3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: O Grupo Baader-Meinhof é um ótimo, impressionante filme por diversas razões. O fato de ser extraordinariamente bem realizado, com uma qualidade técnica em tudo impecável, é apenas uma delas.
O filme impressiona também porque, ao que tudo indica, é uma reconstituição cuidadosa, germanicamente cuidadosa, acurada, de toda a história do grupo terrorista que agiu durante uma década inteira na então Alemanha Ocidental, a República Federativa Alemã. Toda a história – das origens até o desmantelamento final.
Impressiona ainda por mostrar a extensão, a amplitude, a ferocidade das ações do grupo. Acho que dá para dizer com segurança que as pessoas não têm idéia, ou não se lembram bem, de como foi imensa a selvageria daquele bando de jovens. Por ser jornalista, por ter vivido no meio das notícias na época em que o Baader-Meinhoff existiu e atuou, entre o final dos anos 60 e ao longo dos anos 70, me considero uma pessoa relativamente bem informada – mas fiquei absolutamente surpreendido ao ver a extensão, a importância da facção terrorista, ou guerrilheira, como eles se intitulavam. Imagino que o mesmo vá acontecer com a imensa maior parte das pessoas que se dispuserem a ver o filme.
Em quarto lugar, impressiona, e muito, ver como eram fortes os laços que uniam o terrorismo daquele país – um dos mais ricos e desenvolvidos do mundo, e com uma democracia funcionando à perfeição – com o terrorismo árabe, ou uma parte dos terrorismos árabes. O Advogado do Terror, o excelente documentário do alemão Barbet Schroeder, havia demonstrado essa ligação – mas, mesmo assim, é surpreendente vê-la como mostra o filme.
Há um quinto motivo de assombro. É impressionante como os terroristas – que mataram gente, assaltaram, explodiram bombas, destruíram patrimônio, seqüestraram, cometeram todo tipo de crime – tinham apoio popular.
E, finalmente, este ótimo filme surpreende e impressiona pelo seu tom quase de documentário, cru, seco, direto, sem, aparentemente, tomar partido algum. O Grupo Baader-Meinhoff mostra atrocidades cometidas pelos guerrilheiros de extrema esquerda da mesma forma com que mostra atrocidades cometidas do lado do governo democrático alemão. É uma guerra, e portanto suja, e os dois lados fazem sujeira – e o filme mostra a sujeira dos dois lados, sem pretender fazer julgamento algum. Propositadamente – pelo menos foi o que me pareceu –, o filme não toma partido, não julga: deixa isso para o espectador.
É extraordinário. É um grande feito. É um grande filme.
Um diretor chegado a temas polêmicos, violentos
Ao ver o filme, e ao escrever os parágrafos acima, não tinha a mínima idéia do que o diretor Uli Edel já havia feito na vida. Dei uma olhada na filmografia do cara no iMDB; vejo que ele dirigiu, em 1981, na Alemanha, uma versão do livro Eu, Christiane F., Drogada e Prostituída, que fez muito sucesso no final dos anos 70; me lembro de Inês, minha enteada, lendo o livro, bem jovem (por uma grande coincidência, Inês vive hoje na Alemanha, com o marido Karsten e os filhos Maria, Daya e Leo, quatro perfeitos alemães).
Em 1993, Uli Edel dirigiu, nos Estados Unidos, Corpo em Evidência/Body of Evidence, que eu considero um exemplo perfeito do quasepornô, aquele tipo de filme que se aproveita da liberação dos costumes para mostrar muito sexo quase explícito, faturar bastante na bilheteria e parecer que está fazendo cinema sério. É dele também Noites Violentas no Brooklyn/Last Exit to Brooklyn, de 1989, que me lembro bem de ter visto uma única vez numa das maravilhosas salas do Barbican Centre, em Londres – barra pesadíssima, beirando o mundo cão, sobre drogas e sexo e total decadência moral numa comunidade muito pobre, quase lumpen, com uma interpretação fantástica da fantástica Jennifer Jason Leigh.
Por esses exemplos, parece mais uma folha corrida que uma filmografia. Parece um cineasta que gosta de temas muito polêmicos, violentos, à beira do mundo cão e da sacanagem. Ainda bem que não a examinei antes de ver o filme, porque poderia ter ficado de pé atrás com ele. Como não tinha informação alguma, vi sem qualquer preconceito, sem qualquer idéia pré-concebida – e achei que é um belo filme.
De delinqüentes juvenis a guerrilheiros contra… contra o quê mesmo?
O filme abre numa colônia nudista alemã diante do mar, onde a jornalista Ulrick Meinhof (Martina Gedeck) passa férias com as duas filhas e o marido, no verão de 1967 – ouvimos a voz esganiçada de Janis Joplin cantando Mercedes Benz. Ulrick está lendo uma revista semanal daquelas cheias de fotos, como eram na época no Brasil a Manchete e O Cruzeiro. Na capa aparecem o xá Reza Pahlavi e a imperatriz Farah Diba.
Pouco depois, vemos uma grande demonstração em Berlim Ocidental diante da Ópera que seria visitada pelo xá da Pérsia e sua mulher; há um grande grupo de senhores de terno, obviamente uma claque paga pelo governo persa para demonstrar apoio ao soberano, e um grande grupo de alemães, basicamente estudantes, que protesta contra a presença dele; de repente, os sujeitos de terno preto partem para cima dos manifestantes que protestam, munidos de paus – e a polícia de Berlim abre espaço para que eles desçam o cacete nas pessoas que faziam uma demonstração absolutamente pacífica contra um soberano de regime nada democrático.
Em seguida, vemos uma gigantesca assembléia de estudantes de esquerda, dirigida por um líder radical, Rudi Dutschke (Sebastian Blomberg). E poucos minutos depois vemos um jovem fanático anticomunista desferir três tiros em Dutschke.
Uma ação criminosa da polícia, uma ação criminosa cometida por um fanático radical de direita perturbado mentalmente – e, a partir daí, veremos, em paralelo, a jornalista Ulrick Meinhof ir radicalizando seus textos de contestação ao governo democrático alemão, à presença de tropas americanas no solo da Alemanha derrotada na guerra que terminara 22 anos antes, à crescente presença militar americana no Vietnã, ao apoio do Ocidente a Israel em prejuízo dos árabes e palestinos, e a transformação de um bando de delinqüentes juvenis aglutinados em torno de um líder carismático, Andreas Baader (Moritz Bleibtreu) em um bando de guerrilheiros – ou terroristas, de acordo com a nomenclatura que cada espectador preferir.
Bem mais tarde, Ulrick Meinhof vai se unir ao grupo de Baader – de Baader e de sua namorada, Gudrun Ensslin (Johanna Wokalek). Gudrun é mostrada como uma personalidade extremamente forte, às vezes mais forte que o próprio Baader.
O grupo começa explodindo bombas em loja de departamento, depois ataca jornais de direita, depois rouba bancos. Faz treinamento de guerrilha na Jordânia. Em nome de quê? Ah, sim, aqueles temas citados ali acima, a luta contra o imperialismo americano, o despertar da consciência das massas, a revolta contra o governo boliviano que matou Che Guevara, a revolução comunista mundo afora, o fim do Establishment, a conquista do Paraíso na terra pelo povo oprimido, essas coisas todas.
Não dá para entender deliqüência como luta política
Tenho uma tremenda dificuldade para compreender e aceitar movimentos terroristas dentro de uma sociedade plenamente democrática. Já é bastante difícil compreender, aceitar e apoiar ações terroristas de um povo que luta para defender sua própria terra, como os palestinos, os irlandeses, os judeus do Likud antes da criação do Estado israelense, ou de um povo cuja terra foi invadida por estrangeiros, como os chechenos e afegãos contra os soviéticos e depois contra os russos, ou os vietnamitas primeiro contra os franceses, depois contra os americanos.
Com algum esforço, acho que é possível compreender e aceitar a luta armada dos montoneros contra a ditadura argentina, ou dos tupamaros contra a ditadura uruguaia dos anos 70, ou a dos 37 facções da extrema esquerda brasileira contra os milicos do golpe de 68 dentro do golpe de 64.
Mas os ataques assassinos do Baader-Meinhof na plenamente democrática Alemanha Ocidental, ou os das Brigadas Vermelhas numa Itália igualmente e absolutamente livre e democrática ficam inteiramente fora da minha capacidade de compreensão.
E ficam ainda mais depois de ver a reconstituição daqueles tempos insanos que este filme faz. A seqüência em que Baader sai para se divertir com os amigos atirando a esmo, assim como todas as seqüências que mostram a aproximação entre o grupo e os terroristas árabes, são para mim uma demonstração cabal do absurdo, da total falta de lógica de se entender aquilo como uma luta política. É tudo um bando de delinqüentes comuns usando a comodidade da explicação da pureza ideológica. Algo tipo Farc – nada menos criminoso do que isso.
Mas o fantástico é que esse mesmo filme pode ser interpretado da maneira oposta por quem veja a realidade de um ponto de vista antípoda ao meu. Acho perfeitamente possível que um grupo de guardas do bolivarismo chavista veja o filme e saia convencido de que é isso aí, meu, vamos mudar o mundo como os companheiros alemães mostraram que tem que fazer: todo o poder às armas, e abaixo a democracia burguesa.
Quando é que eles vão aprender?
Hum… Pensando bem, será que essa coisa de o filme ser assim “deixe que o espectador julgue” é uma boa opção?
Bem. Se a gente não achar que é o espectador que deve julgar, então estaríamos fazendo o jogo deles, apoiando o jogo deles, os ditadores, seja qual for seu matiz ideológico.
É o que indica o personagem interpretado pelo extraordinário Bruno Ganz, esse ator que está em tantos belos filmes, o Nosferatu de Werner Herzog, que fez um dos anjos em Asas do Desejo e Tão Longe, Tão Perto, de Wim Wenders, que fez com brilho o Hitler em A Queda! As Últimas Horas de Hitler. O personagem de Bruno Ganz entende que, para combater o terrorismo, é preciso entender o que motiva aquelas pessoas, o que motiva as pessoas que as apóiam. Achar que o radicalismo total de um lado pode derrotar o outro lado só serve ao radicalismo.
O personagem de Bruno Ganz – que os radicais de esquerda podem enxergar como o mal em si – é, acho eu, o único que faz a defesa da racionalidade, da inteligência, neste filme. Olho por olho, dente por dente, isso faz milênios que só leva a mais violência. Ou, como diz um provérbio armênio do século XI, de mil anos atrás, citado pelo comunista Robert Guédiguian em seu filme Lady Jane, “Aquele que busca se vingar é como a mosca que bate contra o vidro sem ver que a porta está escancarada”.
O Grupo Baader-Meinhof poderia terminar com a canção daquele outro comunista, Pete Seeger, que diz: “Quando é que eles vão aprender?” Preferiu terminar com outra canção – mas ela diz exatamente a mesma coisa.
O Grupo Baader-Meinhof/Der Baader-Meinhof Komplex
De Uli Edel, Alemanha, 2008
Com Martina Gedeck (Ulrike Meinhof), Moritz Bleibtreu (Andreas Baader), Johanna Wokalek (Gudrun Ensslin), Bruno Ganz (Horst Herold), Vinzenz Kiefer (Peter-Juergen Boock), Nadja Uhl (Brigitte Mohnhaupt)
Roteiro Uli Edel, Bernd Eichinger
Baseado em livro de Stefan Aust
Fotografia Rainer Klausmann
Música Peter Hindertuer e Florian Tessloff
Produção Constantin Film, Degeto
Cor, 149 min
***1/2
Nao vi, mas fiquei com vontade. De ser bbeeemmm interessante.
Abs.
Muito boa a crítica. Mas não acho que no final fique tudo por conta do espectador. A última frase, pra não imaginarem os caras como eles nunca foram, foi bem direta.
Vou ver logo que for possível.
Há alguns equívocos nesse artigo. Em primeiro lugar, Corpo em Evidência não é um filme de sexo explícito! Nele não há sexo real nem exibição de genitais. O sexo é simulado! Existe uma diferença muito clara entre filmes softcore (quando o sexo é simulado e não há nudez explícita do elenco) e filmes hardcore (em que o sexo é real e explícito).
E em segundo lugar, existem filmes sérios e artísticos em que o sexo é explícito e não-simulado, como por exemplo, “Les héroïnes du mal” (1979) de Walerian Borowczyk,”Diavolo in corpo” (1986) de Marco Bellocchio, “La vie de Jésus” (1997) de Bruno Dumont, “Hundstage ” (2001) de Ulrich Seidl, “Nymphomaniac” (2013) de Lars von Trier, “Love” (2015) de Gaspar Noé e tantos outros…
Caro João,
Agradeço muito por seu comentário.
Você tem razão. Vou alterar o texto – em vez de “sexo explícito” vou dizer “sexo quase explícito”.
Um abraço.
Sérgio