Ardil 22 / Catch-22


Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: Ardil 22 é um panfletaço contra a guerra, contra as guerras, todas elas, qualquer uma – talvez seja um dos mais violentos de tantos panfletos contra a guerra que o cinema já fez. Usa, como antídoto contra a insanidade que é a guerra, a própria essência dela: a insanidade, a loucura, a absoluta, completa falta de sentido, de lógica, de razão.

A história se passa durante a Segunda Guerra Mundial, e envolve um grupo de oficiais da aviação americana, numa ilha do Mediterrâneo, perto da Itália – mas o filme mirava na guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos estavam atolados até o pescoço quando o filme foi feito, em 1970.

O diretor Mike Nichols vinha de dois filmes elogiados e de sucesso, Quem Tem Medo de Virgínia Wolf?, de 1966, e A Primeira Noite de um Homem/The Graduate, de 1967. Aqui, escolheu a sátira – um tom narrativo difícil, em que o autor anda sempre no fio da navalha, correndo o risco de errar a mão.

A base da história é a seguinte: qualquer pessoa que não deseje lutar numa guerra é sã, não está louca, e portanto está apta a lutar.

A situação é apresentada bem no início do filme, num diálogo entre o médico do destacamento, o dr. Daneeka (Jack Gilford), e o capitão Yossarian (interpretado com brilho por Alan Arkin, esse grande ator). Yossarian quer que o médico o dispense, o mande de volta para casa.

Dr. Daneeka: – “Há um catch”.

Catch, entre diversas outras coisas, é pegadinha, engodo, impedimento – ou ardil, como se escolheu para o título brasileiro.  

Yossarian: – “Um ardil?”

Dr. Daneeka: – “Isso. Ardil 22. Qualquer um que queira sair do combate não está louco de verdade, portanto não posso dispensá-lo.”

Yossarian: – “Deixe eu ver se entendi direito. Para ser dispensado, eu tenho que estar louco. E eu preciso estar louco para continuar voando. Mas se eu pedir para ser dispensando, significa que não estou mais louco, e tenho que continuar voando.”

Dr. Daneeka: – “É isso. É o ardil 22.”

Yossarian: – “Bom ardil, esse ardil 22.”

Dr. Daneeka: – “O melhor que há.”

         A lógica da falta de lógica e a lógicas dos delírios, alucinações

Toda a narrativa do filme seguirá essa lógica louca, a lógica da guerra, da falta de lógica. E vai misturar a lógica louca com a lógica dos pesadelos, dos delírios, alucinações de um Yossarian gravemente ferido.

Há situações engraçadas, tragicamente engraçadas. Há diálogos maravilhosos, nessa exposição crua do loucura. Há tomadas de beleza extraordinária. É um filme profundamente antimilitarista, com uma violência absurda. Mas – foi o que Mary e eu sentimos – ele acaba se estendendo demais, e caindo dentro do próprio emaranhado de situações loucas e delirantes.

Foi impossível não comparar com outro filme da mesma época, que também optou pelo tom de sátira ao criticar, de forma igualmente violenta, o envolvimento americano no Vietnã – M.A.S.H., de Robert Altman, feito dois anos depois, em 1972. Nos pareceu que M.A.S.H. é mais bem resolvido, mais redondo.

Não que seja um filme ruim. De forma alguma. É um filme importante, corajoso, com diversas e grandes qualidades. É quase um excelente filme. O problema é este: o quase.

O elenco é excepcional, e os tipos criados pelo escritor Joseph Heller, autor da novela, e desenvolvidos no roteiro de Buck Henry, são sensacionais. O coronel Cathcart feito par Martin Balsam é um louco completo, aumentando sempre o número de missões que cada aviador tem de cumprir antes de finalmente dar baixa. O general Dreedle feito por Orson Welles é o exagero da loucura – um assassino à solta, feroz, sanguinário. O capitão Nately, interpretado pelo cantor Art Garfunkel, é a inocência em pessoa, o alheamento total à realidade, apaixonado pela prostituta italiana com uma fé cega na santidade da moça. O tenente da intendência Milo, interpretado por Jon Voight, é uma sátira furiosa das bases do capitalismo, o fazer negócios com tudo possível e imaginável, e dane-se a vida das pessoas.

Há seqüências absolutamente hilariantes, como a chegada do general Dreedle e sua secretária loura, burra e gostosa ao local onde os oficiais se preparam para mais uma missão. Mike Nichols faz super-extra-big-close-ups dos joelhos da moça, da aberturinha da saia que permite ver o início da coxa, que ela coça suavemente, enquanto a homarada vai à absoluta loucura. Quando o capitão Yossarian se encontra com uma italiana gostosa no meio da rua, num dia de licença, ouvimos, altíssimo, o Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, que estava na cabeça de todo espectador de cinema do mundo, em 1970, depois de ter sido usada por Stanley Kubrick em 2001 – Uma Odisséia no Espaço, feito em 1968.

         Na época, a crítica desceu a lenha no filme

Leonard Maltin dá 2.5 estrelas em 4: “Longo, trabalhado, caro filme a partir do livro de Joseph Heller quase consegue capturar a insanidade surrealista da vida nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial. A mão pesada estraga o potencial, com o bom elenco se esforçando ao máximo.”

Pauline Kael define o filme como “um fracasso imensamente ambicioso”, com “uma montagem grandiloqüente (…) e episódios à la Fellini passados em Roma”. “O filme ficou tão pesado e pretensioso que acabou sepultando as ironias. Há uma bela seqüência numa torre de vôo no início, efeitos fantásticos e bons toques de teatro-revista aqui e ali, mas o filme é interminável, como se estivesse decidido a nos impressionar. É tão longo que se anula; foi muito esperado e depois esquecido quase instantaneamente. (…) A atuação de alguns dos oficiais superiores é tão estúpida que parece dizer que, assim que se atinge a patente de major, o indivíduo torna-se um monstro.” 

Roger Ebert dá 3 estrelas em 4, e diz logo de cara na sua longa crítica que o filme é um desapontamento. “O desafio (de Mike Nichols) era de alguma maneira pegar o tom de Heller, um equilíbrio delicado entre insanidade e a lógica fria. Tudo no livro era louco porque fazia sentido, um paradoxo ilustrado no caso de Yossarian, o herói.” E aí Ebert explica a questão do ardil 22, exposta no diálogo que transcrevi mais acima. “Essa espécie de lógica à la Alice no País das Maravilhas está no cerne do livro de Heller, e de alguma forma funciona. Com Nichols, não funciona.”

Ardil 22/Catch-22

De Mike Nichols, EUA, 1970

Com Alan Arkin, (capitão Yossarian), Martin Balsam (coronel Cathcart), Richard Benjamin (major Danby), Art Garfunkel (capitão Nately), Jack Gilford (Doc Daneeka), Bob Newhart (major Major), Anthony Perkins     (capelão Tappman), Paula Prentiss (enfermeira Duckett), Martin Sheen       (tenente Dobbs), Jon Voight (Milo Minderbinder), Orson Welles   (general Dreedle), Bob Balaban (capitão Orr)

Roteiro Buck Henry

Baseado no livro de Joseph Heller

Fotografia Nelson Tyler e David Watkin

Produção Paramount e Filmways

Cor, 121 min

R, ***  

9 Comentários para “Ardil 22 / Catch-22”

  1. Lendo o comentário, fiquei com vontade de rever. Fui correndo dar uma olhada no meu acervo e – decepção – não tenho esse filme. Tenho M.A.S.H., do Ardil 22 só tenho o romance de Heller. Paciência… Vi no cinema, quando lançado, nos anos 70, e o tenho como filme memorável.

  2. ” Há tomadas de beleza extraordinária.” oPS… A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA É EXCELENTE….. vale uma debate a parte… o esmero da direção é algo raro no cinema atual.. vale debate… a cenografia é fantástica… sem CG….
    Vamos lá… é um puta filme…

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