Caçada Humana / The Chase


Nota: ★★★★

Anotação em 2007, com complemento em 2008: Há muitos anos eu não revia o filme. E ele está tão forte agora quanto há 40 anos, quando vi o filme três vezes, entre dezembro de 1966 e março de 1967. É uma visão arrasadora da sociedade americana, em que quase, mas quase tudo é absolutamente podre, corrupto, sujo.

Fez lembrar o que aquele autor inglês Ivor Montagu dizia em seu livro Film World – que Einsestein não poderia mesmo ter filmado nos Estados Unidos, como queria, A Tragédia Americana, porque seria devastador demais. Arthur Penn conseguiu fazer este filme devastador demais – e, por causa disso, só faltou ser crucificado.

O filme abre com dois homens correndo, e diversos policiais indo atrás deles. Várias tomadas da fuga dos dois no meio do mato e dos policiais fortemente armados e com seus cães de caça atrás deles vão sendo mostradas ainda durante os letreiros iniciais, a apresentação, na qual o espectador vê os nomes de diversos grandes atores – Marlon Brando, Jane Fonda, Robert Redford, E.G.Marshall, James Fox, Robert Duvall, Marta Hyer, Janice Rule, Miriam Hopkins -, do produtor Sam Spiegel (de A Ponte do Rio Kwai e Lawrence da Arábia), do diretor Arthur Penn, um dos mais importantes do cinema americano, e, como roteirista, a escritora e dramaturga Lillian Hellman, uma das personalidades mais fascinantes do século. É um desfilar de nomes importantes, de grandes talentos, enquanto o espectador vai vendo a caçada humana – o início dela.

Logo após o final da apresentação, o espectador vê que os dois presos fazem parar um carro na estrada; a intenção era amarrar o motorista, deixá-lo ali e fugir com o carro para o México, mas um dois mata o sujeito e foge sozinho, deixando para trás o companheiro, que – isso é mostrado explicitamente – havia ficado indignado com o assassinato.

Nos primeiros 15 minutos, Arthur Penn apresenta aos espectadores a galeria dos muitos personagens da história e dos muitos temas que serão tratados no filme. É uma panorâmica da vida de uma pequena cidade do Texas, um microcosmo do país mais rico do mundo.

achaseO xerife Calder (Marlon Brando), que mora na própria delegacia, com a bela mulher (Angie Dickinson), recebe por telefone a informação de que Bubber Reeves (Robert Redford) fugiu da penitenciária, juntamente com um bandido perigoso. A conversa é ouvida por um cidadão que havia ido fazer uma queixa qualquer na delegacia, e ele se encarrega em seguida de espalhar a notícia para toda a cidade.

Veremos, então, nestes 15 primeiros minutos do filme, que:

. alguns moradores acusam o xerife Calder de prestar serviços a Val Rogers (E.G.Marshall), o homem mais rico da cidade;

. o filho do milionário Val Rogers, Jake (James Fox), é casado, mas tem um caso com Anna Reeves (Jane Fonda), a mulher de Bubber, o fugitivo;

. Bubber tinha ido parar na cadeia por furto de carros, e era muito amigo de Jake, o filho do milionário;

. praticamente todos na cidade trabalham para o milionário Val Rogers, de uma forma ou de outra.

Enquanto vai dando essa panorâmica, Arthur Penn aproveita para mostrar – em duas seqüências intercaladas às outras que apresentam os personagens principais da história – como os bancos esfolam os pequenos fazendeiros, como os muitos empreendimentos do milionário exploram a mão de obra barata e ilegal de imigrantes mexicanos, e como o racismo está profundamente impregnado naquela sociedade.

A cena que primeiro apresenta o racismo é ótima. Logo depois que Bubber Reeves é abandonado na estrada pelo colega, passa um carro velhíssimo com uma negra dirigindo, ao lado do filho, um garotinho de uns dez anos; o garotinho chama a atenção da mãe para o homem que, ao ver o carro se aproximar, foge para dentro do mato – “ele está com roupa de preso”, diz, e sugere avisar a polícia. A mãe, com a expressão impassível, ensina a ele: “Deixe os brancos cuidarem dos problemas dos brancos”.

Tudo isso nos primeiros 15 minutos. É de tirar o fôlego – mas as coisas vão piorar cada vez mais; haverá traições de vários tipos, demonstrações de racismo, de inveja profunda, de ódio, de intolerância, de violência de todas as formas. O xerife Caldwell terá seu dia do xerife Will Kane, o personagem emblemático de Matar ou Morrer/High Noon, um homem sozinho tentando fazer cumprir as leis numa selva de loucos e covardes.

 A crítica americana massacrou o filme 

A crítica americana foi absolutamente impiedosa, e, em uníssono, arrasou o filme – que, na Europa, não por mero acaso, colecionou elogios. Arthur Penn, como aconteceria anos mais tarde com Woody Allen, sempre foi mais badalado pela crítica européia do que pela de seu próprio país.

Pauline Kael, cuja metralhadora giratória dispara contra a direita (chama, por exemplo, Dirty Harry de fascista, no que aliás tem toda razão), mostra que também atira na esquerda. Pela importância do filme, e da própria Pauline Kael, transcrevo a tradução feita por Sérgio Augusto em 1001 Noites no Cinema:

“Marlon Brando fazendo o xerife de uma cidadezinha corrupta e sanguinária do Texas, em uma América mítica das fantasias sadomasoquistas dos liberais. Lillian Hellman escreveu o argumento (com material de Horton Foote), e as raposinhas de fato se soltaram.”

(Aqui tem que haver um parênteses. Sérgio Augusto não explicou o que isso quer dizer, mas as raposinhas são uma referência a Little Foxes, uma das peças mais famosas de Lillian Hellman. Outra coisa: no original está dito que Lillian Hellman escreveu o screenplay, o roteiro, e não argumento, como Sérgio Augusto traduziu.)

“Não restam uvas em nossas vinhas nesse fim de mundo de troca de esposas, ódio aos negros e aos seus defensores, onde as pessoas são motivadas por sexo baixo ou dinheiro graúdo, etiquetadas assim que dizem as primeiras falas. Muita gente no mundo inteiro culpa o Texas pelo assassinato de Kennedy – como se o assassinato houvese brotado do inconsciente da população local -, e o filme explora e confirma essa visão histérica, chegando a mostrar uma imitação dos tiros de Jack Ruby em Lee Oswald, com um cortês sulista racista, naturalmente branco, substituindo Ruby, e um herói totalmente inocente (Robert Redford) substituindo Oswald. O produtor Sam Spiegel disse que a história trata das “conseqüências da riqueza”, e o filme lembra uma Doce Vida caipira. Lillian Hellman manifestou em público seu desagrado com o resultado, e reconheceu-se em geral que o diretor, Arthur Penn (que tentou atear fogo em tudo com a velha bazuca de Elia Kazan), não teve controle sobre a produção. Mas o filme atinge algumas pessoas com muita força, e tem uma considerável reputação, sobretudo na Europa.”

Mas não foi só Pauline Kael. O livro The Films of Jane Fonda, de George Haddad-Garcia, publicado em 1981, reproduz trechos de críticas de vários jornais e revistas – Life, Time, The New York Times, New York Herald Tribune, New York Daily News – que disputam ferozmente para ver quem malha mais o filme. Um deles disse que o filme é a pior coisa que aconteceu com o cinema desde o ano em que Lassie interpretou um veterano de guerra com amnésia. Teve nego que chegou a dizer que Jane Fonda não servia para trabalhar em drama.

Nesse mesmo livro, há uma declaração de Robert Redford, conhecido por suas posições liberais, progressistas, “de esquerda”, nas definições americanas. Segundo ele, o problema foi que o filme quis contar histórias demais, em vez de centrar-se na caçada humana e nos quatro personagens principais – o dele mesmo, Bubber Reeves, o fugitivo, a mulher dele, o papel de Jane Fonda, o milionário e o xerife: “Era uma caçada, mas o filme não foi uma caçada – ele tentou tratar de todos os conceitos liberais dos direitos civis”.

Na sua belíssima autobiografia, Minha Vida Até Agora, Jane Fonda não presta a atenção devida ao filme que fez quando estava com 29 anos – o primeiro dos três que faria ao lado de Robert Redford, que na época estava, aos 30 anos, iniciando a caminhada para o super- estrelato. Ela apenas menciona os grandes nomes envolvidos na produção, e diz: “Mas que pacote, hein? No entanto, o que eu estava para descobrir era que nem mesmo o melhor pacote de talentos pode garantir o sucesso. Enquanto o filme foi razoavelmente bem na Europa, foi um fracasso total nos EUA.”

Não fez sucesso nos Estados Unidos porque não faria mesmo, em hipótese alguma, porque é anti-americano demais. É uma imagem cruel demais essa que o filme mostra – ninguém gostaria de ver essa imagem no espelho.

Caçada Humana/The Chase

De Arthur Penn, EUA, 1966.

Com Marlon Brando, Jane Fonda, Robert Redford, E.G.Marshall, Angie Dickinson, James Fox, Robert Duvall. Marta Hyer, Janice Rule, Miriam Hopkins

Roteiro Lillian Hellman

Baseado no romance e na peça de Horton Foote

Música John Barry

Produção Sam Spiegel, Horizon, Columbia.

Cor, 133 min.

****

Título em Portugal: Perseguição Impiedosa. Título na França: La Poursuite Impitoyable

14 Comentários para “Caçada Humana / The Chase”

  1. Não sei se existe uma definição melhor do que a tua,Sergio,para dizer porque este filme
    não fêz sucesso nos EUA. Perfeita.
    Uma cidade pequena lá nos cafundós do Texas onde existe de tudo;adultérios (escancarados)espancamentos,racismo(como sempre)e traições.
    Era irritante como aquela “gente”achava que o xerife era pau mandado do rei do petróleo.
    O filme é forte.A surra que aplicaram no xerife foi de uma covardia sem limites.
    Aquela festa na casa do Edwin(Robert Duvall)que coisa mais ridícula e idiota,um bando de adultos já indo prá fase dos “coroas” dando uma de “jovem guarda”.
    A intolerância era tal e tamanha que até aqueles(aí sim)jóvens foram atraz do prisioneiro. Virou um circo dos horrores.
    Sociedade pôdre,mesquinha,racista,corrupta.
    O filme,é muito bom.Não,é ótimo,com tôdas as letras.
    Um abraço, Sergio ! !

  2. Ah!Esqueci de falar do elenco.Todos ótimos e consagrados.Esqueci tbm de falar de uma coisa linda neste filme; Angie Dickinson.
    LINDÍSSIMA !!!

  3. Embora muito doloroso, amo esse filme. Critica arrasadora da sociedade americana. Personagens chegam a ser caricatos, mas são quase arquétipos do americano sulista. Varios bons momentos de vários atores.

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