The Prowler, que no Brasil ganhou o melodramático título de Cúmplice das Sombras, é a prova de que nem todo filme noir brilha. Apesar de ser dirigido por Joseph Losey, cujo assistente era ninguém menos que Robert Aldrich, e de ter entre os roteiristas (embora seu nome não apareça nos créditos) o grande Dalton Trumbo, o filme é bastante fraquinho.
E, a rigor, a rigor, é mais melodrama do que noir.
Não tem uma femme fatale, uma mulher inteligente, esperta, retrato do mal em si, pronta para usar um pato, um sucker, um bobalhão, para conseguir o que quer. Bem ao contrário: a personagem feminina do filme, Susan Gilvray, é bastante burrinha. É loura, sim, como as femmes fatales em geral são, mas não é belíssima – a atriz que a interpreta, Evelyn Keyes, trabalha bem, mas não chega nem aos pés de uma Barbara Stanwyck ou uma Lana Turner, para citar só duas atrizes de filmes noir clássicos.
Em vez de despertar uma paixão desesperada no pato, e dele fazer gato e sapato, Susan, tadinha, é que se apaixona perdidamente pelo protagonista da história, Webb Garwood (o papel de Van Heflin), um brutamontes que não vale nada, é um porcaria, um inútil. E Susan se deixa usar pelo sujeito que está na cara que não presta.
Susan é tão burrinha, tadinha, que não compreende o perigo que representa o que ela vai revelar a Webb um pouco depois da metade do filme, num quarto de motel. Ele então diz para ela: – “Vai ser preciso eu desenhar para você?”
Gozado: tenho ouvido muito essa expressão ultimamente, e confesso que até há pouco não a conhecia. Achava até que era uma expressão recente, uma gíria nova. Nada: em 1951, ano de lançamento deste The Prowler, ela já existia. O personagem de Van Heflin fala exatamente isso para o de Evelyn Keyes: “Do you want me draw it for you?”
Um brutamontes que se mostra um folgadão invasivo
Em seu ótimo livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o professor e ensaista carioca A. C. Gomes de Mattos faz cuidadosa sinopse e análise dos principais filmes do gênero. Eis o que ele escreve sobre este The Prowler:
“Os patrulheiros Webb Garwood e Bud Crocker atendem a um chamado de Susan Gilvray, mulher de um conhecido radialista, dando parte que um indivíduo está rondando sua casa. Não encontram ninguém, porém Webb retorna depois, para ver como estão as coisas, e seduz Susan ao saber que existe um testamento em favor dela. Uma noite, ele…”
E aí Gomes de Mattos faz um spoiler, revela fatos que só acontecem quando o filme está já ali pela metade.
As sinopses devem necessariamente ser curtas, mas creio que o professor Gomes de Mattos exagerou na síntese. Não que haja aí no que ele disse qualquer senão, equívoco, erro – de forma alguma. Mas é que as coisas se passam bem mais lentamente do que a sinopse pode indicar.
O patrulheiro Webb Garwood se mostra um tipo pouco adequado ao trabalho de um policial que faz rondas na rua desde a primeira vez em que chega à casa – muito grande, muito rica – de Susan. Ele já chega lá comentando com o parceiro, o veterano da polícia de Los Angeles Bud Crocker (John Maxwell) que aquela é uma bela “hacienda”. Ele usa exatamente essa palavra; como ele é um sujeito pobre e nada letrado do interior de Indiana, a probabilidade de que ele soubesse da existência dessa palavra em espanhol é mínimA. Mas isso é o de menos.
O policial Webb Garwood se mostra, desde a primeiríssima visita à casa rica de Susan, um sujeito no mínimo folgadão demais da conta.
E, logo após deixar o parceiro em casa, volta à casa da mulher, o que é um absurdo dos absurdos, uma coisa inaceitável.
Susan abre a porta para ele – o que também não tem sentido, não tem explicação, não tem lógica alguma.
Webb entra na casa e se mostra ainda mais folgadão do que da primeira vez, muito provavelmente uma ameaça – mas Susan nem percebe o perigo, porque descobrem que são da mesma cidadezinha do distante estado de Indiana!
Bem, fazer o quê? Coincidências existem.
Na terceira vez em que Webb aparece na casa, aí já é demais. É recebido com cervejinha, comidinha – e aí tasca um beijo na mulher. Ela o bota pra fora – mas o espectador já percebeu, aí quando o filme está com uns 15 minutos, que a loura é mesmo burrinha, incapaz de perceber o óbvio, que aquele camarada é mau caráter, e que ela vai se apaixonar pelo brutamontes.
Quando cheguei nesse ponto, pensei em parar. Já sabia que o filme era ruim – pra que continuar?
Mesmo que não fosse de todo ruim, era um filme sobre personagens que não são simpáticos. Webb – o espectador percebe isso desde o primeiro momento, Joseph Losey faz questão de deixar isso claro desde o inicinho – é um pustema, um mau caráter. A loura, tadinha, a loura é burra, e é solitária, o marido mais velho trabalha à noite, e ela estava pronta para se apaixonar por quem quer que aparecesse à sua frente.
Estou cada vez mais convencido de que não tenho tempo para ver filmes cujos protagonistas são pessoas antipáticas ou imbecis. Como já estou muito velho, não vou voltar a ver filmes, por exemplo, de Claude Chabrol, um realizador que detesta os personagens que cria. Quero mais é rever os filmes de Truffaut, ou de Spielberg, realizadores que amam suas criaturas.
Mas não fiz o que deveria ter feito: não parei de ver esse filme ruim, menor, fraco. Fui em frente.
Só posso dizer que ele piora cada vez mais.
Tudo o que acontece depois da metade do filme vai ficando cada vez mais idiota, mais sem sentido, mais lixo.
O filme faz lembrar o grande O Destino Bate à Porta
Me lembrei – não há como não lembrar – de O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice, lançado cinco anos antes, em 1946. A história é assim uma espécie de tentativa de copiar a trama criada por James M. Cain – uma tentativa de cópia feita sem talento.
Os dois filmes têm uma estrutura bastante similar. Lá pela metade da ação, há o climax, o momento mais importante – e é surpreendente que o climax venha no meio. O que acontecerá a partir daqui?, o espectador tem todo o direito de se perguntar.
O que acontece depois do climax em O Destino Bate à Porta é surpreendente. O que acontece depois do climax neste The Prowler é um melodramão dos piores, uma bobagem que vai ficando mais agressivamente boba à medida em que avançamos para o penoso fim.
Volto ao texto do professor Gomes de Mattos:
“O filme tem um tema noir, porém invertido: a personagem feminina não é uma mulher fatal, e sim uma criatura vulnerável, perdida, que engana o marido, mas fica abalada com sua (spoiler). Desta vez é um homem, um policial indigno, quem planeja o crime. Ele se introduz na vida de Susan, aproveitando sagazmente a oportunidade de alimentar sua irrefreável ambição.”
O escritor James Ellroy diz que o filme é uma obra-prima
Cada pessoa, cada sentença – e é assim que é bom. O escritor James Ellroy, o autor dos romances que viraram filmes importantes – Los Angeles Cidade Proibida/L.A. Confidential e Dália Negra/The Black Dhalia –, adora este filme. Consta que uma vez disse que este é seu filme preferido, e que ele o descreveu como “uma obra-prima de baixaria sexual, corrupção institucionalizada e paixão sufocante, feia”.
O filme foi restaurado, não sei exatamente quando, e há, na cópia que agora está disponível no Brasil, na coleção Film Noir da Versátil, a informação de que os restauradores agradecem a James Ellroy. A restauração foi feita pela UCLA e Television Archive, sob o patrocínio da The Film Noir Foundation e The Stanford Theatre Foundation.
Por que raios será que há um agradecimento especial a James Ellroy?
Mais ainda: me pergunto por que James Ellroy, escritor tão brilhante, gosta tanto dessa história canhestra, tortuosa, que, a rigor, a rigor, se a gente pensar dois minutos, não passa de idiota.
E aquela coisa da cidade fantasma, Calico, a cidade onde nem os coiotes ficam? Que coisa mais improvável, falsa, inverossímil!
O diretor Joseph Losey (1909-1984) visitou a Europa nos anos 1930, antes do início da Segunda Guerra, e voltou muito influenciado por Bertold Brecht; dirigiu teatro, inclusive Galileu Galilei do mestre alemão, antes de se dedicar ao cinema. The Prowler foi o terceiro filme dirigido por ele, depois de O Menino dos Cabelos Verde (1948) e O Fugitivo de Santa Maria/The Lawless, dois filmes com forte conteúdo social, contra o racismo e a xenofobia. O Fugitivo de Santa Maria me impressionou muito, quando o vi.
Losey acabaria se fixando na Europa depois que, em 1951, foi denunciado como comunista à comissão das atividades anti-americanas, na caça às bruxas do macarthismo.
Losey é um realizador muito endeusado por pessoas da minha geração e das que vieram imediatamente antes de mim. Eu mesmo não vi muitos de seus filmes elogiadíssimos, e então não posso compartilhar dessa admiração toda. Na época em que vi O Assassinato de Trotsky (1972), não me encantei; e, bem mais recentemente, ao ver O Homem que Veio de Longe/Boom! (1968) e Eva (1962), não gostei nada, de forma alguma. Bem ao contrário: achei os dois bastante ruins.
Fiquei bastante surpreso ao ver, nos créditos iniciais, que o grande Robert Aldrich – este, sim, um realizador que admiro muito – era ainda assistente de direção em 1951. Vi em seguida que este foi um dos últimos filmes em que Aldrich foi assistente. Depois deste aqui, foram apenas dois: Luzes da Ribalta/Limelight, de Charlie Chaplin, e um Abbott & Costello, Piratas da Perna de Pau (ambos de 1952.).
Logo em seguida ele se firmou na direção, a partir de O Último Bravo/Apache e Vera Cruz (ambos de 1954). Já em 1955 ele dirigiria A Morte num Beijo/Kiss me Deadly, um noir respeitadíssimo – que, aliás, está na mesma caixa Film Noir lançada pela Versátil.
Dalton Trumbo não aparece nos créditos: ele estava na lista negra
A loura Evelyn Keyes, ora, ora, vejam só, foi casada com John Huston, entre 1946 e 1950. Foi mulher de muitos maridos – quatro -, assim como Huston foi homem de muitas esposas – cinco. Meu Deus: ela trabalhou em E o Vento Levou… (1939) e em O Pecado Mora ao Lado (1955): neste, foi a esposa do protagonista, interpretado por Tom Ewell, que viaja de férias quando o verão fica insuportável em Nova York. Evelyn Keyes viveu 91 anos, entre 1916 e 2008.
O IMDb informa que a voz do radialista, o marido da protagonista Susan-Evelyn Keyes, é de Dalton Trumbo. Trumbo, grande roteirista, dos melhores do período áureo de Hollywood, esquerdista, estava na lista negra do macarthismo, e por isso seu nome não aparece nos créditos. Ali, o roteiro é creditado a Hugo Butler.
Os créditos do filme ocultam nomes reais. Está lá nos créditos que o filme é produzido por S. P. Eagle – na verdade, o S.P. Eagle é Sam Spiegel, que era dono, junto com John Huston, da produtora Horizon Pictures.
“Um dos sinais de eficiência do diretor é que são somente os dois intérpretes centrais em cena quase o tempo todo e o ritmo não cai. Ao contrário, vai-se acelerando, à medida que penetramos no drama”, diz Gomes de Mattos.
Ouso discordar. O ritmo começa ruim, e só vai piorando. E piora muito – depois que surge o elemento cidade fantasma, aí fica absolutamente ridículo.
À procura de outras opiniões, vejo que Leonard Maltin dá ao filme 2.5 estrelas em 4 e, em uma única frase, exibe spoilers a dar com o pau. Não vou, é, claro, transcrever o que ele diz.
Um P.S. com spoiler. Atenção: spoiler!
Uma leitora do site, fã de filmes clássicos e autora de deliciosos comentários – sempre curtíssimos –, que se assina Senhorita, foi checar no Movie Guide de Leonard Maltin, edição 2013, e viu que ele deu 3.5 estrelas para o o filme – e não 2.5, como eu disse. A mensagem dela está aí abaixo.
Como tenho aqui várias edições do Movie Guide, fui checar também. A edição 2011 dá 2.5 estrelas, assim como consta do CD-ROM Cinemania 97, que inclui o Movie Guide de Leonard Maltin de 1996. O verbete sobre o filme, que contém spoiler, é o seguinte:
“Bom thriller sobre policial Heflin, que se queixa de já ter tido muitos maus bocados na vida. Ele fica obcecado por Keyes, que é casada, a seduz… e planeja matar seu marido.”
Maltin ou algum dos seus colaboradores seguramente reviu o filme depois de 2011, porque o fato é que nas edições mais recentes, a de 2013, que a Senhorita e eu temos, e a de 2015, a última a ser publicada como livro, The Prowler recebe 3.5 estrelas, e um verbete inteiramente diferente:
“Duro, sinuoso filme noir sobre um mau (literalmente) tira (Heflin) que seduz vulnerável mulher casada. Começa com um bang e nunca deixa cair. Grosseiro e totalmente imprevisível. Trabalho de câmara (de Arthur Miller) e direção de arte impressionantes. Roteiro de Dalton Trumbo, que na época estava na lista negra e não apareceu nos créditos, embora ele seja ouvido como a voz do marido de Keyes no rádio.”
Ao reavaliar The Prowler, Leonard Maltin seguramente viu um filme diferente do que eu vi. Ou então aconteceu comigo aquele fenômeno comum: não entrei na sintonia do filme, não entendi nada. Pode ser. Pode perfeitamente ser.
Anotação em março de 2015, com P.S. em maio de 2015
Cúmplice das Sombras/The Prowler
De Joseph Losey, EUA, 1951
Com Van Heflin (Webb Garwood), Evelyn Keyes (Susan Gilvray),
e John Maxwell (Charles ‘Bud’ Crocker), Katharine Warren (Grace Crocker), Emerson Treacy (William Gilvray), Madge Blake (Martha Gilvray), Wheaton Chambers (Dr. William R. James), Sherry Hall (John Gilvray), Louise Lorimer (gerente do motel)
Roteiro Dalton Trumbo (não creditado na época do lançamento, quando a autoria foi atribuída a Hugo Butler)
Baseado em história de Robert Thoeren e Hans Wilhelm
Fotografia Arthur C. Miller
Música Lyn Murray
Montagem Paul Weagherwax
Produção Horizon Pictures. DVD Versátil.
P&B, 92 min.
*
Fui ali no meu “Movie Guide” do Maltin e lá está com 3,5 estrelas. Mas você arrasou (tão bem, como sempre) tanto esse filme que agora eu quero assistir!
Coisa mais estranha: no meu CD-ROM Cinemania, que inclui o Guia do Maltin, está 2.5 estrelas. Fui ao 2011 Movie Guide, o de papel, o suporte físico, o livro propriamente dito, e está 2.5 estrelas. Que edição você tem que dá 3.5 estrelas, Senhorita?
Mas veja, sim, o filme – e depois me diga o que achou.
Um abraço.
Sérgio
Ah, danadinho do Maltin: vejo agora no 2015 Movie Guide que ele dá 3.5. Mudou! Mudou completamente o texto também!
Ele, ou alguém da equipe dele, reviu o filme e mudou o texto e a nota. Fantástico!
Fiz um acréscimo ao texto original contando isso. Obrigado, Senhorita.
O Maltin que fica aqui na cabeceira da minha cama é o Movie Guide de 2013.
Sem dúvida, essa pseudo resenha foi escrita por alguém que não entende nada de cinema, menos ainda do gênero noir. Felizmente, existem Roger Ebert, Leonard Maltin, etc, que nos permitem separar o joio do trigo.
Analogia infeliz e desnecessária entre o personagem de Van Heflin e Lula.