratou-se um especialista em armas para cuidar dos revóleres e trabucos de todos os tipos utilizados pelo Bem e pelo Mal; Branco Wohlfahrt, o especialista, providenciou armas de verdade usadas na época. As roupas são da grife de Giorgio Armani, um dos mais respeitados nomes da moda européia.

Para a trilha sonora foi escolhido o nome mais certo que poderia haver – o experientíssimo, eclético, genial Ennio Morricone, autor da trilha sonora de Era uma Vez no Oeste e de dezenas de western-spaghetti, de Sacco e Vanzetti e quase todos os filmes políticos do cinema italiano nos anos 60/70, e, nos anos 80, autor de duas das mais impressionantes trilhas sonoras de todo o cinema, para Era uma Vez na América e A Missão. Seu trabalho cria o clima de cada cena de Os Intocáveis.

Banquete completo

Kevin Costner, um nome quase desconhecido até agora, deverá estar em breve no mesmo patamar de um Mickey Rourke. Depois de ter tido sua participação em O Reencontro/The Big Chill eliminada (ele fazia o rapaz que se matava, motivo pelo qual os companheiros se reúnem, mas o diretor Lawrence Kasdan entendeu que o filme ficava melhor sem os flashbacks em que ele apareceria), subiu imediatamente para o estrelato por sua interpretação como Eliot Ness – e já é tremendo sucesso nos Estados Unidos com o filme, ainda inédito aqui, Sem Saída/No Way Out. Seu trabalho lembra um pouco Harrison Ford – sutil, sem trejeitos ou maneirismos. Esses, Kevin Costner deixa para os dois veteranos do elenco, os excepcionais Sean Connery e Robert De Niro.

Sean Connery faz Malone, o policial que se ferra na vida por ser honesto, e é escolhido por Eliot Ness como seu braço direito. O velho 007 está ótimo como o policial velho, careca, gordo, que cria vida nova com a possibilidade de brigar pelos princípios em que acredita. Quanto a Robert De Niro – que engordou mais de dez quilos, recebeu uma enorme cicatriz na face esquerda e cortou rente os cabelos para fazer Al Capone -, dizer que é um dos melhores atores da sua geração é pouco. “Ele não é Bob De Niro fazendo o papel de Al Capone, ele é Capone”, disse Brian De Palma, que trabalhou com o ator no início da carreira dos dois (Greetings, de 1968, e Hi, Mom, de 1970, ambos inéditos no Brasil) e que pagou a ele, pelos 18 dias de excepcional trabalho, a soma de US$ 1,5 milhão.

Essas contribuições todas já assegurariam um bom filme. Com a câmara de Brian De Palma, o banquete fica completo. “Na virtuose técnica reside o gênio do autor”, definiu o crítico francês Jean Tulard – e ele ainda não havia visto Os Intocáveis, sem dúvida o melhor trabalho do autor. Seguindo as lições de Alfred Hitchcock, seu mestre confesso, Brian De Palma abusa dos travelings, das panorâmicas, dos plongés – a tomada de Al Capone fazendo um discurso aos jornalistas, do alto de uma escada, a câmara pegando o ator e o teto trabalhadíssimo, cheio de detalhes, é excelente. Em todo o filme, a câmara está quase invariavelmente em uma grua, subindo ou descendo, ou em um carrinho, sempre se movimentando, nunca parada. Neste filme sem qualquer cena de sexo, o voyeurismo que é marca registrada do diretor fica por conta da seqüência brilhante em que a câmara faz as vezes dos olhos do gângster que observa a casa de Malone, seguindo seus movimentos de janela a janela, até pular para dentro de um dos cômodos.

Citando mestres

O brilhantismo formal mais exagerado, é claro, está na seqüência da escadaria. Brian De Palma gosta de fazer citações de grandes filmes; já homenageou Hitchcock diversas vezes – como na cena inicial de Angie Dickinson no chuveiro em Vestida para Matar/Dressed to Kill, uma citação de Psicose. Aqui, ele rende tributo ao mestre dos mestres, Sergei Mikhailovitch Eisenstein. A cena da multidão sendo massacrada pelos soldados do czar, em uma escadaria da cidade de Odessa, em O Encouraçado Potemkim, de 1925, faz parte de qualquer manual de cinema. Eisenstein vai alternando as tomadas que mostram as botas dos soldados descendo as escadarias com pequenos detalhes da multidão – o carrinho de bebê que desce desgovernado, a mãe carregando o cadáver do filho no colo, o olho que sangra atrás dos óculos de aro de ferro.

Como Eisenstein, na seqüência da escadaria Brian De Palma expandiu o tempo. Em Festim Diabólico/Rope, Hitchcock mostra, durante 80 minutos, uma ação que levava exatos 80 minutos para acontecer. O tempo do cinema coincidia exatamente com o tempo real. Na seqüência da escadaria, De Palma abre o tempo – é quase uma câmara lenta, com 30 segundos de ação valendo por 1 minuto mostrado na tela.

Mas certamente não é a qualidade técnica que faz a platéia aplaudir, gritar, assobiar. É que, nessa seqüência, os personagens de Eliot Ness e seu Intocável George Stone (Andy Garcia) não subvertem apenas o tempo, mas também a lógica, com suas qualidades sobre-humanas à la Indiana Jones.

Mas o bem triunfa?

Em Os Caçadores da Arca Perdida, Indiana Jones vence tudo e todos; é um super-homem, um semideus, não é um simples mortal, como eu ou você. E é para ser assim mesmo, essa é a brincadeira, essa é a lógica interna do filme – a ausência da lógica comum. Os Intocáveis de Brian De Palma, no entanto, são perfeitos demais, mas demais da conta – em especial na cena da escadaria -, em um filme que pretende falar de acontecimentos reais.

Mas nem é bem esse o problema. O problema é que até Indiana Jones, o super-homem, o semideus, que vence tudo e todos, em suas aventuras nas selvas ou no deserto, não consegue derrotar a Grande Máquina. A arca que ele consegue trazer depois de mil e uma peripécias é depositada em um porão da Grande Máquina – o governo americano e seu trambolho burocrático -, e lá certamente ficará entregue às traças por mais 2 mil anos, no mínimo.

O que aproxima o filme de Brian De Palma de clássicos do cinema e do pensamento americanos – a capacidade do herói solitário de vencer o mal, o happy end, o happíssimo end – é o que o distancia das maiores obras do cinema nos últimos anos, como, por exemplo, os dois O Poderoso Chefão/The Godfather e Era uma Vez na América. O que Francis Ford Coppola e, sobretudo, Sergio Leone têm a dizer é que, por mais que se lute contra o mal, o mal vence, o fedor continua a feder, as máquinas e o sistema são poderosos demais, e indestrutíveis. É bem menos happy – na verdade, é tremendamente mais triste. Mas é, talvez, bem mais próximo da verdade. Este país que o diga.      

Os Intocáveis/The Untouchables

De Brian De Palma, EUA, 1987.

Com Kevin Costner, Sean Connery, Andy Garcia, Charles Martin Smith, Robert De Niro

Roteiro David Mamet

Música Ennio Morricone

Produção Paramount. Estreou em São Paulo 22/10/1987

Cor, 119 min.

20 Comentários para “Os Intocáveis / The Untouchables”

  1. Na cena em que o Ness empurra um bandido do telhado é uma clara referência ao Vertigo (um corpo que cai) do Hitchcock….

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