(Dispónível no YouTube em 4/2023.)
Em 1946, 33 anos antes de Kramer x Kramer fazer as pessoas mundo afora pensarem sobre a questão da guarda dos filhos de pais separados, 31 anos antes de este paisão atrasado da América do Sul legalizar o divórcio, um filme de Hollywood foi fundo no tema dos filhos do divórcio.
Ele escancara sobre o que trata já no título, direto e reto – Child of Divorce. Os exibidores brasileiros generalizaram, usando o plural, Os Filhos do Divórcio, mas a mudança não é impertinente, de forma alguma. É a história de uma criança, Roberta, que todos chamam pelo diminutivo afetivo de Bobby – mas ela é um exemplo de tantas e tantas e tantas crianças que sofrem com a separação dos pais.
Bobby é interpretada – fantástica, maravilhosamente – por Sharyn Moffett, que estava então, em 1946, ano de lançamento do filme, com 10 anos de idade, dois a mais que a personagem. Bobby, oito anos de idade, filha única, tem adoração pelo pai, Ray Carter (o papel de Regis Toomey), e o pai a trata muitíssimo bem, com muito carinho e brincadeiras, os elementos básicos.
O único senão na relação entre pai e filha é o fato de que Ray muitas vezes tem que viajar a serviço, e Bobby sente muita saudade dele.
Fica absolutamente claro para o espectador, desde a primeira sequência, que a mãe de Bobby, Joan (Madge Meredith), não está feliz no casamento. E não demora nada (até porque o filme é curtíssimo, com apenas 66 minutos) para que Bobby e vários de seus amiguinhos vejam a mãe da garota, em um parque, beijando um homem que não é o marido dela.
Há uma característica um pouco cruel nas crianças, ainda mais quando estão em grupo – e os amiguinhos de Bobby passam a pegar no pé dela, a incomodá-la, repetindo sempre frases como “A mãe de Bobby tem um namorado”…
O bullying é pesado – mas os problemas de Bobby, uma garotinha sensível, estão apenas começando.
Ela ouve a discussão entre pai e mãe no dia em que Ray faz perguntas e Joan finalmente conta que tem um amante. Ray reage com aspereza, Joan dá um tapa no rosto dele – e o marido dá um tapa de volta.
Ela sai de casa, e não demora muito a se casar com o homem que era seu amante, Michael Benton (o papal de Walter Reed).
O divórcio – litigioso – é concluído com a guarda da criança ficando com a mãe durante a maior parte do ano; o pai ficaria com a garota durante as férias de verão dela.
Bobby fica profundamente, profundamente, profundamente infeliz na casa do novo marido da mãe. Conta os dias para chegarem as férias e ela ficar com o pai.
Um filme B, que marcou a estréia de Richard Fleisher
Child of Divorce foi produzido pela RKO Radio Pictures, que era assim uma espécie de irmão mais pobre dos grandes estúdios. É o típico filme B, algo extremamente comum em Hollywood nos anos 1930 e 1940: baixo orçamento, curta duração, atores sem grande fama, diretores idem.
Filme B, no entanto, jamais foi sinônimo de filme de qualidade inferior. E bons diretores que começaram suas carreiras fazendo filmes B passaram a receber dos estúdios convites para produções de bom orçamento, como mostra em seu livro A Outra Face de Hollywood: o Filme B o estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos. Entre esses diretores, ele cita nomes que mesmo cinéfilos apaixonados não ligariam às produções B, como os respeitáveis, reconhecidos, elogiados Anthony Mann, Jacques Tourneur, Robert Wise, Mark Robson e Richard Fleischer.
Richard Fleischer (1906-2006) tem em seu currículo grandes produções, grandes sucessos de bilheteria, como, só para citar alguns, 20.000 Léguas Submarinas (1954), Tora! Tora! Tora! (1970), Vikings, os Conquistadores (1958), Barrabás (1961), Viagem Fantástica (1966), O Homem Que Odiava as Mulheres (1968).
Este Os Filhos do Divórcio foi o primeiro longa-metragem dirigido por Fleischer. E é absolutamente perceptível que o sujeito já demonstrava talento. Tinha domínio da direção de atores – todo o elenco está muito bem.
O filme tem duas características bem interessantes. Duas raridades no cinema daquela época, seja o do Hollywood, seja de uma maneira geral.
O primeiro nome nos créditos e nos cartazes – o chamado top billing, algo muitíssimo importante em Hollywood – coube à atriz infantil. O nome de Sharyn Moffett aparece à frente e acima dos nomes dos atores que fazem seus pais, Regis Toomey e Madge Meredith. Isso era – e ainda é até hoje, tantas décadas depois – muito, mas muito, mas muito raro. Só me lembro de dois outros casos de atores mirins que tiveram top billing, seu nome à frente de atores famoso. Um é Shirley Temple – mas Shirley Temple, que aparecia à frente de astros como Lionel Barrymore, Randolph Scott, Alice Faye, Gloria Stuart, Victor McLaglen, é exceção das exceções; era das maiores estrelas do cinema americano na sua época… E o outro caso também é exceção, coisa de estrela de primeiríssima grandeza – Judy Garland.
O filme foi escrito e produzido por uma mulher
Não conhecia Sharyn Moffett – e confesso isso não sem alguma vergonha, já que sou um velho apaixonado pelos filmes da época de ouro de Hollywood. Mas fiquei com a impressão, ao ler um pouquinho sobre ela agora, que possivelmente a RKO tivesse a intenção de transformar a garotinha em uma nova Shirley Temple, uma nova Judy Garland.
Patricia Sharyn Moffett (1936–2021) nasceu em Alameda, Califórnia, em uma família ligada ao show business – o pai, R.E. Moffett, era cantor, e a mãe, Gladyce Lloyd Roberts, dançarina. Um irmão, Gregory Moffett, também foi ator mirim.
Sharyn tinha 11 meses de idade quando foi filmada para Na Velha Chicago (1938), de Henry King, com Tyrone Power, Alice Faye e Don Ameche. Aos cinco anos de idade, apareceu em um curta dos Três Patetas. Aos sete, estreou no longa-metragem fazendo o papel principal em My Pal Wolf (1944). Tinha seis anos quando, em 1944, foi contratada pela RKO por um período de sete anos!
Entre 1944 e 1948, apareceu em uma dúzia de filmes – e aí sumiu. Em 1955, casou-se com um ministro religioso, James Forrest, e trabalhou junto com ele ao longo de mais de meio século. Morreu em Pittsburgh, em 2021, aos 85 anos de idade.
A segunda característica fascinante deste Child of Divorce é que ele foi escrito e produzido por uma mulher. Lillie Hayward assina sozinha o roteiro – baseado em uma peça teatral, Wednesday’s Child. de Leopold L. Atlas – e também a produção. Ora, diacho, mulher produtora era algo absolutamente raro na Hollywood dos anos 1940! A atriz inglesa Ida Lupino, que começou a escrever roteiros, produzir e dirigir em 1949, foi uma pioneira naquela indústria até então exclusivamente dominada por homens.
Pois então Lillie Hayward veio um pouquinho antes de Ida Lupino!
Na verdade, Lillie Hayward (1889-1977) trabalhou pouco como produtora. Mas colocou seu nome como roteirista em 81 títulos, entre 1924 e 1966.
A peça Wednesday’s Child, de Leopold L. Atlas, aparentemente não teve grande sucesso na Broadway. Sob direção de H.C. Potter, ficou em cartaz no Longacre Theatre de janeiro a março de 1934. Apenas 56 apresentações.
Aprendo agora que a expressão Wednesday’s Child vem de um antigo poema inglês que diz que “Wednesday’s child is full of woe”, a criança da quarta-feira é cheia de dor.
No mesmo ano da peça, 1934, foi feita uma primeira adaptação para o cinema, com o título da original, Wednesday’s Child, no Brasil Culpa do Divórcio, dirigida por John S. Robertson, com Edward Arnold, o ator de vários filmes de Frank Capra, como Ray, o pai. A criança, nesse filme, era um garoto.
Pouco conhecido, o filme não é citado em vários guias
Diz o verbete sobre o filme no livro The RKO Story:
“Com o número de divórcios na América chegando a mais de 250.000 por ano, a RKO decidiu tirar a poeira de Wednesday’s Child e filmar a história de novo, mudando o título para Child of Divorce. A produtora estreante Lillie Hayward manejou o filme sob a tutelagem do produtor executivo Sid Rogell; ela também escreveu o roteiro (baseado em uma peça de Leopold L. Atlas) sobre uma hipersensível garota (Sharyn Moffett) que não consegue se reconciliar consigo mesma depois da separação de seus pais. Richard O. Fleischer, outro novato, dirigiu com um olhar atento que era simpático aos seus personagens sem superprotegê-los. A pequena Miss Moffett dominava claramente o filme, embora Regis Toomey e Madge Meredith, como o pai e a mãe, e Walter Reed e Doris Merrick, como ‘o outro homem e a outra mulher’, também se destacassem. (Aqui o livro revela o fim da história, que eu, claro, deixo de fora.) Esse desenlace com um pouco comum tom pesado feriu o apelo popular do filme, mas a única falha do filme é um excesso de integridade artística.”
Aqui, o verbete do Film Guide da britânica Time Out:
“O modesto primeiro longa-metragem de Fleischer, sobre a reação de uma criança ao divórcio, é uma beleza. O roteiro de Lillie Hayward, baseado em uma peça (Wednesday’s Child, de Leopold L. Atlas) evita todas as armadilhas possíveis. Os dois pais (Toomey e Meredith) querem o melhor para a criança; seus parceiros são genuínos em seu desejo de se tornar amigos, mas a própria criança, em parte por causa de brincadeiras dos amigos, e em especial porque simplesmente não compreende, permanece obstinadamente desacomodada.”
Em seguida, o verbete revela os acontecimentos bem do final da narrativa, o que me recuso a fazer, porque seria um danado de um spoiler. E termina assim: “Fleischer não comete erros, e as crianças (Sharyn Moffett como a menina infeliz, Ann Carter como sua amiga), estão assombrosas.”
Astonishing, essa palavra de som gostoso, é o termo usado no original para qualificar as atuações das duas atrizes mirins – e aqui é preciso registrar que Ann Carter interpreta Peggy Allen, garota que se torna amiga de Bobby nos eventos mostrados nas últimas sequências do filme. Sua atuação é de fato maravilhosa.
Achei duplamente astonishing – assombroso, espantoso, surpreendente – esse verbete do guia da Time Out. Primeiro porque é um guia em geral muitíssimo mal-humorado, que detesta a imensa maioria dos filmes que analisa – e aqui foi generoso, corretamente generoso, na minha opinião. E, em segundo lugar, porque ele foi o único dos meus guias a falar deste Child of Divorce. O livro da RKO fala dele porque fala de todos os filmes do estúdio. Mas o filme não foi comentado no guia de Leonard Maltin, nem no de Steven H. Scheuer, nem do da dupla Mick Martin & Marsha Potter, nem no 5001 Nights at the Movies de Pauline Kael.
Interessante, isso. Uma indicação forte de que o filme se tornou obscuro, pouco conhecido. O que é, sem dúvida, uma pena. Bem, ele agora está disponível no YouTube, grátis como um agradável passeio no parque.
Os pais cometem erros – como todo mundo
Concordo com o que diz o Film Guide da Time Out: o roteiro evita as armadilhas que existem quando se fala sobre divórcio e os problemas que ele acarreta sobre os filhos – e são muitas as armadilhas. A mais grave de todas – e isso me parece evidente – é acabar defendendo que, para evitar o sofrimento dos filhos, o melhor é não haver divórcio. Manter o casamento, ainda que ele torne os pais miseravelmente infelizes.
Esse é o ponto de vista de algumas religiões – mas, na minha opinião, uma religião que exige que o casamento se mantenha mesmo causando profunda infelicidade dos cônjuges não é uma religião que deva ser seguida.
Child of Divorce, felizmente, passa bem longe dessa armadilha terrível.
Mas não concordo com a avaliação tão positiva assim sobre as ações dos pais e dos novos cônjuges. Sim, é verdade que os pais, Ray e Joan, (Toomey e Meredith) querem o melhor para Bobby – só que, como acontece tantas vezes com tantos pais, mesmo querendo o bem da filha, nem sempre eles agem da melhor forma. Cometem equívocos. Louise, a nova namorada de Ray, por exemplo, comete o erro imperdoável de – com a maior boa vontade, é certo – aparecer justamente no primeiro dia em que Bobby finalmente vai estar com seu pai.
E o conselho do dr. Sterling, o médico da família – embora bem intencionado – também não é o melhor que poderia ser dado. E, na visita que faz à filha, já quando a narrativa está quase no fim, Ray comete erros absurdos.
Tudo isso que senti sobre o comportamento dos adultos não é crítica alguma ao roteiro. De forma alguma. Muito antes ao contrário. O filme mostra o que quase sempre acontece na vida real: as pessoas cometem erros, pequenos ou grandes, na hora da separação. Todos nós cometemos. Mas dá para aprender com os erros, e corrigir, e tentar acertar, e acabar acertando, meu Deus do céu e também da Terra!
E digo isso com muita tranquilidade, porque passei por todo o processo, que começou quando minha filha tinha pouco mais de um ano. Houve um período infernal na relação entre minha ex-mulher e eu, mas a gente lutou para preservar da melhor maneira possível a filhinha, para que nosso conflito a afetasse o mínimo possível. Nunca fui impedido de estar presente na vida da filha, mesmo nesse período inicial; ao contrário, mantinha uma rotina de pegá-la na saída da escola e ficar um bom tempo com ela. E, diabo, conseguimos, Suely e eu, criar muito bem nossa filha.
É duro, é difícil, pode haver períodos infernais – e em geral há mesmo -, mas dá perfeitamente para, por amor às crianças, com esforço, com força de vontade, com perseverança, aprender, corrigir, melhorar, sair do fundo do poço.
Em 1946, Ray e Joan não conseguiram – mas Bobby iria, sim, sair do fundo do poço. Felizmente na vida dela apareceu aquela simpática amiga Peggy Allen. Baita ajuda.
Trinta e três anos depois, Ted e Joanna Kramer cometeriam erros também, é claro: não é porque as décadas passam que as pessoas ficam automaticamente melhores diante dos problemas que são atemporais. Kramer senhor e Kramer senhora cometeram o maior erro que pode haver nessa situação: o de não conseguir resolver os problemas com o cônjuge, a pessoa que se amou – e levar o problema para um representante do Estado, um juiz, resolver.
Na verdade, Ted e Joanna Kramer cometeram muito mais erros do que o casal de três décadas antes – mas acabaram aprendendo.
Não sei, não dá para saber, é claro, se Robert Benton, o grande diretor que fez Kramer vs. Kramer, viu esse Child of Divorce antes de começar o seu filme. Mas acho que é bem possível.
A gente aprende com os exemplos. Aprende o que deve fazer e o que, pelamordeDeus, deve evitar…
Anotação em 4/2023
Filhos do Divórcio/Child of Divorce
De Richard Fleischer, EUA, 1946
Com Sharyn Moffett (Bobby Carter, a garotinha de oito anos),
Regis Toomey (Ray Carter, o pai de Bobby),
Madge Meredith (Joan Carter, depois Joan Benton, a mãe de Bobby),
e Walter Reed (Michael Benton), Una O’Connor (Nora, a empregada dos Carter), Doris Merrick (Louise Norman, a nova namorada de Ray Carter). Harry Cheshire (o juiz), Selmer Jackson (dr. Sterling), Lillian Randolph (Carrie), Patricia Prest (Linda), Gregory Marshall (Freddie), George McDonald (Donnie), Patsy Converse (Betty), Ann Carter (Peggy Allen, a colega de Bobby no internato)
Roteiro Lillie Hayward
Baseado na peça “Wednesday’s Child”. de Leopold L. Atlas
Fotografia Jack MacKenzie
Música Leigh Harline
Montagem Samuel E. Beetley
Direção de arte Ralph Berger, Albert S. D’Agostino .
Produção Lillie Hayward, RKO Radio Pictures.
P&B, 66 min (1h06)
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