Buena Vista Social Club, o documentário que Wim Wenders lançou em 1999, uma co-produção Alemanha-EUA-França-Cuba, é extraordinário, magnífico, excepcional – e de uma imensa importância.
Tudo o que se refere a Buena Vista Social Club – tanto o disco produzido por Ry Cooder (na foto abaixo), gravado em Cuba em 1996 e lançado em 1997, quanto o filme de Wim Wenders – é assim. Extraordinário, magnífico, excepcional – e de uma imensa importância.
O disco – que trouxe de volta um punhado extraordinário de músicos cubanos que haviam desaparecido por décadas – foi um sucesso extraordinário. Encantou as velhas gerações que eram apaixonadas por aquele som magnífico e deixou muita gente das gerações mais jovens de boca aberta, queixo caído e ouvidos maravilhados.
Como diz a Wikipedia, o disco “fue considerablemente aclamado tanto por los críticos como por el público y recibió numerosos elogios por parte de artistas, compositores y publicaciones. Ganó varios premio Grammy en la entrega de 1997. En 2003, el disco obtuvo el puesto número 260 en el ranking de los ‘500 mejores álbumes de la historia’ de la revista Rolling Stone.”
A Wikipedia chama a atenção para um detalhe importante: Buena Vista Social Club é um dos únicos álbuns da lista da Rolling Stone que foi produzido em um país em que o idioma oficial não é o inglês.
Ry Cooder diz, ainda no início dos 105 minutos encantadores do filme, que produz discos há 35 anos – mas aquele foi algo especial em sua vida.
Tudo o que se refere ao Buena Vista Social Club seguramente foi algo muito especial na vida de todos os envolvidos.
Com o fantástico sucesso do disco, e sempre com o apoio de Ry Cooder, organizou-se uma reunião daquele grupo de veteranos músicos para duas apresentações em um grande teatro de Amsterdã, Le Carré, em 11 e 12 de abril de 1998, e depois uma no icônico Carnegie Hall de Nova York, na noite de 1º de julho. Para boa parte daqueles músicos, era a primeira viagem ao exterior. Para todos eles, seguramente, era a primeira viagem para fora da ilha desde 1959.
As três apresentações de gala de todo o grupo Buena Vista Social Club, em Amsterdã e Nova York, foram filmadas por Wim Wenders e a equipe de seu diretor de fotografia, Jörg Widmer, e um grande time de som dirigido (se não estou enganado) por Juan de Marcos González e pelo próprio Ry Cooder.
As performances filmadas ali ocupam a maior parte do documentário de Wim Wenders. Elas são mostradas intercaladas com entrevistas com os músicos em Havana e com belas sequências que mostram a cidade.
É tudo uma maravilha – as apresentações dos músicos, as entrevistas, as sequências em que a câmara passeia por Havana.
São travellings de uma beleza aterradora, assustadora, fantástica – aqueles belíssimos edifícios construídos possivelmente entre os anos 20 e 50 do século passado, e que foram se deteriorando com o passar dos anos após a revolução de 1959 que derrubou a ditadura corrupta e sanguinária de Fulgêncio Batista e instalou o regime comunista.
Ao revermos o documentário agora, mais de duas décadas depois do lançamento, Mary e eu ficamos emocionados, felizes, exultantes, diante de tanta beleza visual e de tamanha riqueza musical.
Fiquei também fascinado – e embevecido – com o que o filme não diz, o que filme decidida e cuidadosamente evita dizer.
Até pelo que não diz este Buena Vista Social Club é grande, é importante.
De maneira decidida, cuidadosa, o filme de Wim Wenders evita falar sobre os motivos pelos quais aquele bando de músicos extraordinários ficou décadas e décadas sumido do mapa, até acontecer de na vida deles aparecer um gringo, um ianque, guitarrista, compositor, produtor de discos. E depois um intelectual alemão que faz filmes maravilhosos.
Cuba é uma fantástica, inigualável usina de sons
Gostaria muito de encontrar um texto – de preferência de alguém de renome – que fizesse um resumo, um sumário da riqueza musical de Cuba. Na falta dele, me arrisco eu mesmo a dizer:
Cuba é um fenomenal celeiro de ritmos, de gêneros musicais. Uma fantástica usina de sons. Creio que, comparáveis a Cuba quanto à riqueza e variedade musicais, só há dois países, Brasil e Estados Unidos – mas só isso já demonstra como a coisa é louca. Afinal, Brasil e Estados Unidos são países de dimensões continentais, dentro dos quais caberia uma quantidade imensa de Cubas… Os EUA, quarto maior país do mundo em extensão territorial, tem 9,3 milhões de km2, e o Brasil, o quinto, tem 8,5. Cuba, colocado em 104º lugar, tem 110 mil km2.
Com população formada – exatamente como a brasileira e a americana – por descendentes de europeus e africanos, com um pouco de indígenas também, Cuba herdou as tradições musicais daqueles dois continentes. Com a vantagem de, ao contrário dos Estados Unidos, e à semelhança do Brasil, ter alto grau de miscigenação – tanto de sangue quanto de cultura.
O chá-chá-chá nasceu em Cuba. O bolero nasceu em Cuba – como dizem, com orgulho, os textos do belo encarte da caixa de CDs Las Leyendas de la Música Cubana, com a Orquesta América e Cuban All Stars, entre eles Chucho Valdés e Omara Portuondo – um lançamento americano de 1997 que tive a sorte de achar e comprar décadas atrás. O ano de produção – 1997 – não engana: essa caixa de CDs veio na esteira do sucesso fantástico do álbum Buena Vista Social Club produzido por Ry Cooder, que trouxe de volta aquelas figuras que haviam ficado em silêncio por décadas.
Bolero, chá-chá-chá, danzón, guaracha, són. Um monte de ritmos, de sons, que tiveram raízes africanas e sofreram influência dos demais países do Caribe, do México, da América Central – e também, é claro, do paísão gigantesco que tem terras a menos de 200 quilômetros de Cuba.
O cinema mostrou várias vezes como era imenso o fluxo de turistas americanos para Cuba, em todas as seis primeiras décadas do século XX. Filmes de diferentes décadas, como A Mulher Proibida (1932), Aconteceu em Havana (1941), Dirty Dancing – Noites de Havana (2004), demonstram como a música, os nightclubs, as orquestras, juntamente com a atmosfera romântica, o clima ameno quando não quente, eram grandes atrativos para milhares e milhares e milhares de americanos passarem férias ou pequenas temporadas na ilha.
E, ao longo daquelas décadas todas, estabeleceu-se uma relação de troca entre músicos do país gigantão e da pequena ilha. Os músicos cubanos sofreram, evidentemente, a influência do jazz de que falava a canção de Carlos Lyra. Não é à toa que, após a redescoberta da música cubana “tradicional” a partir do disco produzido por Ry Cooder em 1997, grande parte da crítica americana tenha se referido ao som do Buena Vista Social Club como “cuban jazz”.
Um senhorzinho pergunta nas ruas onde ficava o clube
Wim Wenders escolheu colocar, bem no início de seu filme, uma sequência em que um senhorzinho cubano vestido nos trinques, passeia a bordo de um belo automóvel, naquele país em que os automóveis mais modernos eram os de 1959. (Isso sem contar os Lada soviéticos, é claro, mas os Lada, vamos e venhamos, não chegam a ser automóveis.)
Com um charutão na mão direita, o senhorizinho pergunta às pessoas onde ficava a sede do Buena Vista Social Club.
Veremos logo depois que ele se chama Máximo Francisco Repilado Muñoz. Isso no registro civil, segundo certidão feita em Siboney, em 1907, se é que naquela época já se registrava o nascimento das pessoas direitinho, no ano de nascimento. Compay Segundo, para o mundo da música – um cantor extraordinário, bom instrumentista (tocava harmônica), mas, sobretudo, um showman. Meu Deus do céu e também da Terra, o que terá Compay Segundo ficado fazendo, durante aquelas décadas em que o mundo não ouviu falar dele?
Mas isso não interessa. Interessa é que Buena Vista, o filme, começa com Compay Segundo perguntando a pessoas nas ruas de Havana se elas sabiam onde ficava o Buena Vista, o clube propriamente dito, o lugar físico em que, até o final da década de 50, grandes músicos tocavam e cantavam bolero, chá-chá-chá, danzón, guaracha, són – o cuban jazz.
É fascinante: da mesma forma que o filme não quer saber de falar por que raios aqueles músicos sumiram durante décadas, ele também acaba não mostrando exatamente em que lugar funcionava o Buena Vista Social Club – o nightclub que acabou emprestando o nome ao disco produzido por Ry Cooder e, dois anos depois, a este documentário do Wim Wenders e também ao grupo de Cuban All Stars reunido para aqueles históricos, memoráveis concertos em Amsterdã e Nova York.
O grupo musical que fez aquelas apresentações imortalizadas por Wim Wenders neste filme aqui prosseguiria se apresentando em palcos de diversos países, ao longo dos anos seguintes. Ia mudando de formação, ia perdendo alguns dos membros originais que partiam para a eternidade, mas ia mantendo o nome, a tradição. Um Buena Vista Social Club esteve no Brasil em 2018, para apresentações em Rio, São Paulo, Florianópolis e Porto Alegre. Não consigo me lembrar por que raios não fui vê-los no odioso Tom Brasil – o lugar é odioso, sim, mas, cacete, para ver aqueles senhores eu iria lá com a maior alegria alegria…
Me ocorreu agora, enquanto escrevia os parágrafos logo acima, que o Buena Vista Social Club grupo musical tem um tanto a ver com aqueles supergrupos de rock & pop, tipo Crosby, Stills, Nash & Young, no sentido de que são uma reunião de grandes astros que tiveram sólida carreira antes de se juntarem para esta nova formação.
Não fica absolutamente claro no documentário de Wim Wenders, mas parece óbvio que cada um daqueles grandes nomes tinha sua carreira própria. Os cantores Compay Segundo, Ibrahim Ferrer (na foto abaixo), Omara Portuondo, o pianista Rubén González, o percussionista Amadito Valdés, o trompetista Manuel Mirabal, o Guajiro… Esse time de craques, essa excepcional seleção só foi reunida no grupo que passou a ser chamado de Buena Vista Social Club porque Ry Cooder foi a Havana, gravou faixas com eles e em seguida lançou o disco com esse nome – e dois anos depois ainda veio o filme.
O documentário é lindíssimo, repito mais uma vez – mas não conta toda a história. Faz questão de não contar toda a história.
“Uma carta de amor à herança musical de Cuba”
“Wenders and Cooder down Havana way” – este é o título do verbete sobre o filme no maravilhoso livro Cinema Year by Year 1894-2000, que fala sobre os fatos mais importantes da história do cinema como se estivesse transcrevendo trecho de jornais das diversas épocas. Esse título é um danado de um jogo de palavras difícil de traduzir, que faz lembrar o título da canção eternizada por Carmen Miranda, “South American Way”.
A “notícia” vem com data de Berlim, 18 de junho de 1999, o dia seguinte à estréia do filme no Festival de Berlim:
“The Buena Vista Social Club é mais do que apenas o filme do álbum de jazz cubano vencedor do Grammy, produzido pelo lendário Ry Cooder. Wim Wenders dirige esse documentário que é uma carta de amor à herança musical de Cuba. Narrado por Cooder, a força-motriz por trás do projeto, ele segue os grandes veteranos do jazz cubano, da grandeza decadente de Havana até Nova York. Wenders intercala trechos de concerto com momentos seminais por trás das cenas e na estrada. Muitos dos músicos envolvidos teriam sido nomes importantíssimos nos anos 1950 e 1960, se não fosse pela Revolução Cubana, o que adiciona pungência à sua apresentação no Madison Square Garden.”
(Hum… aqui o belo livro tropeça: o show em Nova York foi no Carnegie Hall, como já foi dito, e não no Madison Square Garden.)
“Cooder e Wenders haviam trabalhado juntos antes memoravelmente em Paris, Texas. Cooder também reuniu os músicos do Buena Vista Social Club em 1996. O filme resultante celebra não apenas a criatividade dos músicos septuagenários, mas também sua inextinguível paixão pela vida.”
Sim, músicos septuagenários. Antes de transcrever outras opiniões sobre o filme, aproveito essa frase do livro Cinema Year by Year 1894-2000 para dar uma olhada na coisa da idade dos músicos.
Compay Segundo conta no filme que nasceu em 1907 – dois anos antes da minha mãe. Em 1999, quando Wim Wenders o mostrou ao mundo novamente, depois de décadas sumido, estava com 92. Morreria em 2003.
Ibrahim Ferrer, o cantor que, segundo Ry Cooder diz no filme, tem uma voz que não deve nada à de Nat King Cole, é de 1927 – sete anos antes do meu irmão mais velho, Floriano. Em 1999, estava com 72. Morreria em 2005.
O fantástico pianista Rubén González é de 1919. Estava portanto com 80 anos quando o filme foi lançado. Morreria em 2003.
Omara Portuondo (na foto abaixo), aquela gracinha, aquela maravilha que em 2008 gravou um DVD e um álbum com Maria Bethânia, é de 1930, e tinha esbeltos 69 anos quando o filme saiu. Está vivinha da silva no momento em que escrevo, novembro de 2020.
Omara vive, e viva Omara – mas Compay, Ibrahim e Rubén estão mortos. Morreram poucos anos depois do lançamento do filme de Wim Wenders, todos os três.
Se Ry Cooder não os tivesse retirado do absoluto silêncio, e se Wim Wenders não tivesse feito o filme, teriam morrido sem que as gerações mais novas os tivessem visto, ouvido.
E aí vem a questão: por que raios todo esse grande grupo de excelentes músicos desapareceu, sumiu, durante décadas?
Por que raios eles sumiram?
“Devemos a eles alguns momentos de pura felicidade”
Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4 ao filme: “Sedutor documentário sobre o grupo do título, composto por veteranos músicos e cantores de Havana reunidos pelo guitarrista americano Ry Cooder depois de anos de obscuridade. Dois anos depois de ter feito um álbum recordista de vendas e vencedor de prêmios, eles são filmados por Wenders em sessões de gravação, em concertos e em reminiscências sobre sua música e suas vidas. Alguns estão nos seus 80 anos (e até mesmo 90), mas sua música é eterna sua musicalidade, revigorante.”
Há momentos em que simplesmente adoro o que Leonard Maltin escreve.
O Petit Larousse des Films faz um verbete curto, mas em geral correto: “Sucessão de retratos separados por interlúdios musicais de músicos cubanos septuagenários. Reunidos para um álbum que teve imenso sucesso em 1997, esses senhoresinhos, muitas vezes esquecidos, marcaram a história musical de Havana”.
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard:
“Depois de Ry Cooder, o guitarrista de Paris, Texas, Wim Wenders foi a Havana…”
Aqui tenho que interromper. Ry Cooder não é apenas o guitarrista de Paris, Texas. Ry Cooder é o compositor da magnífica, extraordinária, excepcional trilha sonora de Paris, Texas (1984), a obra-prima que Wim Wenders criou a partir da história (tristíssima) de Sam Shepard.
Então vamos lá:
“… Wim Wenders foi a Havana para encontrar velhos músicos cubanos, um pouco esquecidos, que haviam conhecido sua hora de glória nos anos 1930 a 1950 no Buena Vista Social Club. Compay Segundo (que tinha mais de 90 anos) e seus amigos não haviam perdido nada da sua juventude. A câmara de Wenders afetuosamente nos entrega algumas confidências sem grande interesse, mas sobretudo magníficos trechos de suas sessões de gravação e de apresentações em memoráveis concertos, como o do Carnegie Hall em 1998. Sua música é ‘sutil, serena, poderosa’, e devemos a eles alguns momentos de pura felicidade.”
Devemos a esses velhinhos cubanos – e a Ry Cooder, que os redescobriu, e a Wim Wenders, que os filmou – alguns momentos de pura felicidade!
Essa é uma grande verdade, e seria um magnífico fim de texto… Se não fosse aquela questão: mas por que raios afinal esses músicos esplêndidos sumiram durante décadas?
Os músicos e seu som viraram anti-revolucionários
E aqui, mais uma vez, sinto falta de um texto douto, irreprochável, assinado por uma grande autoridade, que eu pudesse transcrever entre aspas, para responder à pergunta que venho – bem propositalmente – fazendo faz tempo neste texto.
Não encontrei ainda esse texto que procuro.
A melhor resposta que conheço para essa questão – por que raios afinal tantos músicos esplêndidos sumiram durante décadas? – está em uma animação de 2010, um maravilhoso filme assinado pelo respeitado realizador espanhol Fernando Trueba juntamente com o célebre ilustrador Javier Mariscal e seu irmão Tono Errando, Chico & Rita.
Chico e Rita, os protagonistas do filme, são músicos que faziam imenso sucesso na Havana da segunda metade dos anos 50 – exatamente como todos os que aparecem no documentário de Wim Wenders. Nos dias “de hoje”, ou seja, da época em que o filme foi feito, 2010, Chico vive de uns trocados que ganha como engraxate. Não continuou vivendo de música – pouquíssima gente se lembra de que, no passado, foi um pianista e compositor famoso.
Quando vi Chico & Rita, e babei diante da beleza do filme, escrevi:
“O espectador fica se perguntando como e por que Chico perdeu a fama, abandonou a música, ficou tão pobre. A resposta virá quando a narrativa se aproxima do fim – e creio que não é spoiler dizer que o fato de Chico e sua música terem caído no esquecimento tem a ver com a revolução de 1959. De repente, a música que se fazia em Cuba até 1959 – aquela música de babar, riquíssima, uma mistura dos ritmos caribenhos todos, rumba, mambo, com um toque de jazz, de improvisação de instrumentistas competentes – passou a ser considerada anti-revolucionária.”
É isso.
Compay Segundo, Ibrahim Ferrer, Omara Portuondo, Manuel Licea, o Puntillita, Rubén González, Orlando López, o Cachaito, Manuel Mirabal, o Guajiro, Anadito Valdéz, Barbarito Torres, Juan de Marcos González, todos eles, assim como o som que faziam, assim como bolero, chá-chá-chá, danzón, guaracha, són – o cuban jazz –, tudo virou anti-revolucionário.
Virou coisa dos gringos, dos imperialistas safados, dos ianques que faziam de Cuba a sua ilha do amor, do romance, o seu quintal, o seu bordel.
Quando a ditadura militar brasileira cresceu várias oitavas e explodiu, em 1968, prendeu Caetano Veloso e Gilberto Gil – e ali por 1970 estavam exilados eles e mais Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré.
Quando a ditadura de Fulgencio Batista foi substituída pela ditadura comunista de Fidel Castro e Che Guevara, os músicos anti-revolucionários não foram presos, nem banidos para o exterior – onde poderiam fazer muito mal ao regime. Foram impedidos de sair da ilha – e relegados ao esquecimento, ao ostracismo, ao oblívio.
Vieram os compositores que falavam bem do novo regime – como os grandes, maravilhosos Silvio Rodriguez e Pablo Milanés, os dois maiores de todos os da nueva trova cubana. E jogou-se sobre aqueles outros a areia do tempo, na esperança de que fossem soterrados para todo o sempre.
O novo regime poderia perfeitamente ter-se aproveitado do talento daquele pessoal. Poderia ter cooptado aqueles cubanos amantes de Cuba, usado seu talento em prol da própria causa.
Verdade, poderia. Teria sido muito mais esperto, inteligente. Mas esperteza, inteligência, esses não são propriamente dons dos ditadores.
Em 1999 era inimaginável condenar Fidel Castro
Ainda sobra uma questão.
Por que raios Wim Wenders não questiona, em seu filme, os motivos pelos quais aqueles músicos maravilhosos foram relegados ao esquecimento, ao ostracismo, ao oblívio?
Ahá…
Dou aqui minha opinião, mostro aqui como eu vejo as coisas.
É apenas minha opinião – a opinião de quem por décadas e décadas admirou com fervor quase religioso a Revolução Cubana, Fidel Castro, Che Guevara.
Mesmo nos anos 90, mesmo depois da queda do Muro de Berlim, mesmo depois que o Império Soviético se desfez feito um castelo de cartas, continuava sendo uma absoluta heresia, para qualquer pessoa que se considerava do bem, do lado certo, nos países do Ocidente, admitir que o regime cubano era pura e simplesmente uma ditadura.
Mesmo em 1999, Wim Wenders não estava preparado para dizer que Fidel Castro era um ditador.
Não cabia. Não era possível.
Ué! Pois se até agora os petistas dizem que a Venezuela de Chávez e Maduro vivia um excesso de democracia, imagine se um intelectual alemão iria admitir em 1999 que foi a cegueira ideológica do regime de Fidel Castro que condenou aqueles músicos extraordinários à morte em vida!
Entendo perfeitamente a posição de Wim Wenders. E não há como condená-lo.
Muito antes ao contrário.
Depois de Ry Cooder, ele é o grande cara a quem devemos agradecer pelo fato de os veteranos cubanos terem saído do esquecimento ao qual tinham sido condenados pela ditadura de Fidel Castro.
Anotação em novembro de 2020
Buena Vista Social Club
De Wim Wenders, Alemanha-EUA-França-Cuba, 1999
Documentário com trechos de shows em Amsterdã e Nova York e depoimentos de
Ry Cooder (guitarra, violão), Joachim Cooder (percussão), Máximo Francisco Repilado Muñoz, o Compay Segundo (voz, harmônica), Ibrahim Ferrer (voz), Omara Portuondo (voz), Manuel Licea, o Puntillita (voz), Rubén González (piano), Orlando López, o Cachaito (contrabaixo), Manuel Mirabal, o Guajiro (trompete), Anadito Valdéz (percussão), Barbarito Torres (alaúde), Juan de Marcos González (guitarra, voz e percussão), Filiberto Sanchéz (tímpanos), Angel Terry Domech, Manuel Galbán (guitarra), Hugo Garzón, Carlos Gonzalez (bongô), Pío Leyva (voz), Octavio Calderon,
Roteiro Wim Wenders
“Conceito original” de Nick Gold
Fotografia Jörg Widmer
Montagem Brian Johnson
Produção Deepak Nayar,
Cor, 105 min (1h45)
Disponível no DVD.
R, ****
Belo texto, à altura do assunto enfocado. Obrigado! Quem ainda não conheça o disco ou o filme, não deve deixar pra depois, vale muito a pena.
Epa!
Muito obrigado, Edilson – pelo comentário e por sua gentileza!
Um abraço!
Sérgio