Toda Forma de Amor, no original Beginners, iniciantes, é um filme pessoal – e esta talvez seja a maior de suas qualidades, que não são poucas. É uma maravilha poder existir uma obra pessoal no cinema feito hoje nos Estados Unidos.
Não que seja um caso único. Para começo de conversa, não existe – ao contrário do que muita gente diz – uma entidade monolítica chamada o cinema americano. Sim, existe o cinemão comercial de Hollywood, dos grandes estúdios, bastante parecido, muitas vezes, com o cinemão comercial feito em outras partes do mundo, mas nem mesmo ele é uma entidade monolítica. Há espaço para diversos tipos de filmes, dentro do cinemão comercial de Hollywood.
E existe também, graças ao bom Deus, o cinema independente, também multifacetado, com obras autorais. Estão aí Woody Allen, Edward Burns e tantos outros a provar isso.
Mas este Toda Forma de Amor é ainda mais pessoal que a maioria das obras pessoais do cinema independente. É quase, é praticamente a autobiografia de seu autor, roteirista e diretor, Mike Mills. Alguns dos pontos centrais da história mostrada no filme são a reconstituição do que aconteceu na vida dele – a tal ponto que, no making of do filme, o ator que interpreta o protagonista, o infatigável escocês Ewan McGregor, brinca que não fui muito difícil fazer o papel de Oliver Fields, porque Oliver Fields é Mike Mills – e então, para fazer uma determinada cena, bastava que ele, McGregor, perguntasse a seu diretor: “o que foi que você sentiu nesse momento aqui?”
Começa com o triste ritual que se segue a uma morte na família
O filme abre com Oliver, um sujeito aí de 30 e muitos anos, quase 40, arrumando uma casa cujo dono obviamente havia morrido pouco tempo antes. Mexe no armário de roupas, examina livros, papéis. Pega um monte de remédios num armário do banheiro, joga-os na privada. Leva grandes sacos plásticos cheios de coisas que não serão mais usadas para o lado de fora da casa, onde há uma grande pilha de sacos plásticos a serem recolhidos pelos caminhões de lixo. Nessa tomada externa dá para perceber que a casa é de rico, e se situa no meio de colinas – Los Angeles, inegavelmente.
Oliver conversa com Arthur, o cachorro do morto. Explica que agora Arthur vai viver com ele. Leva o cachorro para sua própria casa, e lá apresenta a Arthur os diversos aposentos.
Depois de alguns minutos com esse duro, pesado, triste ritual que todos temos que enfrentar após uma perda, a voz em off de Oliver-Ewan McGregor faz uma apresentação para os espectadores:
– “Estamos em 2003. O sol é assim, as estrelas, a natureza (na tela vêem-se fotos do sol, das estrelas, de uma área verde). Este é o presidente (foto de um George W. Bush com aquele sorriso de idiota dele). E este é o sol em 1955. E as estrelas, a natureza, carros, telefones, filmes, e o presidente (uma imagem de Eisenhower, Ike, o presidente em 1955). Os bichos de estimação eram assim. Estes são fogos de artifício. Fumar era assim. (Fotos de cada uma das coisas referidas vão aparecendo na tela.) Era assim quando as pessoas se beijavam. Quando estavam felizes. Quando estavam tristes. Meus pais se casaram em 1955. Ele era diretor de museu e ela consertava coisas antigas. Tiveram um filho, e ficaram casados por 44 anos, até que ela morreu na cama deles, após quatro meses de câncer, comer rabanada todos os dias, ver Teletubbies todos os dias, confundir canudos brancos com cigarros e visualizar toda sua vida mentalmente.”
Diversas fotos passam pela tela, rapidamente. A voz em off prossegue:
– “Seis meses depois, meu pai me disse que era gay. Tinha acabado de fazer 75 anos. Sempre me lembro que ele estava com um suéter roxo quando me contou, mas na verdade ele vestia um robe.”
Vemos Christopher Plummer, primeiro de suéter roxo, depois de robe, dizendo: – “I’m gay”. E depois acrescentando que não quer apenas dizer isso teoricamente, mas quer fazer algo a respeito. Quer passar da teoria à prática, aos 75 anos.
– “Ele mudou todo o seu guarda-roupa. Arrumou um namorado, Andy, um preparador físico que também estudava para obter uma licença para trabalhar com fogos de artifício.
Vemos Hal, o personagem de Christopher Plummer, junto com um homem aí de uns 40 e tantos anos, Andy, interpretado por Goran Visnjic (na foto abaixo), os dois sorridentes, alegres, gays.
– “E, quatro anos depois que ele saiu do armário, ele morreu nesta sala.”
Uma nítida influência do cinema francês dos anos 60
É uma bela abertura de filme. Triste, dura, dolorosa – está-se falando de perdas –, mas bela, bem feita, bem sacada, inteligente, com belo texto, belas imagens.
Esses fatos aconteceram na vida real com o autor e diretor Mike Mills.
No making of do filme (é um tanto fundamental ver o making of, depois de ver este Beginners), Mike Mills mostra uma alta pilha de páginas impressas com texto escrito em computador. A pilha, explica ele, é apenas uma pequena parte do roteiro no qual ele trabalhou durante muito tempo, reescrevendo, reescrevendo, reescrevendo.
Apesar de jovem (nasceu em Berkeley, Califórnia, em 1966, e estava portanto com 44 anos em 2010, quando lançou seu filme), Mike Mills demonstra que é um cinéfilo inveterado. Dá para dizer, com toda segurança, que ele viu muitos filmes franceses dos anos 60, que usavam e abusavam desse recurso de mostrar diversas tomadas semelhantes, como as três ou quatro tomadas em que Christopher Plummer diz “I’m gay” com diferentes entonações, com diferentes roupas.
Os franceses – Godard fazia isso demais, Agnès Varda, belga de nascimento mas francesa na profissão, também fez – faziam isso para mostrar que seus filmes eram filmes, e não o retrato da vida real; que era como se os atores estivessem experimentando qual a melhor forma de dizer suas frases.
Mike Mills usa esse recurso diversas vezes ao longo de seu filme – como para mostrar que Oliver, o protagonista e narrador, não se lembrava exatamente de como se deu na verdade a cena.
Ao longo dos 105 minutos de seu filme, Mills alterna cenas do passado e do presente. O passado longínquo – Oliver criança, vendo sua mãe e seu pai se beijarem de leve quando o pai saía para trabalhar; ele criança conversando com a mãe, Georgia (Mary Page Keller), uma mulher inteligente e triste. O passado mais recente – Hal, o pai, assumindo a homossexualidade, namorando Andy, ficando doente com um câncer que se alastrava rapidamente. E o presente – meses após a morte do pai, Oliver encontra, numa festa a fantasia, uma mulher de sonho, Anna, uma jovem francesa, atriz, bela de doer. Anna é interpretada por Mélanie Laurent, esse furacão, linda, boa atriz, 13 prêmios, tão jovem (nasceu em 1983!) e já com experiência na direção, com disco gravado como cantora e compositora.
Um filme feito com mais talento que dinheiro, com a sorte de ter três grandes atores
Às vezes tive a impressão, enquanto via o filme, que Mike Mills exagerou um pouquinho ao burilar seu roteiro. Que burilou demais da conta, que passou do ponto, e caiu naquela armadilha de fazer fogos de artifício demais na narrativa. O que, no caso específico, é um pleonasmo, porque, como Andy mexe com fogos de artifício, há fogos de artifício literalmente, na tela, da mesma forma que no sentido figurado, de firulas, criativóis. Mas isso é bobagem, é idiossincrasia minha.
É um belo filme, um belo roteiro, tudo feito de forma extremamente pessoal.
Pessoal, independente, feito com liberdade, com mais talento que dinheiro – o filme custou US$ 3,2 milhões, uma merrequinha para os custos americanos.
Apesar do orçamento relativamente baixo, Mills conseguiu levar para seu projeto três atores famosos, importantes, marcantes, e ótimos de serviço. De gerações diferentes – o que é ainda mais fascinante. Mélanie Laurent, perto dos 30 anos, está explodindo como os fogos de artifício de Andy, o namorado de Hal. Ewan McGregor, na faixa dos 40, é um grande ator, consagrado, respeitado. E Christopher Plummer…
Christopher Plummer, de quem a gente se lembra como um tanto canastrão no papel do capitão Von Trapp em A Noviça Rebelde/The Sound of Music, de 1965, virou um grande ator depois de maduro. Teve, por exemplo, uma atuação excepcional como um mito da TV americana em O Informante/The Insider, de 1999, e fez um ótimo Liev Tolstói em A Última Estação, ambos de 2009.
Por seu brilhante desempenho neste Beginners, levou o Oscar de melhor ator coadjuvante, e entrou para a história como o ator mais velho a conquistar o prêmio – estava com 82 anos.
Barato, pessoal – e ganhou Oscar, foi sucesso de público e crítica
E aí é uma bela surpresa ver que um filme personalíssimo, independente, feito com orçamento baixo, de repente faz sucesso, e tem amplo reconhecimento da crítica. Rendeu US$ 14 milhões – pouco no número absoluto, mas tremendo sucesso de bilheteria se comparado ao custo de US$ 3,2 milhões.
Além do Oscar para Christopher Plummer, Beginners levou outros 23 prêmios, fora 13 outras indicações.
Houve um momento, enquanto víamos o filme, em que Mary temeu que ele virasse um panfleto pró-homo, tipo homo é melhor, homo é que é bom. O temor dela passou rapidamente. Não é um panfleto pró-homo, anti-hétero – é, como a canção “Paula e Bebeto”, de Caetano e Milton, como o feliz título brasileiro, um panfleto pró qualquer maneira de amor, que qualquer amor vale a pena.
É um filme que mostra que somos todos beginners, iniciantes – seja a idade qual for, os 30 da bela Anna, os 40 do triste, angustiado Oliver, os quase 80 do renascido Hal.
Beleza de sucesso merecido.
Anotação em março de 2012
Toda Forma de Amor/Beginners
De Mike Mills, EUA, 2010
Com Ewan McGregor (Oliver Fields), Christopher Plummer (Hal Fields), Mélanie Laurent (Anna), Goran Visnjic (Andy), Kai Lennox (Elliot), Mary Page Keller (Georgia)
Argumento e roteiro Mike Mills
Fotografia Kasper Tuxen
Música Roger Neill, David Palmer e Brian Reitzell
Produção Olympus Pictures, Parts and Labor,
Northwood Productions. DVD Universal
Cor, 105 min
***
Hummm.. Sérgio. Nem sei como começar este post. Achei o começo do filme bem bacaninha, boas sacadas, boas idéias, mas achei insosso o namoro do Ewan com a mina. Achei meio artificial demais, o diretor errou na dose de filmar do jeito “olha como eu sou cool!!!” demais, vc não acha? No fim das contas, acho que quem merecia o Oscar era o velhinho sueco de Tão Forte, Tão Perto ou o Kenneth Braghnaah de 7 Dias com Marilyn.
ah, outra coisa tbm: achei o Toda Forma de Amar mórbido demais, mania de americano tbm.
Sérgio, adoro filmes sobre as várias possibilidades de recomeços que temos na vida e a forma como lidamos com os recomeços do outro, do próximo. Achei Toda Forma de Amor melancólico sem ser deprimente, alegre sem ser hilário. Gostei dos personagens de Oliver e Anna, porque dão aquela impressão desejarem muito ter um relacionamento, mas também desejam muito não estar em um deles que é típico de quem passou dos trinta. Mas não senti a velha química entre Ewan McGregor e Mélanie Laurent. Enfim, é um filme sobre câncer, luto, infelicidade no casamento, mas que não consegue ser baixo astral. E a trilha sonora? Só o que há de melhor entre o Black Music, Blues e Soul. Finalmente, adorei o cachorrinho expressão seus pensamentos “humanos” através das legendas. Delícia de filme!
Vi este filme na quarta, dia 24 deste mes.
Gostei bastante. Um grande filme.
O Christopher arrasou.Com certeza desta vez, um título perfeito em portugues, tudo a ver com o filme.
Pessôas machucadas pela vida reaprendendo a viver, buscando a felicidade.
Posso estar enganado mas não vi química no casal Oliver/Anna. E,assim como a Claudia, o namoro deles não convence.
Também gostei do Arthur, muito lindo.
” Eu entendo 150 palavras mas não falo “.
Um abraço !!
Não consegui ver graça nesse filme, até que tentei, mas ele não me pegou. Como bem disse a Claudia, ele tem boas sacadas e boas idéias, mas faltou um algo mais. A mim pareceu mais um filme metido a besta, e o diretor exagerou ao querer ser super cool. Foi dose aguentar em off a voz fraquinha do Ewan McGregor; e como todos que comentaram achei que o casal não teve liga. A moça é bonita e boa atriz (sucumbiu ao padrão de Hollywood e fez plástica no nariz), o Ewan também é bonito e bom ator, mas os dois são insossos, não têm sexy appeal. Casais com mais de 30 se comportando como adolescentes: boring. E qual a necessidade de sair pichando muros?
Ele não é um panfleto pró-homo, mas várias vezes deu a parecer que seria.
Geralmente os cachorros do filme são super legais, como todo cachorro, mas nem o Arthur conseguiu fazer com que eu simpatizasse mais com o filme, mas o amor e cuidado do personagem do Ewan por ele era fofo.
PS: Christopher Plummer até podia estar um pouco canastrão em A Noviça Rebelde, mas era bonitão. ;D