3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este filme de 1947, uma produção A, com grande e bom elenco, tem alguns pequenos probleminhas no roteiro, no desenrolar da história, me pareceu. Mas é um bom filme, em diversas coisas à frente de seu tempo, e com uma discussão importante e forte sobre os males da publicidade e sobre a relação das pessoas com o trabalho – a convivência às vezes muito difícil entre a carreira, o sucesso profissional, e a coluna vertebral, os princípios morais. Não é pouca coisa.
A história gira em torno de Victor Norman (Clark Gable, oito anos depois de … E o Vento Levou, um dos maiores astros de cinema da época), um sujeito muito seguro de si mesmo, benquisto e respeitado por todos em volta dele, sedutor (Deborah Kerr e Ava Gardner vão se apaixonar por ele, dá para acreditar?). Quando a ação começa, ele está voltando a Nova York depois de quatro anos no Exército, na Segunda Guerra. Antes de se engajar, teve uma carreira brilhante ligada ao show business – fez de tudo um pouco, foi produtor, diretor de rádio. No momento atual, está à procura de um emprego numa grande agência de publicidade; vai visitar o dono da agência, Kimberly (o veterano Adolphe Menjou), mostrar-se à disposição, mas com um ar de quem a rigor não está precisando de um emprego, e pode a qualquer momento achar coisa melhor.
O principal cliente da agência de Kimberly é uma fábrica de sabonetes, Beauty Soap, que põe nela US$ 10 milhões por ano, uma fortuna absurda em 1947. Kimberly, dono de agência de publicidade grande, muito rico, treme nas bases quando fala com o dono da fábrica de sabonetes, Evan Llewellyn Evans (Sydney Greenstreet, de quem gente com mais de 50 anos lembra bem por seu papel em Relíquia Macabra/The Maltese Falcon, de 1941, a estréia de John Huston na direção, e também em Casablanca, de Michael Curtiz, de 1942).
Na verdade, todos, absolutamente todos tremem diante de Evans, um bilionário presunçoso, dominador, um ditador repulsivo, nojento, um cruzamento assim de Hitler, Stálin e Chávez, que, consciente do significado dos US$ 10 milhões anuais que paga à Kimberly Agency, trata todo mundo ali como se fossem seus escravos. Ele determina como quer que sejam as campanhas publicitárias para revistas e jornais, mas principalmente para o rádio, então o grande veículo que falava com milhões de consumidores.
Todos, absolutamente todos tremem diante de Evans – menos, é claro, Vic Norman, nosso herói.
Algo relacionado a uma das campanhas publicitárias do sabonete de Evans leva Vic Norman a conhecer Kay Dorrance, uma inglesa de porte nobre (o papel perfeito para a elegância fina de Deborah Kerr), mãe de dois filhos, viúva de um general americano. Vic poderia, se quisesse, conquistar a estonteante Jean Ogilvie (Ava Gardner, aquela coisa, como é mesmo?, o animal mais bonito da face da terra, segundo se dizia), uma cantora antiga conhecida sua, que ele reencontra na volta a Nova York e à vida civil; Jean demonstra que está lá pronta para ele, caso ele queira. Mas é por Kay Dorrance que o coração dele se derrete.
O desenrolar da história é complexo, há várias pequenas tramas dentro da trama, mas o importante é que haverá um momento em que Vic Norman, precisando desesperadamente do emprego, terá diante de si o grande dilema: ou o bom salário ou a coluna vertebral.
Disse lá em cima que, na minha opinião, há alguns pequenos probleminhas no roteiro, no desenrolar da história. Acho que boa parte deles se deve ao fato de que os autores da adaptação e do roteiro tiveram que condensar, num filme de duração convencional (são 115 minutos), um romance que seguramente deve ser caudaloso, cheio de detalhes. (O livro de Frederic Wakeman, The Hucksters, foi um tremendo sucesso, um grande best-seller, nos anos 40.) Assim, por exemplo, o início do romance entre Vic Norman e Kay Dorrance parece muito apressado – assim como a paixão de Jean Ogilvie por Vic Norman parece um tanto mal explicada. Mas, repito, são pequenos detalhes que não derrubam o filme.
Huckster, o substantivo do título original, tanto do livro quanto do filme, é algo que para nós seria uma mistura de caixeiro-viajante com camelô, especialmente aqueles tipo de camelô que nem existe tanto mais, que ficava recitando sem parar, em voz alta, as vantagens das merrequinhas à venda na sua banquinha. O Dicionário da Longman explica que o termo, em geral usado em sentido ofensivo, designa também “uma pessoa que escreve anúncios, especialmente para o rádio e a televisão”. No filme, Vic Norman usa a expressão huckster no seu primeiro encontro com Kay Dorrance – e dá a ela uma explicação do que aquilo significa.
É uma crítica violenta à publicidade, aos publicitários; ao poder dos anunciantes sobre aquilo que eles patrocinam nos meios de comunicação; ao carreirismo, que, segundo o filme, transforma gente honrada em bandido. Belo filme. Seriam necessários mais 22 anos para que houvesse outro ataque tão frontal ao meio publicitário num filme americano, em Movidos pelo Ódio/The Arrangement, uma bela obra, injustamente menosprezada ou no mínimo menos conhecida de Elia Kazan. Aliás, por uma imensa coincidência (ou não?), Deborah Kerr está também no filme de Kazan; faz a bela, elegante mulher do publicitário em crise existencial interpretado por Kirk Douglas, que por sua vez está babando na gravata pela personagem jovem e ambiciosa de Faye Dunaway.
Depois de fazer a anotação acima, fui ao velho Cinemania, o CD-ROM que era tão completo e tão bom que a Microsoft parou de publicar. Lá há só a resenha de Leonard Maltin (não há os comentários de Pauline Kael e Roger Ebert). Eis o que Maltin diz (ele dá 3 estrelas em 4): “Brilhante alfinetada nas indústrias da publicidade e do rádio, com Gable lutando pela integridade entre tipos servis. Greenstreet memorável como despótico dono de empresa de sabonetes; primeiro filme americano de Kerr”.
Eis aí uma bela informação: eu não sabia que foi a estréia da escocesa Deborah Kerr no cinema americano. Isso explica então um dos cartazes do filme na época do lançamento, que diz “Gable’s new star is Deborah Kerr”. Deborah Kerr, nascida em 1921, tinha apenas 26 anos quando fez o filme. E aí me lembro do belíssimo obituário que o Independent de Londres fez quando a atriz morreu, em 2007; o Anélio Barreto estava na época na Europa e trouxe o jornal para mim; lá pelas tantas, o texto de página inteira – que falava da interpretação dela em cada um dos principais de seus mais de 50 filmes – lembrava essa história, presente no cartaz do filme The Hucksters, de os marqueteiros do cinema americano associarem a palavra star ao nome Kerr. Uma maneira de ensinar à América que o nome dela se pronuncia não como quér, mas como cár.
O Mercador de Ilusões/The Hucksters
De Jack Conway, EUA, 1947.
Com Clark Gable, Deborah Kerr, Ava Gardner, Adolphe Menjou, Sydney Greenstreet, Edward Arnold
Roteiro Luther Davis
Baseado no livro de Frederic Wakeman
Adaptação Edward Chodorov e George Wells
Produção Metro-Goldwyn-Mayer
P&B, 115 min.
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