Confiar / Trust

Nota: ★★★½

Confiar/Trust é um belíssimo filme, um drama familiar sério, pesado, inquietante, apavorante. Fala dos perigos aos adolescentes que surgem pela internet, pelas facilidades da troca de mensagens com conhecidos e desconhecidos.

Não que haja intenção de culpar as novas tecnologias pelos perigos. Não é isso, absolutamente. Os perigos sempre existiram: a adolescência em si é um imenso perigo, é o período em que é mais fácil as pessoas se perderem – para as drogas, para os predadores sexuais, para os fanatismos, para a indolência, para a própria angústia de cada um.

O que o filme mostra, com uma clareza cristalina e imenso talento, é como os perigos ficaram ainda mais ameaçadores, com as novas facilidades, as amizades virtuais. Mesmo em famílias aparentemente sem problemas de falta de comunicação entre pais e filhos, famílias bem estruturadas, de pais atentos e carinhosos.

A história que os roteiristas Andy Bellin e Robert Festinger construíram é tão sólida, a interpretação dos atores é tão competente, o ritmo da narrativa é tão envolvente, que eu, que tive a sorte grande de ver minha filha atravessar sem grandes traumas as tempestades da adolescência, fiquei o tempo todo inquieto, aflito, como se a história estivesse para acontecer comigo. E me peguei dizendo para Mary: caramba, um casal sem filhos que vê este filme desiste de tê-los.

É apavorante assim.

O pai da família, Will, é interpretado por Clive Owen – e, bom ator, ele tem aqui uma de suas melhores performances. A mãe, Lynn, é feita por uma boa atriz, Catherine Keener. Mas o brilho maior é da garota Liana Liberato (na foto abaixo), que faz o papel de Annie, a filha do meio do casal, a protagonista da história. É uma revelação extraordinária, essa Liana Liberato.

Uma bela adolescente sudável, que toma vitamina de frutas e corre

Annie-Liana Liberato surge na tela na primeira tomada. Está ouvindo música no iPod e preparando uma vitamina de frutas na cozinha de sua casa. Tem cabelos longos, como a maior parte das adolescentes, um rosto um tanto redondo, belas feições, magníficos olhos azuis.

Enquanto a vemos preparando sua vitamina, vão surgindo na tela, acompanhados daquele barulhinho característico – tlintlin! – mensagens de texto. O primeiro letreiro que aparece é:

Volleygirl13 entra no chat

Várias mensagens vão aparecendo na tela, naquela língua dos chats, que faz lembrar vagamente a linguagem escrita normal. Um dos participantes do papo se assina chRLeeCA. chRLeeCA dá dicas sobre vôlei.

chRLeeCA. Ou seja: Charlie, Califórnia.

Annie toma o copão de vitamina, e sai de casa para correr. É uma casa ampla confortável, o bairro é daqueles de classe média bem de vida. Veremos depois que é Chicago.

Não há créditos iniciais. Apenas o título do filme, Trust, sobre fundo preto, depois que Annie começa a correr – uma forma de fazer o fade out para cortar para a seqüência seguinte.

Na seqüência seguinte, a família toda está reunida: pai, mãe, Annie, Peter (Spencer Curnutt), o irmão mais velho, de uns 17 anos, e Katie (Aislinn DeButch), a mais nova, de uns oito, mais um ou outro parente que o espectador nem vê direito.

É aniversário de 14 anos de Annie, e um dos presentes – dado por Peter, o irmão – é um corpete que parece de seda, negro. Will, o pai, meio se assusta, meio brinca: “Não é muito ousado, não?” (O ousado da legenda é apropriado, mas a palavra em inglês é revealing, revelador.)

O presente de Will fica para o fim. Annie espera um bom presente – e é um laptop Apple poderoso, caro. Ela se deslumbra.

A família tem vida confortável. Will, veremos depois, é um bem sucedido publicitário, ocupa um cargo importante numa boa agência, é muito amigo do chefe Al (Noah Emmerich).

Mais tarde, naquela noite, Will entra no quarto de Annie, que, claro, está diante do laptop novinho. Will pergunta o que ela está fazendo, ela responde que está batendo papo. “Meu amigo Charlie, da Califórnia. Ele está no terceiro ano e joga vôlei.”

Veremos depois que primeiro Charlie dizia ter 15. Depois diz ter 20. Depois, 25. Quando Annie o encontra frente a frente, materialmente, fisicamente, pela primeira vez, descobrirá que ele tem bem mais que 30.

Fazer contato com adolescente é tarefa hercúlea, é como escalar o Aconcágua

Ir do Planalto à praia, atravessando a Serra do Mar, de bicicleta, e depois subir de volta, como faz meu sobrinho Beto, ou correr maratonas até o fim depois dos 60 anos, como faz o Elói, isso é difícil pra cacete. Mas tão difícil quanto escalar o Aconcágua, ou o Everest, é criar sintonia com um adolescente, manter a sintonia. Em ambiente “normal” (com aspas porque nada, em se tratando de adolescente, chega a ser propriamente normal), sem complicações gigantescas, já é uma tarefa hercúlea, ciclópica.

De repente, sem que nem por que, por aparentemente nada, cléc – a conexão, a sintonia se desfaz, se perde. E não há ajuste fino no dial que permita você restabelecer a sintonia, se o adolescente se recusar a isso. Como diz minha amiga Teresa Cristina, eles não vêm com bula, manual de instruções. São pequenos seres frágeis, de equilíbrio precário, pior que o mais fino copo: a qualquer momento podem quebrar, se desfazer em milhares de caquinhos.

Todo mundo sabe disso.

Quando há uma tragédia concreta, então, é o pior dos mundos.

A desconexão completa entre os pais e Annie é mostrada ao espectador com engenho e arte. Clive Owen, Catherine Keener e essa garotinha Liana Liberato nos passam toda a dor, toda a angústia do mundo.

Uma jovem atriz já experiente e em ascensão

O diretor David Schwimmer revela-se competente, talentoso diretor de atores. Tem experiência, vivência para tanto. Nascido em 1966 em Nova York, criado em Los Angeles, aos 22 anos foi um dos fundadores de uma companhia de teatro em Chicago. Trabalhou como ator em 40 filmes e/ou séries de TV. Desde 1998 dirige – fez filmes e séries para a TV. Este Confiar/Trust é seu segundo longa para o cinema.

Liana Liberato nasceu no Texas, em 1995 – estava, portanto, com 15 anos quando interpretou Annie, mas não era uma estreante. Sua estréia em série de TV foi em 2005, aos dez anos de idade. Participou de várias séries; Confiar foi seu primeiro longa-metragem, mas de lá para cá já terminou outro filme (Reféns, de Joel Schumacher, em que trabalha ao lado de Nicolas Cage e Nicole Kidman), participou de outra série de TV e está com três outros títulos em fase de pré ou pós-produção, ainda a serem lançados.

Essa garota me fez lembrar muito outra atriz jovem demais surgida nos Estados Unidos nos últimos, Jennifer Lawrence, que já teve até uma indicação ao Oscar. As duas são até um pouco parecidas – rostos redondos, olhos claros, cabelos longos e lisos. Fazer previsões é algo sempre arriscado; já fiz várias previsões que se provaram o maior papo furado. Mas é impossível deixar de pensar que essa menina Liana Liberato tem um grande futuro.

Confiar é um grande filme. Merece ser visto.

Anotação em março de 2012

Confiar/Trust

De David Schwimmer, EUA, 2010

Com Liana Liberato (Annie), Clive Owen (Will), Catherine Keener (Lynn), Jason Clarke (Doug Tate), Viola Davis (Gail Friedman), Chris Henry Coffey (Charlie / Graham Weston), Spencer Curnutt (Peter), Aislinn DeButch (Katie). Noah Emmerich (Al Hart)

Argumento e roteiro Andy Bellin e Robert Festinger

Fotografia Andrzej Sekula

Música Nathan Larson

Produção Millennium Films, Nu Image, Dark Harbor Stories. Blu-ray e DVD Swen Filmes.

Cor, 106 min

***1/2

14 Comentários para “Confiar / Trust”

  1. Por coincidência vi o filme apenas uns dias atrás. Não achei nada de extraordinário e o enredo me deixou um tanto ou quanto indiferente, provavelmente por nunca ter passado pela experiência de ser pai. De qualquer modo achei um filme demasiadamente focado nos dias de hoje, em que os progenitores são ultra-protectores em relação aos filhos (vejo isso em famílias amigas, da minha geração, que ao contrário de mim constituíram a sua descendência). Caramba, como me sinto feliz em ter vivido a minha adolescência nos anos 60!

    Abraço, Sérgio!

  2. Vou querer ver!
    “Uma bela adolescente sudável, que toma vitamina de frutas e corre” – que ótimo subtítulo! Aliás, este texto está excelente, várias frases primorosas.
    Eu gosto do Clive Owen, fiquei bastante curiosa pra assistir.

  3. Hêhê… Eu sei que você gosta do Clive Owen. E, olha, Jussara, o cara é bom, está sempre bem – mas a interpretação neste filme aqui é especialmente primorosa.
    Grande abraço!

    Caro Rato, eis aí mais uma das nossas discrepâncias. Mas são pequenas. Basicamente, a despeito do tanto mar, tanto mar entre nós, temos em comum um monte de coisas, entre elas a geração, o amor pelos filmes e pelas músicas, e a língua que maltratam tanto e teimamos em cultivar.
    Sérgio

  4. Sérgio,
    Ele é bom ator, bonito e tem sotaque britânico. Não dá pra resistir … hehehe
    Abraços!

  5. Vi este filme na tarde de hoje,23 maio.Olha,
    como dizia Vinicius de Moraes, “são demais os perigos desta vida”. Ela, não querer admitir que houve sim, um abuso, devido aos pensamentos bobos da cabecinha dela, por favor,não existe mais toda essa inocencia numa menina de 15 anos, nos dias de hoje. Algumas já fazem coisas que duvidamos. Em um momento, ela … não, se continuar vou fazer spoiler.
    Mas, com certeza, um grande filme. Gostei muito. E, essa menina Liana, deu show, que atuação !! Muito bonita e com certeza, Sergio
    tem tudo para vir a ser uma excelente atriz.

  6. Gostei. Muito bom mesmo, apesar de um pouco triste e carregado, já que o assunto não é fácil.

    Meu comentário vai conter spoiler, não consigo comentar sem falar das partes principais, não tenho esse seu dom, Sérgio.

    É complicado ser adolescente. Ela tinha boa educação, alguns “códigos” que os pais haviam ensinado, tinha conhecimento e etc, mas estava naquela fase pela qual todo adolescente passa: de baixa auto-estima, de pais que não dão atenção suficiente, de achar os meninos das classes adiantadas mais interessantes.

    O estuprador (é isso que ele é, não tem outro nome) foi ardiloso, ele primeiro criou uma conexão com ela, fez com que ela confiasse nele, pra depois lançar a isca. E agiu com toda psicologia, jogando o peso nas costas dela, falando que achava que ela teria maturidade pra lidar com a diferença de idade entre eles.

    Eu discordo em parte do Ivan; podem até não existir mais meninas de 15 anos inocentes, mas não deixam de ser meninas. Eu tenho duas primas de segundo grau com essa idade. Elas já têm corpo de mulher, querem se vestir como tal para deixar de ser criança, mas a cabeça não acompanha. E por mais que já “saibam” sobre sexo, uma coisa é saber na teoria, a prática é diferente. Eu acho 15 anos cedo demais para se iniciar a vida sexual. Não há maturidade emocional.

    Acredito que o que a fez achar que ele não abusou dela foi mais ou menos o que acontece quando a pessoa é sequestrada e cria laços e vínculo afetivo com o algoz: a Síndrome de Estocolmo.

    Não eram pensamentos bobos, ela é uma menina de 15 anos iludida. E toda vítima de abuso/violência sexual tende a achar que a culpa foi dela. Mas não é, a culpa nunca é da vítima. O filme toca nesse assunto quando o Will conta para o amigo o que havia ocorrido. Ele, a princípio, dá uma de consternado, mas depois que o Will fala que ela e o abusador haviam se conhecido num chat, ele dá a entender que não foi tão grave assim; ficou implícito que na cabeça dele não havia sido abuso, só faltou falar que não havia ocorrido estupro. Esse amigo, embora tenha aparecido pouco, na minha opinião é um pulha.

    Penso que o maior medo de qualquer mulher, desde que se entende por gente, é o de ser violentada. Não é fácil ser mulher, andar sozinha, sair sozinha, viajar sozinha sem se preocupar.
    O filme abordou o assunto da violência sexual muito bem. O perigo está bem perto, na pele de pessoas aparentemente “do bem”. E se tem uma coisa que abomino é homem muito mais velho dando em cima de meninas. Acho abusivo, nojento.
    Só não entendi a postura da mãe dela, colocando panos quentes na fúria do marido. Eu acho compreensiva a atitude dele, posso até discordar, mas entendo perfeitamente.

  7. Jussara, querida, você é a spoiler pura! Hêhê…
    Discordo de você em um ponto. Não acho que mãe – a personagem da Catherine Keener – tentou pôr panos quentes. Ela queria tocar a vida, seguir em frente. Não queria que o marido ficasse absolutamente obcecado, só olhando para o passado, só querendo vingança.
    Mas pode ser que sua percepção seja mais próxima do que o filme mostra.
    Um abraço.
    Sérgio

  8. Sérgio,
    Sou spoiler total. hehehe Não consigo comentar sem tocar no assunto que é o cerne do filme. O tema já é tabu, se a gente não comentar fica pior.

    Talvez você esteja certo em relação à mãe dela, só que o passado não estava tão distante assim, não vi essa passagem de tempo. Então acho compreensível que ele ainda quisesse vingança; até porque ele se sentia culpado. Ela estava mais preocupada com o bem-estar da filha, e não deixava de ter razão. Mas às vezes parecia que ela queria tapar o sol com a peneira, como quando ele furtou as transcrições das conversas entre a menina e o cara; ela falou que não queria ler, que não queria saber.

    Ontem eu estava mais pra lá do que pra cá, então vou só fazer umas correções: eu quis dizer que o filme mostra muito bem o perigo do abuso/violência sexual que ronda as adolescentes, mas que toda mulher está sujeita a isso.
    E sobre a fase em que ela estava, de ter adoração pelos meninos mais velhos: isso colaborou pra que ela se sentisse mais sozinha, já que eles não dão bola para meninas da idade dela, que ainda estão no ginásio. E o outro lá dava toda a moral do mundo pra ela, pela internet.

  9. Eitcha nóis!!! Qtos comments!!! Realmente, esse assunto dá pano pra manga. E acabei de ver CONFIAR e achei bem complicado o tema, bem nebuloso, tem q ter mto cuidado com o que vai se dizer numa hr dessas, mas blz, como não sou mineira, lá vai o meu comment: pai da menina colocou a merda no ventilador, depois de ter passado daquela situação tenebrosa com o estuprador, pq humilhá-la daquela maneira? Pq não esperar q ela fale alguma coisa? mas enfim, relações humanas são sempre difíceis, ainda mais se tratando de adolescente.

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