(Disponível na GloboPlay em 3/2023.)
Filme de estréia do então jovem demais Nelson Pereira dos Santos, Rio, 40 Graus, de 1955, é indiscutivelmente um marco excepcional, um divisor de águas. Uma obra que “iniciou o cinema moderno no Brasil a partir do diálogo com o neo-realismo italiano”. “O precursor e o inspirador do que viria poucos anos depois a ser o cinema novo”, o mais importante movimento do cinema brasileiro.
O fantástico, o maravilhoso é que, visto hoje, 67 anos depois de sua estréia em amplo circuito em março de 1956 – o segundo mês do governo Juscelino Kubitschek –, Rio, 40 Graus não tem nada que lembre naftalina, peça de museu importante mas antiga, envelhecida, gostinho de clássico hoje chato, pesado.
Não, nada disso. Muito antes ao contrário. Tem um frescor primaveril, a animação de coisa feita com amor, garra, juventude, fé.
Claro, o Rio de Janeiro de 1955 é bastante diferente do Rio de Janeiro de hoje – ao contrário, digamos dos cenários de um filme rodado há quase 70 anos em Paris ou Roma, cidades cujas paisagens, em vários locais, permanecem quase exatamente idênticas. A Avenida Atlântica ainda não havia sido duplicada, a faixa de areia na Praia de Copacabana não havia sido ampliada, no Botafogo visto do Pão de Açúcar ainda havia poucos prédios, o próprio bondinho e as três estações dele foram totalmente modernizadas – isso para dar só uns poucos exemplos de lugares mostrados no filme. Mas o Pão de Açúcar, o Morro da Urca, o Corcovado, o Cristo lá em cima, o Maracanã, até muitos dos prédios da Atlântica estão praticamente idênticos.
A pobreza nos morros é exatamente a mesma.
(Claro: os morros mudaram muito ao longo deste monte de décadas. O morro do filme é o de 1955, muito antes das drogas, das quadrilhas do tráfico, dos tiroteios, das balas perdidas, das operações policiais que deixam grande número de mortos.)
Rio, 40 Graus é uma ode ao Rio de Janeiro e aos cariocas, um samba-enredo fino e elegante como uma composição de Paulinho da Viola – mas é, sobretudo, um hino de amor às pessoas pobres, humildes, despossuídas. O povão.
Não há propriamente uma história – há pessoas
É impressionante como o filme tem a ver com o neo-realismo italiano – o mais importante movimento cinematográfico da História, surgido na Itália do imediato pós-guerra, o país arrasado, devastado.
Exatamente como preconizavam os criadores do neo-realismo, a imensa maior parte das tomadas de Rio, 40 Graus é de externas. Nada de estúdio – até porque Nelson Pereira dos Santos, exatamente como Roberto Rossellini ao filmar seu Roma, Cidade Aberta (1945), tinha pouquíssimo dinheiro. Tudo foi filmado ao ar livre, nas ruas, nas favelas, nos locais turísticos, em tudo quanto é lugar. Também seguindo fielmente os mandamentos do neo-realismo, misturavam-se diante da câmara atores e não-profissionais.
E, também como nos filmes italianos feitos entre 1945 e a primeira metade dos anos 1950, o tema central, a razão de ser eram os pobres, a classe trabalhadora. Até porque, exatamente como a maioria dos realizadores, roteiristas, atores e técnicos do neo-realismo, Rio, 40 Graus e os filmes que seguiriam o caminho aberto por ele no cinema novo foram feitos por gente de esquerda, socialistas, comunistas, idealistas, defensores, como diria o ainda jovem Gianni Perego interpretado por Vittorio Gassman em Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), de “una società più giusta”.
O grande historiador francês Georges Sadoul notou semelhança entre Rio, 40 Graus e Domenica d’Agosto (1950), de Luciano Emmer – enquanto euzinho aqui vi grande paralelo entre o filme e Stazione Termini, que Vittorio de Sica lançou em 1953, apenas dois anos antes de Nelson Pereira escrever e dirigir seu primeiro filme.
Mas, agora, seria necessário fazer uma sinopse do filme, um resumo da história.
Acontece que uma das características encantadoras de Rio, 40 Graus é que o filme não tem assim exatamente, propriamente uma história, uma trama, um enredo, um entrecho.
Tem muitos personagens – e não tem propriamente uma história.
É um caleidoscópio, um mosaico, uma espécie de quadrilha drummondiana de pessoas do Rio de Janeiro – dezenas e dezenas e dezenas de pessoas apresentadas para o respeitável público, ao longo de um dia de domingo, desde a manhãzinha até a noite alta.
Os créditos iniciais mostram os nomes de 64 pessoas que aparecem ao longo dos 100 minutos de duração do filme. Seis nomes de atores que figuram em destaque, 44 outros nomes apresentados aparentemente por ordem de aparecimento na tela, nove participações especiais e mais os cinco garotos vendedores de amendoim. Isso sem contar as pessoas das alas de duas escolas de samba, a Portela e a Unidos do Cabuçu. Nada menos de 64 pessoas – atores e não-profissionais – citadas nominalmente nos créditos
É gente pra cacete.
Está absolutamente correta a primeira frase que vemos nos créditos iniciais, enquanto, atrás das letras, vão surgindo paisagens do Rio filmadas de dentro de um avião: “Nelson Pereira dos Santos apresenta a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em
Rio, 40 Graus”.
Não é à toa que, ao final desses créditos iniciais que dá vontade de a gente ver várias vezes, para perceber detalhes aqui e ali, nas paisagens e nos nomes dos créditos, há a frase gloriosa:
“Agradecemos à população do Rio de Janeiro”.
O que Nelson Pereira mostra nas telas é a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Entre os protagonistas, cinco garotos
Um caleidoscópio, um mosaico, uma espécie de quadrilha drummondiana de pessoas do Rio de Janeiro, sem propriamente uma história.
Sim, é verdade – mas há, muito bem bolados e bem colocados, fios condutores. São fios condutores da narrativa o grupo de crianças que vende amendoim torradinho, a moça bonita Alice, o malandro gente boa Miro e seu amigo inseparável Neguinho. Todos eles moradores da favela do Morro do Cabuçu.
Dezenas de personagens aparecem uma vez apenas e depois somem. Muitos aparecem e depois reaparecem, ao longo daquele dia de domingo em que se passa toda a ação. Mas esses aí que citei logo acima, esses estão presentes ao longo de toda a narrativa. São os protagonistas.
Os nomes dos meninos aparecem nos créditos iniciais: Edison Vitoriano, Nilton Apolinário, Paulo Estevão, José Carlos de Araújo, Haroldo de Oliveira. Eu, pelo menos, não consegui identificar quem é quem. Eles em geral andam juntos, mas há momentos em que cada um vai para um lado. O mais jovem de todos é um garotinho de rosto lindo que parece não ter mais que uns oito anos de idade. Tem como mascotinha uma lagartixa, que guarda numa caixinha de fósforo. Ele experimenta, lá pela metade da narrativa, uma perda que para ele é bastante dura.
O que parece mais velho é um adolescente alto aí de uns 14, talvez 16 anos de idade, não sei – sempre acho difícil definir as idades das pessoas. Esse é um personagem que faz o espectador sofrer com ele: sua mãe está muito doente, de cama, e o rapaz tem a obrigação de conseguir um bom dinheiro com a venda do amendoim para comprar remédios. E é justamente ele que perde todo o seu ganha-pão, quando, na Praia de Copacabana, um rapagão classe média, todo folgadão, danado de antipático, chuta a lata do garoto e os pacotinhos de amendoim caem no chão.
Exatamente como nos filmes italianos, os do neo-realismo e os das décadas seguintes, de 60, 70, 80, os pobres são bons; da classe média para cima, as pessoas são gente ruim, mau-caráter. Ruim da cabeça e doente do pé.
Com esse garoto da mãe doente irá ocorrer a pior tragédia que acontece ao longo de todo o filme.
Uma moça bonita, outra triste, outra sem caráter
Alice, a moça bonita (o papel da atriz e cantora Cláudia Moreno), tem uma mãe que faz tudo na casa e um pai que não faz coisa alguma na vida a não ser beber cachaça. Só bem mais para o final do filme, quando já está de noitão, ficamos sabendo que ela vem a ser a rainha da Grêmio Recreativo e Escola de Samba Unidos do Cabuçu. Quando a vemos pela manhã, no início da narrativa, só sabemos que ela está namorando sério, na verdade está quase noiva, de um tal Alberto – o que deixa possesso Miro, que é assim meio o rei da malandragem ali no morro, e arrasta as asas pela bela Alice.
Miro (o papel de um Jece Valadão novinho de tudo, com 25 anos de idade em 1955) é respeitado por todo mundo no morro. É bom de briga – já houve ocasião de ele enfrentar vários ao mesmo tempo, e bater em todos – , mas, dizem, só briga por coisa justa. Seu companheiro mais constante, que vai acompanhá-lo na tarde daquele domingo ao Maracanã, para ver o clássico que decidirá o campeonato, é Neguinho, o papel do também jovem (diacho, eram todos jovens, em 1955!) Zé Kéti.
À noite, na grande festa da Unidos do Cabuçu – que receberá a visita de algumas alas da Portela –, Alice deverá comparecer com o tal Alberto. E cria-se um certo suspense: como será que o nervoso e apaixonado Miro vai encarar o rival?
Como acabar em samba é a melhor maneira de se começar, na festa da escola a rainha Alice cantará (com a própria voz de Cláudia Moreno que a interpreta) “A Voz do Morro” – e aqui vai um caso gostoso de brincadeira da ficção com a realidade, já que a canção esplêndida (“Eu sou o samba, sou natural aqui do Rio de Janeiro, sou eu quem leva alegria para milhões de corações brasileiros…”) é uma composição de Zé Kéti, o compositor que interpreta Neguinho.
Ao longo de todo o filme, como se preparando o espectador para o clímax final na festa da escola de samba, ouvimos acordes de “A Voz do Morro”, que se misturam a trechos da trilha sonora composta pelo grande Radamés Gnattali para o filme.
Ao longo de todo o dia de domingo, de todos os 100 minutos do filme, vamos vendo aqui e ali os meninos do amendoim, Miro e Neguinho, a bela Alice – enquanto vai desfilando diante de nós um grande número de personagens mais passageiros. Dois que não são nem tão passageiros assim – porque aparecem em umas três ou talvez até quatro sequências – são a triste Rosa e o meio safado Pedro. Os papéis, respectivamente, de Glauce Rocha e Roberto Batalin.
Pedro está fazendo o serviço militar. Rosa gostou dele – e deu para ele. Agora, neste domingo em que os vemos, a moça está grávida, e tenta forçar o pracinha a se apresentar ao seu irmão e prometer que vai casar. Era assim: ajoelhou tem que rezar. Comeu tem que casar.
Fala-se na possibilidade de um casamento também na historinha de personagens do outro lado da pirâmide social – entre os ricos. É assim:
Chega ao Aeroporto de Santos Dumont, no início da tarde daquele domingo (estamos com uns 45 minutos de filme) um grande proprietário de terras, suplente de deputado, amigo íntimo do ministro fulano. É o papel de Modesto de Souza (na foto abaixo), que compõe o ricaço como uma espécie de Jeca Tatu de Mazzaropi só que cheio da grana. A figura é recebida por representantes do ministro, repórteres e puxa-sacos, entre os quais Chico, um sujeito que andava enrolado em acusações de corrupção. Chico está acompanhado pela mulher e pela jovem e linda filha, Maria Helena (o papel de Ana Beatriz). Oferece-se para hospedar o ricaço, na esperança de conseguir sua ajuda para limpar seu nome junto ao tal ministro – e, quem sabe, conseguir o grande golpe do baú caso o homem se interesse pela bela jovem.
O homem se interessa muitíssimo pela bela jovem – e o impressionante, e triste, é que a moça, ao contrário do que se poderia esperar, não acha nada ruim a possibilidade de se casar com o latifundiário. Muito ao contrário – joga todo seu charme para cima do horroroso pote de ouro.
É aquela moral de sempre nos filmes de realizadores socialistas, comunistas ou simpatizantes, em especial entre os anos 50 a 80, seja na Itália, na França, no Brasil: moça pobre é decente, boa, perfeita, imaculada. Bem, às vezes não tão imaculada assim, como a coitadinha da Rosa, que o Pedro comeu antes de se casar com ela. Já moça de classe média pra cima, essa não presta, não tem bom caráter.
Cláudia Moreno, Ana Beatriz, Zé Kéti…
Confesso, com alguma vergonha, que não conhecia as duas atrizes que fazem as moças mais bonitas da galeria de personagens do filme.
Cláudia Moreno (1932-2021), fluminense de Cabo Frio, foi contratada pela TV Tupi do Rio de Janeiro entre 1951 e 1961, período em que teve como colegas Tito Madi, Elizete Cardoso e Lúcio Alves. Estrelou, nas boates do Copacabana Palace, Night and Day e Plaza, os grandes shows de Carlos Machado, Caribé da Rocha e Haroldo Costa, ao lado de Ataulfo Alves, Marisa Gata Mansa, Lana Bittencourt, Grande Otelo. Gravou – além de Zé Keti –Tom Jobim, Vinícius de Morais, Ary Barroso, Mário Lago, Toquinho. Gravou “Ronda” de Paulo Vanzolini – e, diacho, eu não sabia de nada disso. E não me lembro de ter visto matérias sobre ela nos jornais quando morreu, recentemente, em 2021.
Cláudia Moreno era nome artístico – o de batismo era Aldina Soares Barroso. Ana Beatriz também era nome artístico – nos papéis, aquela moça de beleza esplendorosa que faz Maria Helena era Anne Beatrice Estill, carioca (nascida em 1932) filha de um casal inglês, Harry Rake Estill e Lilian Estill. Foi modelo, estrelou comerciais de TV nos anos 1950; fez cinema, teatro e TV – e depois abandonou completamente a carreira de atriz.
Em 1959, aos 27 anos, casou-se com um mineiro bonitão que emigrara para o Rio de Janeiro e àquela altura já era bastante conhecido como escritor e editor de livros – três anos antes, em 1956, ele havia lançado O Encontro Marcado, romance de cabeceira de toda a minha geração. Com Fernando Sabino, Ana Beatriz teve três filhos – Bernardo, Mariana e Verônica Sabino. Verônica, claro, teria sua própria fama como cantora. Ana Beatriz se separou de Fernando Sabino em 1969. Com seu nome de nascimento, tem página no Facebook, que, em março de 2023, ilustrava com uma foto de pôr-de-sol sobre o Morro Dois Irmãos, a Pedra da Gávea e o mar do Rio de Janeiro.
E Zé Keti… Que figura imensa, meu Deus.
Fiquei pensando, depois de ver o filme, que Zé Keti foi parte fundamental de dois eventos culturais importantíssimos. O primeiro, claro, foi ter participado como ator e como autor da canção-símbolo deste filme aqui, o filme que “iniciou o cinema moderno no Brasil”, como escreveu o crítico Ismail Xavier no pequeno livro que tem exatamente o título de O Cinema Brasileiro Moderno.
E o compositor esteve também no espetáculo Opinião, ao lado do maraqnhense João do Vale e da capixaba-carioca Nara Leão, outro divisor de águas da cultura brasileira.
Falar sobre Glauce Rocha e Jece Valadão, dois dos principais atores do cinema brasileiro, seria chover no molhado. Só gostaria de registrar que Jece aparece nos créditos iniciais como assistente de direção – e que ainda se passariam oito anos até fazer, com Ruy Guerra e ao lado de Norma Bengell, Os Cafajestes (1963), outro filme desses que marcaram época.
Um defensor da indústria nacional de cinema
Nascido em 1928 (em São Paulo, embora tenha se radicado e feito a carreira no Rio), Nelson Pereira dos Santos tinha 27 anos quando fez seu filme de estréia na direção. Jovem demais, demais – e aproveito para registrar que o caso de Orson Welles, que estreou mais cedo ainda, com 26, é raríssimo. François Truffaut também tinha 27 quando lançou Os Incompreendidos; Jean-Luc Godard tinha 30 no ano de Acossado – só para dar uns poucos grandes exemplos. São exceções. Em geral, chega-se à direção mais tarde.
Tinha já bagagem o jovem Nelson Pereira – teórica e prática. Ainda em 1950 realizara um curta-metragem, Juventude. E havia trabalhado como assistente de direção em O Saci (1953, de Rodolfo Nanni, Agulha no Palheiro (1953), de Alex Viany, e Balança Mas Não Cai (1953), de Paulo Wanderley. Em abril de 1952, havia apresentado no 1º Congresso Paulista do Cinema Brasileiro uma tese com o título de “O Problema de Conteúdo no Cinema Brasileiro”, que defendia – como fariam tantos realizadores da época e os que viriam em seguida com o cinema novo – a criação e fortalecimento de uma indústria nacional forte, capaz de enfrentar a concorrência das produções estrangeiras, em especial, claro, as dos Estados Unidos.
O público, dizia a tese, vinha dando “apoio irrestrito às obras do nosso cinema, porque espera ver mais nele o reflexo de sua vida, de seus costumes, de seus tipos”. A “orientação nacionalista satisfazendo os desejos do público” permitiria, através do “aproveitamento dos assuntos nacionais, na produção dos filmes, a capitalização para a indústria pátria de boa parte desse dinheiro que se evade anos após anos.”
Ver filmes de Hollywood era fazer evadir dinheiro para fora do país.
Bem, a verdade é que dinheiro mesmo para realizar seu primeiro filme, isso Nelson Pereira naturalmente não tinha. Ele procurou diversos financiados, sem sucesso, até que “”um advogado que já orientara Moacir Fenelon neste sentido explicou para Nelson o sistema de cotas, muito usado no começo do cinema e na Itália no pós- guerra. (…) O capital necessário para a cobertura do orçamento do filme compõe-se então do trabalho dos técnicos e artistas (76 pessoas) e do dinheiro dos quotistas (59 amigos) que constituem uma sociedade sui generis com direitos de participação na renda do filme. Esses direitos são proporcionais ao emprego de dinheiro ou trabalho de cada um”.
Rio, 40 Graus foi feito pelo sistema de cotas! Dezenas e dezenas de anos antes da disseminação do termo crowdfunding…
Finalmente pronto, o filme teve problemas com a censura
Os trechos entre aspas no parágrafo aí acima são de reportagem do jornal carioca Diário de Notícias na época da produção do filme, encontrada pelo crítico e historiador Fernão Ramos nos arquivos da Embrafilme. Fernão Ramos usou esse material ao falar sobre Rio, 40 Graus na sexta seção do livro essencial História do Cinema Brasileiro (ArtEditora, 1987), “Os novos rumos do cinema brasileiro (1955-1970)”.
A reportagem do Diário de Notícias relatava que o filme começou a nascer em 1953, em conversas entre Nelson Pereira e o diretor de fotografia Hélio Silva, nos intervalos de filmagem da chanchada Balança Mas Não Cai. Hélio Silva passou em seguida um tempo em São Paulo e Nelson continuou no Rio, “vivendo no subúrbio e em contato com as escolas de samba”. Nelson começou a formatar o argumento do que viria a ser o filme – que ele e Hélio Silva pensaram primeiro em chamar de “Cidade Maravilhosa”, depois de “Um Domingo no Rio de Janeiro”.
As idéias já desenvolvidas, e com o – pouco – dinheiro arrecadado no sistema de cotas, passaram a procurar uma câmara para começar as filmagens. “Depois de muito buscar acabam no velho INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), onde, com uma recomendação do diretor Pedro Gouveia Filho, foram falar com seu veterano diretor-técnico, Humberto Mauro”, relata Fernão Ramos. “Interessado pelo projeto, este acabou emprestando uma velha máquina do Instituto, que foi inteiramente recuperada pela habilidade do fotógrafo Hélio Silva (é interessante notar que, no início da década de 1960, uma das reivindicações do Cinema Novo é que velhas câmeras fossem desencostadas e doadas aos novos cineastas).”
As filmagens foram realizadas no primeiro semestre de 1954. O filme ficou pronto em 1955 – mas teve problemas com a Censura. O chefe do Departamento de Segurança Pública do então Distrito Federal, o dr. Cortes, chegou a argumentar, entre outras coisas, que o filme denegria a imagem do Rio de Janeiro, pois lá nunca fazia tal temperatura… Há indícios, registra Fernão Ramos, de que a atenção da Censura se devia, ao menos em parte, aos vínculos de Nelson Pereira com o Partido Comunista Brasileiro, que, após breves meses de legalidade, a partir de 1945, havia sido banido durante o governo Dutra.
A estréia viria, finalmente, como já foi dito, no mês de março de 1956, algumas semanas apenas após a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência.
Sempre me impressiona como tudo era novo durante o governo JK. A construção da nova capital. A bossa nova. O cinema novo. Parecia que o Brasil iria dar certo – até que veio a Quarta-feira de Cinzas no país, em 1964.
O historiador Sadoul notou logo o talento de Nelson
Ao final do capítulo que escreveu especificamente para a edição brasileira de sua monumental História do Cinema Mundial, lançada em 1963, Georges Sadoul destacou como cineastas importantes que vinham se firmando Nelson Pereira dos Santos e Walter Hugo Khoury, “talvez porque esses jovens realizadores puderam dirigir vários filmes e não apenas um, como tantos outros”. E registra:
“Nelson Pereira dos Santos estreou com Rio, 40 Graus, no qual descreveu um domingo na grande cidade, combinando várias intrigas, os bairros ricos e pobres, os ambientes mais variados. Sem dúvida ele talvez tenha-se inspirado inicialmente em Domenica d’Agosto, de Luciano Emer, mas o valor de Rio, 40 Graus é maior do que o modelo italiano. Em Rio Zona Norte, Nelson Pereira dos Santos não conseguiu o mesmo resultado, apesar de o tema ser ainda o Rio de Janeiro, e de um de seus intérpretes ser Grande Otelo, que se revelou nesse filme como excelente ator dramático.”
Domingo de Agosto é um drama-comédia de 1950, com Marcello Mastroianni e Franco Inrterlenghi em papéis pequenos, pelo que dá para inferir. A sinopse do IMDb é assim: “Uma variedade de pessoas diferentes, adultos, crianças, famílias, jovens amantes e gangues de jovens, passam um domingo na praia de Ostia, nas proximidades de Roma”.
É de fato bem possível que, como sugere Georges Sadoul, Nelson Pereira tenha visto esse filme, e tenha se inspirado nele. Não há problema algum nisso. Mas, como disse bem rapidamente lá em cima, a estrutura do filme me fez lembrar outra obra italiana da mesma época, Stazione Termini (1953), resultado de um encontro entre o grande Vittorio De Sica e o todo-poderoso e todo-mandão produtor David O. Selznick, que teve resultados catastróficos – Selznick picotou a versão original e criou um Frankenstein horroroso lançado nos cinemas americanos como Indiscretion of an American Wife.
O filme se passa quase inteiramente na então recém inaugurada estação ferroviária de Roma, e mostra um momento de angústia de um casal de amantes, ele um italiano filho de americana, ela uma americana casada em visita à Cidade Eterna – os papéis de Montgomery Clift e Jennifer Jones, então sra. Selznick.
Por trás desse encontro desencontrado dos protagonistas, no entanto, o talento de De Sica e do grande roteirista Cesare Zavatttini nos apresentam um fantástico, delicioso, apaixonante caleidoscópio de figuras do povo italiano. À primeira vista, é uma triste história de amor. Na realidade, o que vale mais é o que está em segundo plano – uma declaração de amor às pessoas simples, aos pobres, aos trabalhadores.
Exatamente o que Nelson Pereira dos Santos fez no primeiro filme de sua carreira brilhante.
Anotação em março de 2023
Rio, 40 Graus
De Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1955
Com Jece Valadão (Miro, o malandro), Zé Keti (Neguinho, o amigo de Miro), Cláudia Moreno (Alice, a rainha da Unidos do Cabuçu), Roberto Batalin (Pedro, o jovem militar), Glauce Rocha (Rosa, a namorada de Pedro), Ana Beatriz (Maria Helena), Modesto de Souza (o ricaço proprietário de terras)
e Carlos Moutinho, Hilda Moura, Arinda Serafim, Ivone Miranda, Ary Cahet, Nicolau, Pedro Cavalcanti, Nelson Oliveira, Norival, Hélio, Alfeu Gomes Pepes, Walter Sequeira, Riva Blanche, Carol, Foervan Ribeiro, Oswaldo Catarino, Vargas Junior, Antonio Novaes, Paulo Matosinho, Antonio Carlos, Diamantino Silva, Fenelon Paul, Jader Neves, Paulo Montel, Arnaldo Montel, Domingtos Paroni, Celso Borges, Al Ghiu, Artur José Vieira, Sérgio, Clara Fabrizio, Mauro Mendonça (turista italiano no Pão de Açúcar), José Bonifácio Silva, Jorge Brandão, Jorge Farah, Cleo Tereza, Carlos de Souza, Aloisio Costa, Jarbas Barreto, Elza Vianny, Sofia Alkalai, Julia Gonçalves, Alvaiade.
e, em participações especiais, Sady Cabral (velho no Pão de Açúcar), Jackson de Souza, Paulo Raymundo, Castro Gonzaga, Miguel Rozemberg, Jaime Filho, Nadia Maria (babá na praia), Renato Consorte (homem com cachorro na praia), Martim Francisco (fotógrafo no Pão de Açucar),
G.R. Escola de Samba Portela e G.R. Escola de Samba Unidos do Cabuçu,
“Apresentando os pequenos vendedores de amendoim Edison Vitoriano, Nilton Apolinário, Paulo Estevão, José Carlos de Araújo, Haroldo de Oliveira
Argumento e roteiro Nelson Pereira dos Santos
Fotografia Helio Silva
Música Radamés Gnatalli
Montagem Rafael Valverde
Som Amedeo Riva
Cenografia Julio Romiti e Adrian Samoiloff
Assistente de direção Jece Valadão
Produção Equipe Moacyr Fenelon.
P&B, 100 min (1h40)
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