A Odisséia dos Tontos / La Odiseia de los Giles

3.5 out of 5.0 stars

O diretor e autor Sebastián Borensztein e o ator de quase tudo quanto é filme argentino Ricardo Darín têm acertado sempre, a cada vez, uma depois de outra.

Se a gente enxergasse a vida como um eterno Fla x Flu, ou uma Libertadores de América, com um Corinthians (ou Flamengo, ou Internacional) versus Boca (ou o River, que fosse), ou um Pelé x Maradona, seria o caso de ficarmos, do lado de cá, absolutamente despeitados: como os caras fazem bons filmes, meu!

Sem brincadeira: a parceria Borensztein-Darín tem resultado em belíssimos filmes.

E impressiona muito o fato de que a qualidade se mantém enquanto a dupla faz filmes ora em tom leve, suave, ora em tom extremamente sombrio.

Em 2011 fizeram Um Conto Chinês, uma deliciosíssima comédia – embora, é claro, abordasse temas sérios. A realidade da vida nestes nossos países do fundo do Terceiro Mundo é séria – mesmo quando a gente tenta vê-la com olhos otimistas, positivos, brincalhões, irônicos.

Em 2016, com Kóblic, deixaram de lado qualquer possibilidade de graça. Fizeram um drama sério, denso, pesado, que tinha como pano de fundo um dos episódios mais terríveis, mais dilacerantemente pavorosos da época em que os países do Cone Sul foram tomados por ditaduras militares sanguinárias – os vôos da morte, os vôos em que militares argentinos lançavam para o fundo do mar corpos dos opositores do regime.

E então, em 2019, Borensztein e Darín se uniram mais uma vez para contar, muito bem contada, uma história sobre a Argentina e os argentinos dos anos recentes.

A história tem como pano de fundo outra tragédia argentina. Não tão mortalmente apavorante quanto os vôos da morte – mas também danada de triste.

Uma tragédia portenha que parece com uma que seus irmãos brasileños enfrentaram em 1990, quando Fernando Collor assumiu o governo e confiscou tudo o que nós tínhamos no banco.

O pano de fundo da história criada por Eduardo Sacheri e roteirizada pelo autor em parceria com o diretor Sebastián Borensztein é o “corralito” – a tentativa heterodoxa de segurar a inflação crônica argentina levada a cabo em 2001.

Um treco parecido com tantas outras tentativas esdrúxulas que foram feitas no Brasil – Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão, o Plano Collor do confisco da poupança – antes da chegada do Plano Real, o único deles que deu certo.

O “corralito”, no entanto, só aparece quando o filme está aí com uns 20 e poucos minutos.

Nos primeiros 20 dos deliciosos 116 minutos de La Odiseia de los Giles, ficamos conhecendo aquele bando de “giles”, de tontos, que são os protagonistas da história.

Dois filmes são citados. E a gente se lembra de um terceiro

La Odiseia de los Giles cita especificamente dois filmes: 2001 – Uma Odisséia no Espaço, a obra-prima de Stanley Kubrick de 1968, e Como Roubar Um Milhão de Dólares, a gostosa comedinha que William Wyler cometeu em 1966, em que os personagens de Audrey Hepburn e Peter O’Toole, lindos de morrer, planejam roubar uma estátua preciosíssima de um museu de Paris.

A citação ao filme de Kubrick começa pelo título – o uso da palavra “odisséia” – e é reforçada logo de início, antes mesmo que o espectador veja a primeira tomada: a tela ainda está totalmente negra, depois que vemos os logotipos das empresas produtoras e as entidades que ajudaram a financiar a produção, e começamos a ouvir a valsa “Danúbio Azul”, que ninguém, absolutamente ninguém que gosta de cinema consegue ouvir sem lembrar das imagens do 2001 de Kubrick.

O filme de William Wyler é citado quando o filme já está ali pela metade. Fermín Perlassi, o personagem de Ricardo Darín, está pensando em uma forma de burlar um sofisticado equipamento de segurança, que emite alarme, quando se lembra de Como Roubar Um Milhão de Dólares. Vai atrás do filme (como eu, Fermín tem uma boa coleção de DVDs), e vê mais uma vez as tomadas em que os personagens de Peter O’Toole e Audrey Hepburn jogam um boomerang no museu, fazendo com que o alarme seja tocado. Os dois acionam o alarme tantas, mas tantas, mas tantas vezes, sem que nada no museu seja tocado, que o presidente da França, em pessoa, pede pelo amor de Deus que desliguem o maldito troço.

Citações explícitas, bem explícitas, à seriíssima ficção científica de Kubrick e Arthur C. Clarke e à comedinha suave, gostosa, do veterano William Wyler.

Mas há outro filme que vem necessariamente à cabeça da gente ao ver esta Odisséia dos Tontos: O Incrível Exército Brancaleone, aquela também deliciosa comédia feita por Mario Monicelli em 1966, em que, na Idade Média, um cavaleiro desajeitado, despreparado, trapalhão, interpretado por Vittorio Gassman, lidera os tipos mais desajeitados, despreparados, trapalhões jamais reunidos em um único filme.

A expressão Exército Brancaleone pode não ter chegado aos grandes dicionários, mas, para todo mundo que viu o filme de Monicelli, virou sinômimo de grupo de trapalhões, de tipos incrivelmente engraçados e incompetentes.

Em A Odisséia dos Tontos, esse Fermín Perlassi interpretado por Ricardo Darín réune o Exército Brancaleone mais brancaleônico – depois do original – que já houve nas telas do cinema.

Uma abertura excepcional, maravilhosa

A abertura do filme é uma absoluta maravilha.

O que vem depois também é uma maravilha, mas a abertura é de aplaudir de pé como na ópera. Revi para degravar a fala inicial, e fiquei ainda mais boquiaberto do que quando vimos pela primeira vez.

A tela toda negra ao som do “Danúbio Azul” que traz à memória o 2001 – Uma Odisséia no Espaço, e entra a voz inconfundível de Darín dizendo este texto soberbo, magnifico:

– “Segundo o dicionário, tonto é uma pessoa lerda, a quem faltam esperteza e astúcia. Embora saibamos que gente trabalhadora, honesta, que cumpre as normas, acabou virando sinônimo de tonto. Mas um dia o abuso a que nós, tontos, estamos acostumados, se converte em um verdadeiro chute no saco. E aí a gente diz: Basta. E se descobre fazendo algo que nunca teria imaginado que seria capaz de fazer.”

Enquanto vamos ouvindo esta introdução, dita devagar, com alguns intervalos entre uma frase e outra, começamos a ver as primeiras imagens – uma noite de muita chuva, um grupo de pessoas com capas de chuva, o rosto do próprio Darín.

No momento em que ouvimos a última frase – “E se descobre fazendo algo que nunca teria imaginado que seria capaz de fazer” –, há uma tremenda explosão. Uma tremenda, tremenda de uma explosão, filmada de cima – e aí surge o título na tela, La Odisea de los Giles.

La Odisea de los Giles cita 2001 – Uma Odisséia Espacial e Como Roubar Um Milhão de Dólares e nos faz lembrar de L’Armata Brancaleone. E eu seria capaz de jurar que, quando bolou que o filme começaria com aquela tremenda explosão, Sebastián Borensztein estava pensando em Zabriskie Point, o filme americano do mestre Michelangelo Antonioni de 1970 sobre a América do final dos anos 60, a terra da contracultura, dos protestos contra a guerra, que termina numa fantástica explosão.

Têm um tanto a ver entre si, essas obras: são todos belos filmes, e são todos da década de 60, a tal que a gente achava que tinha mudado tudo.

Sebastián Borensztein não é jovenzinho; nasceu em Buenos Aires em 1963. Demonstra que viu exaustivamente os filmes feitos nos anos em que nasceu.

Fermín e a mulher planejam criar uma cooperativa

Na primeira sequência do filme após aquele intróito descrito acima, após surgir na tela o título, vemos três pessoas diante de um imóvel abandonado – o prédio de uma indústria de armazenamento e beneficiamento de grãos. O nome ainda está no pórtico – La Metódica.

Fermín Perlassi-Ricardo Darín e sua mulher Lídia (Verónica Llinás, na foto acima) estão apresentando para o amigo Antonio Fontana (Luis Brandoni, também na foto) a grande idéia: comprar o imóvel, investir ali um dinheiro e dar emprego para algumas dezenas de pessoas.

Empreender. Fermín e Lídia querem empreender. Investir, empreender, trabalhar, dar trabalho para as pessoas do vilarejo em que vivem, Alsina.

– “Me explique melhor, não estou compreendendo”, diz Fontana. – “Vocês querem fazer um empreendimento aqui, exatamente no lugar de uma empresa que faliu?”

É completamente diferente, diz Fermín, e Lídia apóia com firmes movimentos positivos de cabeça. Agora será uma cooperativa – e vai ajudar os pequenos fazendeiros da região.

Um empreendimento coletivo, solidário. Muita gente simples juntando esforços.

Já nessa primeira sequência após vermos o título na tela, Fermín passa a ser também, além de personagem, o narrador da história. Ele nos apresenta Antonio Fontana – assim como nos apresentará os demais componentes de seu Exército Brancaleone logo em seguida.

Antonio Fontana – ele conta para o espectador – é um “revolucionário de alma”. Chegou ali ao vilarejo em 1984, quando Alfonsin assumiu – uma deliciosa forma de situar o espectador, argentino ou não, no contexto histórico. Vinha dirigir o centro de asfaltamento regional – a grana nunca chegou, a mulher se cansou dele e do lugar, se mandou com os meninos, mas Fontana ficou. Nos anos 90, abriu uma borracharia. Afinal, em tempos de crise ou não, os pneus furam, e as pessoas precisam de uma borracharia.

Fontana e o casal Perlassi estão ainda diante das ruinas de La Metódica, a empresa que havia falido 10 anos antes. Ele pergunta: – “E vocês acham que é um bom momento de investir?” Fermín e Lídia respondem entusiasticamente que sim. – “O que mais pode acontecer?”, Fermín pergunta.

Assim que ele faz essa pergunta, vemos na tela as seguintes palavras, bem grandes: “Argentina – Agosto de 2001”.

Nosotros, brasileños, não temos a obrigação de lembrar do que estava acontecendo na Argentina em agosto de 2001. Nuestros hermanos argentinos tampoco tendrían la obligación de lembrar o que estava acontecendo no Brasil no dia 15 de março de 1990 – a véspera do anúncio do Plano Collor, o do confisco da poupança.

Várias pessoas entram com todas as suas economias

Para comprar o imóvel abandonado de La Metódica dos filhos do antigo dono seria necessário que Fermín e seu amigo Fontana recorressem a todos os amigos que conseguissem juntar.

Eles vão à luta para formar seu Exército Brancaleone. Obtêm o apoio de Rolo Belaúnde (Daniel Aráoz), “o melhor mecânico do pueblo e o chefe da estação ferroviária, embora o trem não pare mais por aqui”, conforme nos informa a voz em off de Fermín-Darín, enquanto vemos um trem passando – a toda velocidade – pela estação de Alsina.

Rolo – o narrador nos informa algumas vezes – é um peronista convicto. Um peronista mais peronista do que qualquer outro. E o filme nos mostra que ser peronista é mais ou menos a mesma coisa que um português ser sebastianista – um adorador de Dom Sebastião, o que, depois de desaparecer no mar, passou à História como “O Desejado” ou “O Adormecido”. Algo mais ou menos parecido com ser um getulista, ou, mais esdrúxulo ainda, se é que é possível, um lulista.

Virão também os irmãos Gómez, Eládio e José (interpretados por Alejandro Gigena e Guillermo Jacubowicz), dois sujeitos mais burros que qualquer porta. Mais Atanasio Medina (Carlos Belloso), outro sonso absoluto, um sujeito que mora junto da lagoa próxima a Alsina. A cada estação de chuvas, a casa dele é inundada, a prefeitura recolhe a família; depois de anos disso, a prefeitura ofereceu uma grana para que ele se mudasse dali. Medina pegou a grana – mas não se mudou.

Há ainda Carmen (o papel de Rita Cortese), a única, além de Fermín, Fontana e Lidia, que não é apresentada como uma pessoa perto da burrice, da patetice absoluta. Carmen é a pessoa mais rica de Alsina – é a dona de uma empresa de transportes. Perdeu o marido, e não confia nada no seu filho Hernán (Marco Antonio Caponi), rapagão aí de uns 20 e poucos anos.

Carmen entra com dinheiro para essa aventura empreendedora chefiada por Fermín e Fontana – com mais dinheiro que todos os demais sócios. Mas os demais também entram com todas as suas economias – os irmãos Gómez, Medina, Rolo Belaúnde, mais o Turco Safa (Ramiro Vayo).

Os argentinos costumam poupar em dólares

Aqui, neste ponto da história, há algo que é muito especificamente argentino.

Brasil e Argentina têm muitas coisas parecidas – assim como, naturalmente, um porrilhão de dessemelhanças.

Já se falou muito no efeito Orloff – eu sou você amanhã. Tanto em referência ao Brasil, que imitaria a Argentina em seguida, quanto em referência à Argentina, que repetiria amanhã os erros de ontem do Brasil.

A Argentina teve Juan Domingo Perón, o Brasil teve Getúlio Dornelles Vargas, ditadores com imagem de pai do povo, e que passaram ser adorados ao longo de décadas e décadas. Os dois países tiveram nos anos 60 e 70 ditaduras de direita sangrentas. Os dois não conseguem deixar de cair no conto do populismo esquerdóide barato, eles com os Kirchner, nós com o lulo-petismo – o que no és lo mismo, pero és igual.

Um ponto que nos distancia, e é muito bem mostrado no filme, é a dolarização. Os argentinos têm, muitíssimo mais que nós, uma dependência absoluta do dólar.

O Brasil teve umas oito moedas diferentes, nas últimas décadas, assim como a Argentina também trocou de moeda. Tivemos inflação horrorosa, assim como eles. E as pessoas aqui até guardam notas de dólares, como uma forma de poupança, ou de expectativa de viagem – mas é completamente diferente da forma com que os argentinos vêem o dólar.

Os argentinos poupam em dólar. Guardam notas de dólares em casa. Em vez de ter investimentos em banco, guardam notas de dólares em casa. Todo mundo – mesmo os de classe média baixa.

E essa é de fato uma das bases da trama do filme.

“O que mais pode acontecer?”

Um confisco, uai! Um “corralito”!

Filmes que falam de mazelas de forma leve, gostosa

Me impressiona como o cinema argentino sabe falar dos problemas, das mazelas, das feridas da sociedade, do país, de uma forma bem humorada, leve, brincalhona.

Me impressiona como tantos, tantos filmes argentinos se concentram na classe média.

Me impressiona como tantos, tantos filmes argentinos falam de pessoas como nós – como o eventual leitor e eu mesmo. Gente “normal”. Gente – como diz o filme – “trabalhadora, honesta, que cumpre as normas”.

Me impressiona como tantos, tantos filmes argentinos mostram uma visão de mundo humanista, progressista, de esquerda, em favor da solidariedade, da amizade, contra a concorrência maluca – de uma forma suave, positiva, pra cima. Sem histeria.

Tudo tão bastante diferente do que fazem tantos, tantos filmes brasileiros.

Anotação em agosto de 2021

A Odisséia dos Tontos/La Odiseia de los Giles

De Sebastián Borensztein, Argentina-Espanha, 2019

Com Ricardo Darín (Fermín Perlassi), Luis Brandoni (Antonio Fontana), Verónica Llinás (Lidia Perlassi, a mulher de Fermín), Chino Darín (Rodrigo Perlassi, o filho de Fermín e Lídia), Daniel Aráoz (Rolo Belaúnde), Germán Rodríguez (Deluca), Rita Cortese (Carmen Largio), Alejandro Gigena (Eladio Gómez), Guillermo Jacubowicz (José Gómez), Ramiro Vayo (Turco Safa), Martha Piatigorsky (Señora de Llanos), Carlos Jorge Piñeiro (Flaco Cacheuta), Carlos Belloso (Atanasio Medina), Marco Antonio Caponi (Hernán, o filho de Carmen), Ailín Zaninovich (Florencia, a secretária de Manzi), Andrés Parra (Fortunato Manzi, o advogado bandido), Luciano Cazaux (Alvarado, o gerente do banco), Javier Abril       (Fernando, o caixa do banco), Ruben Albarracín (Saldaño, o que cava o buraco), Karina Hernández (Alicia Gómez, a enfermeira que cuida de Saldaño)

Roteiro Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri

Baseado em novela de Eduardo Sacheri

Fotografia Rodrigo Pulpeiro

Musica Federico Jusid

Montagem Alejandro Carrillo Penovi

Produção K&S Films, Kenya Films, Kramer & Sigman Films, Mod Producciones, Televisión Española (TVE), Televisión Federal (Telefe).

Cor, 116 min (1h56)

Disponível no Now em agosto de 2020

***1/2

Título nos EUA: Heroic Losers.

6 Comentários para “A Odisséia dos Tontos / La Odiseia de los Giles”

  1. E o final é maravilhoso, especialmente a cena da borracharia, com o grande Brandoni!

  2. Seu texto, com suas reminiscências e comparações, é divino. O filme é 4 estrelas 🙂

  3. Uau, Senhorita!
    Está meio friozinho, mas vou ter que abrir a janela, porque meu ego inflou demais com seu elogio e não cabe aqui no escritório!
    Brincadeira à parte, é claro que adorei sua mensagem! Muitíssimo obrigado pela gentileza!
    Um grande abraço.
    Sérgio

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