Boneco de Neve / The Snowman

1.0 out of 5.0 stars

Boneco de Neve é um filme para entrar para a História do cinema. É um absoluto fenômeno. Baseia-se em um livro excelente, de imenso sucesso de público e crítica, um dos romances do grande escritor norueguês Jo Nesbø.

Tem um elenco impressionante, cheio de ótimos atores de diversas nacionalidades: o alemão Michael Fassbender e a deslumbrante sueca Rebecca Ferguson nos principais papéis, mais a francesa Charlotte Gainsbourg, os americanos J.K.Simmons, Val Kilmer e Chloë Sevigny, o inglês Toby Jones.

É uma produção que reuniu dinheiro vindo de Inglaterra, Estados Unidos, China, Suécia e Japão.

Tinha tudo para ser um ótimo thriller. E, no entanto, é uma porcaria, uma absoluta porcaria. É um filme desinteressante, confuso, cheio de pontas que não se amarram e a rigor incompreensível.

Foi o que eu achei, foi o que Mary achou – mas não fomos só nós. O fascinante é que essa parece ter sido a opinião ampla, geral e irrestrita.

Os livros de Nesbø são aterrorizantes – mas não há fantasmas

Quando terminei de ler Boneco de Neve, escrevi que um outro livro de Jo Nesbø, O Redentor, trazia personagens, situações, dramas, estrangeiros, não noruegueses – assim como a trilogia Millennium, do vizinho sueco Stieg Larrson. Já Boneco de Neve, ao contrário, dispensa as tragédias estrangeiras. Tudo é norueguês.

Transcrevo um trecho da minha anotação sobre o livro:

“Não há grandes complôs internacionais. É tudo feito em casa. É tudo a loucura de que o ser humano é capaz – seja ele norueguês, do país do maior IDH do mundo, seja latino, anglo-saxão, asiático, o que for.

“Talvez dizer isso seja um spoiler, mas o fato é que a trama de Boneco de Neve tem a ver com conceitos morais. Aliás, moralistas.

“No capítulo 1, em que a ação se passa em 1980, acontece uma trepada de uma mulher infiel ao marido – uma adúltera.

“A partir daí se dá uma imensa seqüência de crimes apavorantes. Absolutamente apavorantes.

“Todos os crimes cometidos nos filmes de terror das últimas décadas são suaves, diante dos crimes que Jo Nesbø cria e narra.

“Os livros de Jo Nesbø são aterrorizantes – mas não há nada neles que sequer levemente toque o sobrenatural. É tudo pão pão, queijo queijo. Não há fantasmas. É tudo feito de matéria que se pega, se toca.”

O inspetor Harry Hole é um personagem fascinante

Sim, a trama de Boneco de Neve é isso: uma sequência de crimes apavorantes. Com o grande diferencial de que quem os investiga é o inspetor de homicídios da Polícia de Oslo Harry Hole, o personagem criado pela imaginação, pela sensibilidade, pelo talento de Jo Nesbø. Harry Hole está para Jo Nesbø como Sherlock Holmes para Arthur Conan Doyle (ou para o médico John Watson, dependendo da interpretação do leitor), Miss Marple e Hercule Poirot para Agatha Christie, Philip Marlowe para Raymond Chandler, Sam Spade para Dashiell Hammett, Mario Conde para Leonardo Padura, o delegado Spinosa para Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Todos esses detetives e/ou investigadores citados aí são personagens interessantes, fascinantes – cada qual, é claro, à sua maneira. Harry Hole tem muito mais a ver com os americanos Marlowe e Spade e o cubano Conde do que com as criaturas dos britânicos Conan Doyle (ou Watson) e Agatha Christie. Igualzinho a Marlowe, Spade e Conde, é chegado a uma cachaça. A rigor, o nível de alcoolismo dele é ainda mais avançado do que os de seus colegas.

Na época em que investiga os crimes descritos no livro Boneco de Neve, está lutando brava, bravissimamente contra o vício – e está conseguindo vitórias, embora a duras penas.

Assim como o carioca Spinosa, Harry Hole é um leitor compulsivo de boa literatura. E assim como o cubano Conde, é absolutamente apaixonado por música pop. Ao longo do livro Boneco de Neve, cita Neil Young, Johnny Cash, Dolly Parton. Gosta de cinema também, é claro, e tem especial afeição por A Malvada/All About Eve, o grande clássico de Joseph L. Mankiewicz. Tem gosto parecido com o meu.

Tem um grande amor. É desesperadamente apaixonado por Rakel, uma bela mulher independente, mãe de um filho adolescente e problemático, Oleg (que se afeiçoou muito pelo namorado da mãe). Rakel também foi – ou ainda era, na época da ação – muito apaixonada pelo policial tão competente quanto perturbado, mas chegou uma hora em que não o aguentou mais. Naquelas semanas, meses, em que Harry está investigando os crimes apavorantes, Rakel está com um namorado firme, um médico chamado Mathias.

O roteiro foi muito reescrito, o diretor teve problemas

Uma das grandes falhas de Snowman, o filme, é que nele não vemos direito esse personagem tão rico que é Harry Hole. Michael Fassbender, esse ator que tem sido elogiadíssimo por praticamente todos os filmes que faz, não parece ter se envolvido com o personagem.

Mostra-se pouquíssimo a luta de Harry contra o alcoolismo. Vemos um pouco de sua relação com Rakel (o papel de uma Charlotte Gainsbourg que não é mostrada hora nenhuma em close-up), vemos um pouco de sua relação com o garoto Oleg (Michael Yates), mas não há intensidade, profundidade… É tudo um tanto en passant.

Sim, há a beleza estrondosa dessa moça Rebecca Ferguson no papel de Katrine Bratt, uma policial da cidade de Bergen que é colocada para auxiliar Harry Hole nos casos dos assassinatos em série. Me pareceu que o roteiro aumentou um tanto a importância de Katrine Bratt na trama. Não que isso seja propriamente um problema.

O grande problema, creio, é mesmo o roteiro. Não conseguiram construir um roteiro à altura da obra de Jo Nesbø. A rigor, não conseguiram construir um roteiro consistente, compreensível.

A forma com que os nomes dos roteiristas são apresentados nos créditos já indica que houve problemas. É dito que o screenplay é “by Peter Straughan and Hossein Amini and Søren Sveistrup”. A palavra “and”, aí, segundo os critérios do Writers Guild, o sindicato dos roteiristas, indica que não houve uma parceria, um trabalho a seis mãos. Não: a palavra “and” indica que Peter Straughan escreveu um roteiro, que depois foi reescrito por Hossein Amini, que depois for reescrito por Søren Sveistrup.

Pior ainda: o diretor Tomas Alfredson disse e repetiu, em entrevistas, que não conseguiu filmar cerca de 15% do roteiro final. Assim, as montadoras Thelma Schoonmaker e Claire Simpson tiveram que se virar para tentar juntar tomadas que resultassem num filme coerente faltando 15% do material que estava no roteiro.

Fica bastante claro que não dá para se ter um filme com uma história compreensível dessa forma.

Como é possível que tenha dado tudo errado?

O IMDb dá a informação: “Thomas Alfredson falou mal do filme e o renegou uma semana antes da estréia nos cinemas, afirmando que ele ‘não funcionava’.”

Alfredson – que realizou em 2011 o ótimo O Espião Que Sabia Demais, baseado em livro de John Le Carré – afirmou que teve que encerrar as filmagens antes que gostaria, por pressão dos produtores. As filmagens na Noruega foram encurtadas, de tal forma que a produção pudesse continuar em Londres, o que comprometeu seus planos. Além disso, faltou dinheiro para que ele filmasse cenas que pretendia fazer. No final, foi aquilo: faltaram uns 15% do que estava no roteiro. Assim, várias subtramas ficaram sem fim, sem solução, alguns personagens desapareceram sem qualquer explicação. E a versão final ficou com vários erros de continuidade e furos na trama.

Isso que está no parágrafo acima não é coisa da minha cabeça, não, tá? Foi tudo tirado do IMDb – de declarações atribuídas ao próprio diretor.

No site rogerebert.com, em que um grupo de críticos acrescenta novos textos aos belíssimos deixados pelo próprio Roger Ebert, a crítica sobre The Snowman – assinado por Glenn Kenny – começa assim:

“Em 2075, se o homem ainda estiver vivo, se a mulher tiver podido sobreviver, e eles começarem a escrever sobre o cinema do século 21, The Snowman será um excelente objeto de estudo. Talvez àquela época já tenha sido possível juntar provas suficientes para explicar por que um filme feito por um grupo de talentos de primeira categoria acabou virando uma confusão tão pesada, tão sem brilho.”

E aqui vão três títulos de textos de leitores do IMDb sobre o filme:

“Incoerente, incompreensível e um dos mais mal montados filmes da História.”

“Um desastre.”

“Um caso único de como fazer cinema ruim.”

Sim, sem dúvida: The Snowman é um absoluto fenômeno.

Anotação em julho de 2020

Boneco de Neve/The Snowman

De Tomas Alfredson, Inglaterra-EUA-China-Suécia-Japão, 2017.

Com Michael Fassbender (Harry Hole),

Rebecca Ferguson (Katrine Bratt, a policial vinda de Bergen),

Charlotte Gainsbourg (Rakel, a ex-namorada de Harry),

Jonas Karlsson (Mathias, o atual namorado de Rakel), Michael Yates (Oleg, o filho de Rakel), Ronan Vibert (Gunnar Hagen), J.K. Simmons (Arve Stop, o milionário), Val Kilmer (Rafto, o policial de Bergen), David Dencik (Vetlesen), Toby Jones (Svensson, o chefe de Harry), Genevieve O’Reilly (Birte Becker), James D’Arcy (Filip Becker), Jeté Laurence (Josephine Becker), Adrian Dunbar (Frederik Aasen), Chloë Sevigny (Sylvia Ottersen e Ane Pedersen, irmãs gêmeas)

Roteiro Peter Straughan e Hossein Amini e Søren Sveistrup    

Baseado no livro de Jo Nesbø 

Fotografia Dion Beebe

Música Marco Beltrami

Montagem Thelma Schoonmaker, Claire Simpson

Casting Jina Jay

Produção Universal Pictures, Another Park Film, Perfect World Pictures, Working Title Films.

Cor, 119 min (1h59)

(O filme esteve disponível na Netflix, mas saiu do catálogo em dezembro, conforme informa, gentilmente, Francisco Verani, em comentário abaixo.)

*

3 Comentários para “Boneco de Neve / The Snowman”

  1. Só para esclarecer: o filme Boneco de Neve saiu do catálogo da Netflix em dezembro de 2020. Abraços, obrigado

  2. Sergio, penso o mesmo que você: livro excelente, elenco diferenciado e o filme consegue ser um absoluto horror. Nem consegui assistir até o final, o que é raro.

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