(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 10/2022.)
O que se fez de filme sobre a Guerra Fria em Hollywood, logo que ela começou, é uma grandeza, uma coisa impressionante. Pouco tempo atrás, vimos um de 1948, baseado em fatos reais, dirigido pelo competente William A. Wellman, com o título exemplar, simbólico, de A Cortina de Ferro/The Iron Curtain. Este Missão Perigosa em Trieste veio apenas quatro anos depois, em 1952.
No original é Diplomatic Courier, mensageiro diplomático. Na França foi Courrier Diplomatique, em Portugal, Correio Diplomático. Mas os exibidores brasileiros sempre foram muito criativos, e então se saíram aí com Missão Perigosa em Trieste.
O diretor é o experiente e eclético Henry Hathaway (1898-1985); apenas entre 1951 e 1953, ele dirigiu sete longa-metragens e mais um segmento do filme de episódios Páginas da Vida/O. Henry’s Full House. O protagonista, o mensageiro diplomático Mike Kells, é interpretado por Tyrone Power, então no auge da fama, um dos maiores galãs de Hollywood. As duas belas mulheres com que ele se envolve, uma americana, uma checa, são feitas respectivamente por atrizes importantes, Patricia Neal (na foto abaixo) e a alemã Hildegard Knef.
Ou seja: é uma produção classuda, de orçamento bom, de um dos grandes estúdios, a 20th Century Fox.
Há uma característica curiosa sobre o filme, citada por todos os que falam dele: entre os atores que fazem papéis pequeníssimos, mínimos, quase coisa de figurante, mesmo, estão Lee Marvin e Charles Bronson! Estavam em início de carreira, e seus nomes sequer são citados nos créditos iniciais. Lee Marvin faz um soldado da MP, Military Police, a polícia do Exército americano, e Charles Bronson faz um agente russo.
A participação deles é de fato mínima – não os reconheci. Só fiquei sabendo que eles estão no filme depois, ao ler sobre ele…
Um abertura em tom solene, sisudo
O filme começa com um tom pesado, sisudo – como se fosse a reconstituição de um grave caso real. A voz treinada, imponente de um locutor (Hugh Marlowe, um ator que trabalhou muito em rádio, além de no cinema) vai narrando para o espectador:
– “O Departamento de Estado, Washington, D.C.” (Vemos o prédio.) “No quinto andar desse prédio fica o Departamento de Comunicação.
Aqui, durante 24 horas dia, são enviadas e recebidas mensagens de áreas conturbadas do mundo: Coréia, Tóquio, Berlim, Trieste.”
Um errinho de lógica dos roteiristas Casey Robinson e Liam O’Brien: seria racional não misturar um país com cidades, certo?
“Na noite de 9 de abril de 1950, uma mensagem chegou através de uma linha direta de Bucareste, Romênia. Desde que a Coréia anunciou que atravessaria o paralelo 38, não recebíamos uma mensagem tão importante.
O nome em código era Projeto Semper.”
Vamos vendo máquinas que em 1952 seguramente eram moderníssimas, a tecnologia mais avançada do mundo.
A mensagem chama a atenção do funcionário lotado ali, que a leva imediatamente para seu superior – e o superior liga para um superiorzão, Butrick (Stuart Randall). Esse Butrick pede uma ligação para a Embaixada em Paris – não uma simples ligação telefônica, mas uma máquina que parece o cruzamento do velho telex com aparelho de TV.
A Embaixada em Paris é informada de que precisa indicar imediatamente um mensageiro experiente, de absoluta confiança, para viajar até Salzburgo, na então Alemanha Ocidental, e lá se encontrar com o agente Sam Carew (James Millican), que deverá entregar ao mensageiro um documento altamente secreto a respeito de algo que está sendo planejado pelos soviéticos.
O mensageiro experiente que a Embaixada em Paris designa é Mike Kells – o papel de Tyrone Power.
Quando vemos Mike pela primeira vez, ele está em um avião que chega a Paris. Logo após desembarcar, ele recebe as novas instruções – que incluem, para sua surpresa, carregar uma arma. E entra em um outro avião, agora rumo a Salzburgo, onde deverá se encontrar com Sam Carew – que, por uma dessas coincidências que há tanto na vida real quanto na ficção, é um grande amigo seu.
Está exausto, e adormece antes mesmo de o avião levantar vôo. A seu lado se senta uma bela mulher – o papel de Patricia Neal, essa atriz que foi adorada por mais de uma geração de cinéfilos.
Em sono profundo, Mike deixa a cabeça escorregar para o lado – e a cabeça se encaixa confortavelmente no ombro de Joan Ross. Quando ele finalmente acorda, fica com vergonha de estar com a cabeça apoiada nela, pede desculpas – mas Joan não parece estar nem um pouco incomodada. Muito ao contrário. Muitíssimo ao contrário. A moça vai demonstrar que ficou muito interessada no sujeito bonitão – e vai demonstrar isso com uma sem-cerimõnia que seguramente deve ter deixado perplexas as audiências em 1952.
A loura pode ser uma espiã soviética
A outra mulher da história, a checa Janine, Mike ficará conhecendo em uma viagem de trem entre Salzburg e Trieste. A viagem é fundamental para a história, para todo o desenrolar da trama.
Quando se vêem na estação ferroviária de Salzburg, Sam Carew – que deveria entregar ao velho amigo e companheiro de serviço no Departamento de Estado o tal segredo secretíssimo – finge que não conhece Mike. E em seguida embarca em um trem para Trieste. Dá para o espectador inferir que Sam evitou o contato com Mike porque estava sendo observado por inimigos, agentes soviéticos – e de fato há, tanto na estação quanto no trem em que os dois americanos embarcam, uns dois ou três homens com aparência um tanto suspeita.
No trem, Sam continua evitando contato com Mike, como se não o conhecesse. Na cabine ao lado dele está uma mulher loura – que, lá pelas tantas, entra na cabine do próprio Sam. Mais tarde Mike ficará sabendo o nome dela, Janine – e ficará convencido de que ela era uma agente soviética.
O trem passa por um longo túnel, as luzes se apagam – e logo Mike percebe que Sam foi assassinado. Nosso herói tem a certeza de que a loura agente soviética participou do assassinato do amigo.
Me alonguei bastante ao narrar esses acontecimentos, mas posso garantir que não vai aí spoiler algum: tudo isso ocorre nos primeiros 15, no máximo 20 minutos do filme. Haverá muita, mas muita coisa a partir daí.
Uma atriz muito interessante, essa Hildegard Knef
Patricia Neal eu conhecia muito bem, e sempre tive grande admiração por ela. A atriz que me surpreendeu neste filme de espionagem no início da Guerra Fria foi Hildegard Knef.
Hildegard Frieda Albertine Knef nasceu em 1925, em Ulm, na Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial, e começou a estudar arte dramática ainda garota, em 1940, com seu país mergulhado no nazismo e na Segunda Guerra. Quando a guerra terminou, com a Alemanha destruída pelas bombas e ocupada e dividida pelos Aliados, a jovem Hildegard era uma atriz em ascensão. Foi a protagonista de Os Assassinos Estão Entre Nóa (1946), um drama que foi tido como pioneiro no cinema da Alemanha que começava a se reconstruir após a derrota do nazismo – no filme, ela fazia uma sobrevivente de um campo de concentração que, ao retornar para seu apartamento na Berlim devastada, encontrava morando lá um soldado do exército nazista.
Conta-se que David O. Selznick, o todo-poderoso produtor que havia importado para Hollywood Alfred Hitchcock e Ingrid Bergman, acenou para ela com um contrato sob duas condições: deveria mudar seu nome para Gilda Christian e se declarar austríaca – os alemães não estavam sendo muito bem vistos, naquele momento… Hildegard recusou o convite.
Em 1951, provocou um grande escândalo por aparecer nua no filme Die Sünderin (1951). A Igreja Católica protestou contra o filme. A resposta de Hildegard é para se aplaudir de pé como na ópera: “Não consigo entender tanto tumulto, cinco anos depois de Auschwitz”.
Tentaria uma carreira em Hollywood, distante de David O. Selznick; condescendeu em mudar seu sobrenome para o mais aceitável pelos americanos Neff – e foi com a grafia de Hildegard Neff que apareceu em
As Neves do Kilimanjaro, neste Missão Perigosa em Trieste (1952) e em mais uns três ou quatro filmes americanos. Mas seus filmes mais importantes foram feitos na Europa: além de na Alemanha, trabalhou também na França e na Inglaterra. Em 1963, lançou-se como cantora. Morreria aos 76 anos, em 2002, na Berlim reunificada pós a queda do Império Soviético.
Falei no início do texto que o diretor Henry Hathaway fez sete longa-metragens entre 1951 e 1953, a época deste filme aqui. Gostaria de registrar quais foram eles – uma prova do ecletismo do diretor:
Em 1951 foram três: A Raposa do Deserto, filme de guerra mostrando os anos finais do marechal Rommel, com James Mason no papel do militar do exército nazista; Agora Estamos na Marinha, um filme que mistura guerra e comédia, com Gary Cooper e Jane Greer; Horas Intermináveis, um drama noir sobre um suicida; e O Correio do Inferno, um western bem dramático com Tyrone Power e Susan Hayward.
Em 1952, além desse Missão Perigosa em Trieste, fez um segmento de Páginas da Vida, “The Clarion Call”, drama social e policial sobre o reencontro de dois homens que haviam sido grandes amigos na juventude, e agora estão em lados opostos na lei.
E, em 1953, foram dois filmes: Feitiço Branco, aventura e romance passado no Congo Belga em 1907 com Susan Hayward e Robert Mitchum, e Torrente de Paixão/Niagara, o drama noir sobre um casal em crise que ajudou a transformar Marilyn Monroe na maior estrela de Hollywood.
“Boa direção de Hathaway, mas a trama é confusa”
A história da cidade de Trieste, escolhida para ser o cenário do filme, é uma coisa absolutamente fascinante. É impossível não fazer no mínimo um rápido, incompletíssimo registro. Colônia romana no século II, depois controlada pelo Império Bizantino, tornou-se rival da não distante Veneza – as duas ocupam as duas extremidades a Oeste e Leste da parte mais setentrional do Mar Adriático. Houve longas guerras entre as duas cidades, até que, em 1382, Trieste passou a pertencer ao Império Austríaco, depois Áustro-Húngaro. Em 1918, ao final da Primeira Guerra, foi tomada pela Itália. Em 1945, ao final da Segunda Guerra, a cidade era disputada pela Itália a Oeste e pela então Iugoslávia a Leste.
Em 1952, quando o filme foi feito, Trieste era uma cidade-estado independente, sob a proteção das Nações Unidas, com o nome de Território Livre de Trieste. A cidade era dividido em duas zonas de ocupação pelos aliados que haviam vencido a Segunda Guerra, exatamente como Berlim; uma parte era administrada por Estados Unidos e Reino Unido, e a outra pela Iugoslávia.
Dois anos depois do lançamento do filme, a cidade passou a pertencer à Itália.
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Power procura vingança pela morte de amigo em Trieste, e se envolve em espionagem internacional. Filme sobre a Guerra Fria é interessante, com boas atuações. Procure por Lee Marvin, Charles Bronson e Michael Ansara em papéis pequenos, sem créditos.”
O Guide des Films de Jean Tulard faz uma longa sinopse e uma avaliação curtíssima: “Boa direção de Hathaway, mas a trama é terrivelmente confusa”.
Escrevi umas 170 linhas; o Guide em uma frase resumiu tudo.
Anotação em outubro de 2023
Missão Perigosa em Trieste/Diplomatic Courier
De Henry Hathaway, EUA, 1952.
Com Tyrone Power (Mike Kells)
e Patricia Neal (Joan Ross), Stephen McNally (coronel Cagle), Hildegarde Knef (Janine), Karl Malden (Ernie, sargento da MP), James Millican (Sam Carew), Stefan Schnabel (Platov), Herbert Berghof (Arnov), Arthur Blake (Max Ralli), Helene Stanley (aeromoça), Michael Ansara (Ivan), Sig Arno (chefe do trem), Alfred Linder (Cherenko), Lee Marvin (policial da MP em Trieste), E.G. Marshall (policial da MP em Trieste), Peter Coe (Zinski), Tyler McVey (funcionário), Dabbs Greer (funcionário), Carleton Young (Brennan), Charles La Torre (funcionário francês), Tom Powers (Cherney), Monique Chantal (aeromoça francesa), Lumsden Hare (Jacks), Russ Conway (Bill), Stuart Randall (Butrick), Charles Bronson (agente russo), Hugh Marlowe (o narrador)
Roteiro Casey Robinson, Liam O’Brien
Baseado no romance “Sinister Errand”, de Peter Cheyney
Fotografia Lucien Ballard
Diretor musical Lionel Newman
Música Sol Kaplan
Montagem James B. Clark
Direção de arte Lyle Wheeler, John DeCuir
Figurinos Charles Le Maire, Eloise Janssen
Produção Casey Robinson, 20th Century Fox.
P&B, 97 min
**1/2
Título na França: Courrier Diplomatique. Em Portugal: Correio Diplomático.
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