Nota:
O filme que resultou do segundo encontro nas telas de Jodie Foster e Mel Gibson, esses dois artistas importantes, marcantes, de personalidades fortes, de grande talento, é um difícil equilíbrio sobre o fio da navalha.
Para se gostar deste The Beaver, no Brasil Um Novo Despertar, é absolutamente necessário que o espectador entre em sintonia com o filme – ou, melhor ainda, entre na sintonia do filme. E não é muito fácil sintonizá-lo. É como aquelas emissoras de rádio que você precisa acertar direitinho no dial, ou dá muita interferência.
Tudo bem: poderíamos argumentar que com tudo na vida é assim – é preciso haver sintonia. Tudo depende do momento, de uma infinidade de fatores. Muitas vezes a gente simplesmente não gosta de um filme, mesmo sabendo que ele é bom, tem grandes qualidades. E vice-versa – às vezes gosto muito de um filme que a rigor, sei bem, não é grande, sequer muito bom.
Mas com The Beaver essa coisa da sintonia me parece que é mais fundamental do que na maior parte das vezes.
Para seu terceiro filme como diretora num espaço de 20 anos, essa fascinante moça prodígio escolheu temas bastante complexos – um homem de meia-idade que entra em profunda depressão, uma família abalada, à beira da desestruturação total, um filho mais velho extremamente problemático que se envolve com uma jovem também longe de um equilíbrio emocional. Todas elas pessoas de grande inteligência – e uma imensa incapacidade para funcionar dentro de seu meio social.
Porém, mais ainda do que enfrentar temas complexos, Jodie Foster escolheu construir uma narrativa propositadamente na corda bamba, no fio da navalha entre o drama pesado e a comédia.
Estamos com menos de dez minutos de filme (exatos nove) quando o protagonista, Walter Black – o personagem de Mel Gibson –, no fundo do poço de uma depressão arrasadora, bêbado feito um gambá, tenta o suicídio, fracassa, e está para fazer a segunda tentativa quando um boneco de pano em forma de castor começa a conversar com ele.
Um castor – o beaver do título original. Um castor de pano, com dois dentões, um embaixo, um em cima. Por um acaso, por uma dessas coisas fortuitas, sem motivo, sem explicação, Walter havia encontrado um castor de pano numa lata de lixo. Pegou-o, enfiou-o na mão direita, como um fantoche.
E, no momento em que Walter está para pular do parapeito da varanda de um décimo andar, o castor fala com ele.
Não vai aqui propriamente um spoiler: a seqüência acontece, repito, a partir de exatos nove minutos de filme.
Uma família em frangalhos, um homem de meia idade que vira o boneco de um castor de pano
Walter Black está se equilibrando no parapeito. O filme de Jodie Foster vai se equilibrar na corda-bamba, no fio da navalha, o tempo todo.
Os Black – um narrador nos informa desde a abertura – já foram uma família feliz. Num determinado momento, porém, Walter entrou em depressão. Havia herdado do pai uma indústria de brinquedos, era o presidente da empresa – e num dado ponto da vida, entrou em depressão. A empresa passou a ficar mal das pernas. Meredith, a mulher de Walter (interpretada pela própria Jodie Foster), tentou ajudar o marido, segurar as pontas – mas acabou se enfiando no seu próprio trabalho para não pensar no resto das coisas.
Henry, o filho mais novo do casal (Riley Thomas Stewart), de uns seis, sete anos, virou o que os professoram chamam de solitário; não tem amigo algum, é vítima de bullying na escola. O mais velho, Porter (Anton Yelchin), adolescente aí de uns 17 anos, inteligente, procurado pelos colegas para redigir trabalhos da escola, morre de medo de ficar como o pai; coleciona características de Walter para se lembrar de não desenvolver nenhuma delas – tem, quando a ação começa, 49 post-its na parede do quarto, com 49 características das quais fugir.
E, nos momentos de tristeza, Porter bate a cabeça na parede do seu quarto. Bate tanto a cabeça na parede que já fez um início de buraco nela.
Depois que o castor fala com ele, Walter não o retira mais da mão. Para absolutamente nada. Passa a conversar com as pessoas, a interagir com o mundo, através do castor. Passa a ser um boneco de um castor de pano. Quem manda nele é o castor. O castor é o ventríloquo de Walter.
O tempo todo na corda bamba – e escorregar na corda bamba é a coisa mais fácil que há
De um lado da corda bamba, do fio da navalha, o drama; do outro, a comédia. Jodie Foster vai ali na corda bamba, no fio da navalha – correndo o risco de o caro espectador achar que o filme é simplesmente bobo.
Houve momentos em que achei que o filme estava bobo, ou era bobo. Que Jodie Foster, talento imenso, artista admirável, havia escorregado – afinal, escorregar da corda bamba é a coisa mais fácil que há.
Ela estava cansada de saber do risco.
Mel Gibson também, é claro.
No breve making of que acompanha o filme, Mel Gibson diz: – “É sombrio, de muitas maneiras, e, de outras maneiras, é divertido. E o truque, eu acho, foi que Jodie conseguiu achar aquela fina linha (entre os dois pontos), estilisticamente”.
E, logo em seguida, a própria Jodie Foster diz, sorridente: – “Há muitas decisões malucas a serem tomadas em um filme assim, quanto ao tom. Você pode fazer uma comédia do começo ao fim, ou então uma tragédia muito, muito sombria. Ou dar ênfase ao absurdo. Estávamos constantemente decidindo entre esses três tons para saber exatamente como o tom deveria mudar.”
Jodie Foster inventou para si mesma a corda bamba, o fio da navalha em que você pode cair não apenas para a esquerda ou para a direita, mas também num terceiro lado.
O problema dos garotos prodígios é que em geral o prodígio some; Jodie é diferente
Jodie Foster foi uma garota prodígio. Tinha três anos (nasceu em 1962, em Los Angeles, filha de pais que já haviam se divorciado) quando começou a aparecer em comerciais para ajudar no sustento da família. Tinha cinco quando teve seu primeiro papel na televisão. Aos 12, foi dirigida por outro poço de talento, Martin Scorsese, em Alice Não Mora Mais Aqui, de 1974. Aos 14 fez o impressionante papel da prostituta mirim em Taxi Driver, de novo dirigida por Scorsese. Naquele mesmo ano, 1976, fez um dos principais papéis em Bugsy Malone – Quando as Metralhadoras Cospem, uma loucura do grande diretor inglês Alan Parker, um filme sobre gângsteres estrelado apenas por atores juvenis.
O problema dos garotos prodígios é que, muitas vezes, muitíssimas vezes, eles deixam de ser prodigiosos quando crescem.
Jodie Foster jamais deixou de ser um prodígio.
Já era uma veterana quando ganhou o primeiro Oscar, por Acusados, em 1988. Sua primeira indicação tinha sido por Taxi Driver. Ganharia outro Oscar por O Silêncio dos Inocentes em 1991, e outra indicação por Nell, em 1994. Coleciona 39 prêmios e outras 20 indicações.
Em 2011, o ano em que este The Beaver foi lançado, estava com 49 anos; sua filmografia como atriz tinha 76 títulos. Tem sabido envelhecer – está belíssima, sem qualquer marca de plástica; se fez alguma, fez muito bem feita – e tem diminuído muito o ritmo, nas duas últimas décadas. De 2000 para cá, trabalhou como atriz em apenas oito filmes, sendo que em três deles fez apenas participações especiais. (Um deles é Eterno Amor/ Un Long Dimanche de Fiançailles, o primeiro filme de Jean-Pierre Jeunet depois do estrondoso sucesso de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Os franceses adoram Jodí Fostér; além de tudo, Jodí Fostér fala francês como pouquíssimos americanos conseguem.)
Como realizadora, é ainda mais restrita, comedida – em termos numéricos, não em ambição artística. Estreou como diretora no auge do estrelato, em 1991, com uma história – qualquer semelhança não é mera coincidência – de uma criança superdotada, Mentes Que Brilham/Little Man Tate. Reservou para si mesma, talvez com ironia, o papel da mãe do garoto prodígio – uma mulher humilde, de pouca instrução.
Quatro anos depois, em 1995, faria seu segundo filme como realizadora, Feriados em Família/Home for the Holidays. É um filme que, entendo hoje (e quero muito revê-lo) é uma daquelas pequenas pérolas, que parecem um tanto simples, um tanto despretensiosos, e são um show de sensibilidade.
Demorou mais de 15 anos para voltar a dirigir. Mais uma vez, filma uma história de família, de vida em família – talvez o tema mais importante que haja para se falar numa obra de arte.
Escolheu uma família complicada, difícil, uma história em que é preciso tomar cuidado a cada momento para acertar o tom, ou então tudo desanda.
Mel Gibson virou saco de pancada da imprensa, mas continua um grande ator
O primeiro filme que Jodie Foster e Mel Gibson fizeram juntos foi pura diversão. Maverick – uma nova adaptação da história do herói da série de TV sobre o inveterado jogador de cartas almofadinha do faroeste –, feito em 1994, é uma farra, uma brincadeira, um delicioso divertissement. Deve ter sido um gostoso descanso, um período de férias bem remuneradas tanto para ela quanto para ele. Tornaram-se amigos, e mantiveram a amizade desde então.
Mel Gibson, nova-iorquino de nascimento, criado na Austrália, onde começou a carreira, é só seis anos mais velho que Jodie Foster: nasceu em 1956. Em 1994, o ano de Maverick, já era, como ela, um astro gigantesco, dos maiores do cinema mundial, e tinha também estreado na direção, no ano anterior, com O Homem Sem Face. Em 1995 faria a superprodução Coração Valente. Me lembro de que, na época de Maverick, a revista Premiere americana publicou uma matéria de capa com os dois – atores consagradíssimos, grandes astros, que tinham passado a dirigir e seguramente teriam um futuro dourado na carreira.
A previsão era quase exata. Jodie Foster, na minha opinião, acabou aceitando papéis em filmes duvidosos, para dizer o menos, como Nell, O Quarto do Pânico e Valente, mas se manteve como uma grande estrela. Já Mel Gibson se meteu em uma gigantesca polêmica por causa de seu A Paixão de Cristo, de 2004, e, por questões comportamentais, virou saco de pancada da imprensa.
Com 2 Oscars, 28 prêmios no total e outras 18 indicações, 48 filmes no currículo, Mel Gibson continua sendo um extraordinário ator – como demonstrou em O Fim da Escuridão, de 2010, e demonstra mais uma vez fazendo esse pobre Walter Black, imerso numa depressão abissal, sem fim.
O talento de Jennifer Lawrence fez crescer a personagem que ela interpreta
Além das excelentes interpretações de Mel Gibson e Jodie Foster, o filme tem ainda os jovens talentos de Anton Yelchin, como Porter, o problemático filho adolescente, e de Jennifer Lawrence como Norah, a garota por quem ele se apaixona (os dois na foto abaixo).
Norah é um personagem complexo, difícil. A própria Jodie Foster admite que o roteiro – feito por um iniciante, Kyle Killen – ainda estava inconcluso quando as filmagens começaram, e que Norah foi o personagem que mais exigiu reparos, correções. Norah é uma garota linda, daquele tipo escolhido para ser a líder de torcida na escola; como é bela demais, ninguém dá muito para o que ela pensa. É uma moça reprimida pela mãe durona. Tem um grande talento que não pode demonstrar porque demonstrá-lo é contravenção. E esconde um forte trauma.
Fica claro, pelo que Jodie Foster diz no making of, que o personagem de Norah cresceu porque, por felicidade, ela teve Jennifer Lawrence para interpretar o papel.
Jennifer Lawrence é uma coisa séria demais. Eu diria que ela hoje é, ao lado de Saoirse Ronan, a maior promessa do cinema em língua inglesa. (Embora, a rigor, tanto Saoirse, nascida em 1994, quanto Jennifer, quatro anos mais velha, já não sejam mais promessas – são revelações já testadas e comprovadas.)
O filme foi um gigantesco fracasso de bilheteria nos EUA
Ter escolhido Mel Gibson, um sujeito hoje marcado pelas polêmicas e pelos ataques na imprensa, atualmente nenhuma garantia de sucesso nas bilheterias, muito antes ao contrário, para o papel principal em seu terceiro filme como diretora é uma gigantesca prova do bom caráter de Jodie Foster – e da sua coragem, sua audácia.
Ela seguramente não duvidava que ele lhe daria uma interpretação extraordinária; mas também não poderia duvidar que era um imenso risco em termos comerciais.
Os números falam tudo. O filme custou US$ 21 milhões; para dar lucro, teria que render no mínimo três vezes isso. Foi um fracasso nos Estados Unidos: estreou no início de maio de 2011, e até o final de outubro tinha rendido menos de US$ 1 milhão no maior mercado consumidor do mundo. Fora dos Estados Unidos, rendeu R$ 5,400 milhões, no total US$ 6,370 milhões. Baita prejuízo.
Problema não. Até porque parte do custo foi bancado por uma empresa dos Emirados Árabes. Lá não falta dinheiro.
Sim, um fracasso comercial. Mas e do ponto de vista que importa, o da qualidade?
Aí depende de cada espectador. Depende da sintonia entre cada um e o filme.
É fácil não conseguir sintonia, não entrar no clima, e, com 20 minutos, meia hora, dizer: ah, que troço bobo.
Como já disse, teve momentos em que isso me passou pela cabeça.
Mas um filme com quatro atores de talento em grandes interpretações não pode ser descartado tão facilmente.
Tiro meu chapéu para Anton Yelchin, para Jennifer Lawrence, para Mel Gibson e, em especial, para Jodie Foster. Há filmes demais pra gente ver na vida, mas quero rever este terceiro filme dirigido por Jodie Foster. E tenho a forte impressão, quase a certeza, de que vou gostar ainda mais do que gostei da primeira vez.
Anotação em novembro de 2011
Um Novo Despertar/The Beaver
De Jodie Foster, EUA-Emirados Árabes Unidos, 2010.
Com Mel Gibson (Walter Black), Jodie Foster (Meredith Black), Anton Yelchin (Porter Black), Riley Thomas Stewart (Henry Black), Jennifer Lawrence (Norah), Cherry Jones (a vice-presidente)
Roteiro Kyle Killen
Fotografia Hagen Bogdanski
Música Marcelo Zarvos
Produção Summit Entertainment, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ, Anonymous Content. Blu-ray e DVD Paris Filmes.
Cor, 91 min
Título em Portugal: O Castor
***
Eu também, às vezes, gosto muito de filmes que não são maravilhosos nem nada, pois é como você falou: vai do momento e até do emocional.
Fiquei querendo ver esse filme, apesar dessa parte estranha com o castor. Vamos ver se consigo me afinar com ele. A voz do Mel Gibson muda quando o castor fala? Se mudar acho que não vou ter paciência. De todo modo, deve ter um propósito isso, não?