O Apartamento, de 2016, veio para reafirmar uma vez mais: o realizador iraniano Asghar Farhadi é um fenômeno, um talento extraordinário.
Ou, como escrevi três anos atrás, depois de ver o filme anterior dele, O Passado, de 2013: “Asghar Farhadi confirma ser um dos mais brilhantes, mais talentosos realizadores em atividade. Procurando Elly, de 2009, é uma obra-prima. A Separação, de 2011, é um primor, um espetáculo, uma maravilha. O Passado é do mesmo nível dos dois anteriores. Três filmes geniais um atrás do outro. É de tirar o chapéu para o sujeito. Asghar Farhadi tem um estilo próprio, único, sui generis. Isso é algo extremamente raro, difícil de se achar. Só os grandes, os imensos – Bergman, Fellini, Antonioni – têm isso.”
Até no detalhe de usar sempre os mesmos atores em vários de seus filmes o iraniano é semelhante aos gênios citados na frase anterior.
Sim: é muito impressionante como Farhadi – ele próprio autor ou co-autor das histórias que conta e dos roteiros – conseguiu criar e manter um estilo próprio, único, filme após filme. E, como é assim, vou me permitir transcrever aqui alguns trechos do que já escrevi sobre os três filmes anteriores do diretor, porque as observações todas valem perfeitamente também para O Apartamento.
Gente de classe média, com vida confortável, sem grande ligação com a religião
Seus personagens são sempre homens e mulheres da classe média. Ao contrário de vários realizadores iranianos nas duas últimas décadas, que focalizaram a vida de pessoas mais pobres, muitas vezes beirando a miséria, Farhadi retrata gente que não passa pela falta das coisas mais básicas. Seus personagens são homens e mulheres na faixa dos 30 aos 40 e tantos anos, que tiveram boa educação, fizeram faculdade, têm empregos razoavelmente bem remunerados, moram em bons apartamentos, dirigem seus carros.
Os homens vestem-se praticamente como qualquer ocidental. E as mulheres usam apenas os obrigatórios véus cobrindo os cabelos, mas nada de burka, nada daquelas capas que escondem todo o rosto. Apenas véus cobrindo os cabelos.
É quase como se eles não vivessem em uma terrível ditadura teocrática, em que o poder maior, supremo, é dos aiatolás, em que há uma forte censura à imprensa e às artes e uma incansável perseguição aos que não respeitam os rigores do islamismo xiita.
De classe média, educados, letrados, os personagens dos filmes de Asghar Farhadi não são especialmente religiosos – como, de resto, acontece nas grandes cidades todas do mundo ocidental. Nunca vemos os homens e mulheres dos filmes de Farhadi fazendo orações a Alá, curvados no chão, voltados para Meca.
Emad e Rana Etesami, o casal de protagonistas de O Apartamento, se parecem bastante com os personagens de À Procura de Elly, A Separação e O Passado em vários desses aspectos citados aí acima. São classe média, não têm problema de falta de dinheiro, não passam por nenhuma necessidade básica. Vivem em Teerã, num apartamento amplo, confortável. Os dois trabalham no teatro – na época mostrada ao longo dos 124 minutos de filme, estão primeiro ensaiando e depois participando de uma montagem de A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Emad faz o papel central, o do caixeiro viajante do título, e Rana faz sua mulher.
Ele está aí com uns 38, 40 anos, ela talvez com uns 30, 32. Ainda não tiveram filhos. Além de trabalhar no teatro, ele também dá aula para uma classe só de rapazes no colegial – ensina literatura. É um bom professor, e é benquisto pelos alunos.
Ao contrário da imagem clássica que se poderia fazer de um casal em país islâmico, Emad – exatamente como Nader, protagonista de A Separação – não é um sujeito machista na sua relação com a mulher. Muito ao contrário. Os dois se respeitam, se tratam de igual para igual.
Emad é interpretado por Shahab Hosseini – e esta, que eu saiba, foi a terceira vez em que o ator trabalhou sob a direção de Asghar Farhrad. Ele esteve em À Procura de Elly e A Separação.
Rana é interpretada por Taraneh Alidoosti – e esta foi a quarta vez em que a bela atriz trabalhou com o diretor. Esteve também em Beautiful City (2004, sem título no Brasil), Fireworks Wednesday (2006, sem título no Brasil) e À Procura de Elly.
Surgem rachaduras no prédio, e as famílias têm que deixar seus apartamentos
Na primeira sequência de ação do filme – após créditos iniciais em caracteres da língua farsi, em que vemos o cenário da peça de teatro que a companhia dos protagonistas vai montar, na foto acima) –, os moradores do prédio de Emad e Rana estão sendo obrigados a sair correndo para a rua, no meio da noite: acabam de surgir grandes rachaduras nas paredes do edifício, e teme-se que ele possa desabar.
A câmara mostra rapidamente a causa das rachaduras: no terreno bem ao lado do prédio, está sendo escavado um grande buraco, para as fundações de um novo edifício. O filme não se preocupa em falar mais sobre o assunto, mas dá para o espectador imaginar que houve algum erro na obra, não houve o escoramento necessário do terreno.
As rachaduras, afinal, nem foram tão graves assim, e presume-se que haverá obras de prevenção e em questão de meses os apartamentos serão liberados para seus moradores. Mas o fato é que todas aquelas famílias de repente terão que encontrar um lugar para morar durante alguns meses.
Um colega do casal no grupo de teatro que está montando a peça de Arthur Miller, Babak (interpretado por Babak Karimi), tem um apartamento que estava alugado para uma mulher, mas a mulher acabou de sair de lá. Oferece para o casal, e Emad e Rana vão lá ver.
O apartamento é obviamente bem pior do que aquele que o casal foi obrigado a deixar. E ainda há um problema: a antiga inquilina havia deixado lá uma enorme quantidade de pertences – móveis, roupas, sapatos, a bicicleta do filho garoto. Mas Emad e Rana não têm para onde ir; resolvem ficar naquele apartamento até poder voltar para o deles.
É lá que vai acontecer a tragédia que irá mudar completamente a vida do casal.
Como em seus outros filmes, tudo começa num dia-a-dia comum, normal
Exatamente como em À Procura de Elly e A Separação, a trama deste O Apartamento começa bem simples – vai mostrando o dia-a-dia dos personagens, um dia-a-dia normal, comum, como de tantos milhões de outras pessoas. Apenas passado algum bom tempo é que surge um fato imprevisto, inesperado – que vai acabar mudando definitivamente a vida de todos os envolvidos.
Em À Procura de Elly acontece de Elly de repente desaparecer, no meio do fim de semana em que um grupo de oito amigos viajou para a praia. Neste O Apartamento, acontece – quando o filme está ali com uns 20, talvez 30 minutos, não sei dizer com precisão – que Rana é atacada por um homem no momento em que tomava banho no apartamento para o qual o casal havia se mudado fazia alguns dias.
Rana tinha chegado em casa antes do marido. Alguém toca a campainha do porteiro eletrônico do prédio quando ela está pronta para entrar no chuveiro. Certa de que é o marido que tocou, ela aperta o botão para abrir o portão do prédio lá embaixo. Corta, e vemos Emad comprando alguma coisa numa venda. Atrasou-se, por qualquer motivo. Coisas do destino. imprevisíveis, impensáveis – fatais.
Quando ele chega ao prédio, vê sinais de sangue nas escadas. Corre, entra em casa, vai ao banheiro – a câmara não mostra o que ele vê, mas ele certamente viu muito sangue no chão. Os vizinhos já haviam entrado lá e levado Rana para um hospital. Emad corre para lá, médicos e enfermeiros não permitem que ele fique junto dela, mas a câmara a mostra rapidamente, há sangue em seu rosto. Muito provavelmente ela foi atacada e derrubada no chão.
O fato de ela estar nua quando um homem entrou na casa dela será motivo de conversas entre os vizinhos – como se as pessoas tomassem banho de roupa e de véu. Será motivo de conversas também o fato de que Rana, afinal de contas, abriu a porta de entrada do prédio para o homem invasor.
Exatamente como nos filmes anteriores do realizador, neste O Apartamento, depois que a tragédia ocorre, pequenas coisinhas vão se acumulando e tornando o clima que envolve os personagens cada vez opressivo, pesado, turbulento.
Nas tramas de Asghar Farhadi, as coisas começam normais, o dia-a-dia comum de pessoas comuns – mas depois forma-se uma bola de neve que não pára de crescer e vai se transformando em avalanche morro abaixo.
A avalanche que se abate sobre a vida daquele casal se agiganta mais e mais quando Emad vai identificando o homem que entrou em sua casa no momento em que Rana estava no banho.
Não há arroubos, pirotecnia. A câmara se fica nervosa quando há grande tensão
Embora jovem – é de 1972, estava portanto com apenas 44 anos quando O Apartamento foi lançado –, Farhadi tem um estilo absolutamente maduro de filmar. Em geral, sua câmara é tranquila, sem grandes arroubos, sem pirotecnia. Não há abuso de close-ups, ao contrário de alguns realizadores chatos, não há imagens distorcidas, propositalmente mal iluminadas, nada desse tipo de coisa.
Quando eventualmente há algo mais incomum, menos tradicional, é porque faz sentido, porque o momento de fato exige. É assim por exemplo no momento em que acontece a tragédia que marca a vida dos personagens de À Procura de Elly: naquelas sequências do momento exato, há um belo uso de câmara de mão – a câmara ajuda a mostrar o nervosismo que toma conta do grupo de amigos.
Aqui, ele abre o filme com uma câmara de mão em plano-sequência: vemos os momentos nervosos em que Emad chama Rana para que eles desçam as escadas e abandonem o prédio que estaria correndo o risco de desabar, e em que os dois se juntam aos vizinhos na descida tensa através de imagens captadas por uma câmara de mão seguindo – como se ela estivesse também nervosa, tensa – o movimento daquele grande grupo de pessoas.
Mas é só naquele momento de grande nervosismo, agitação. Depois a câmara passa a ser normal, calma, madura.
Interessante é lembrar que A Separação começa de maneira absoluta inversa: a câmara fica parada, imóvel, mostrando o casal que está diante do juiz. São quatro minutos sem corte algum. Aqui é também um plano-sequência, sem corte – mas a câmara, assim como as pessoas que ela filme, não pára um momento.
São histórias e situações universais – poderiam acontecer em qualquer metrópole
Um casal de classe média, estudado, letrado, que leva uma vida normal de gente intelectualizada, com ligação com arte, atores de teatro – e montando uma peça de um americano, o Grande Satã, segundo os aiatolás que dão as ordens na ditadura teocrática instalada no Irã após a derrubada do regime do Xá Reza Pahlevi no final dos anos 70.
A peça de um americano que ainda por cima é judeu! É o Grande Satã com outro Grã Satã!
Um casal em que marido e mulher se respeitam e se tratam de igual para igual.
Se não fosse o fato de Rana estar sempre com um véu cobrindo os cabelos, ela e Emad poderiam perfeitamente ser um casal de Sydney, Moscou, Madri, Toronto, Buenos Aires, São Paulo.
É como se Farhadi fizesse questão de mostrar que Teerã é como outra metrópole qualquer do mundo. Como se ele insistisse em mostrar que pode haver vida normal no Irã dos aiatolás, sem os rigores, a rigidez de uma ditadura xiita.
Dos quatro filmes mais recentes do realizador, só A Separação aborda a brutalidade machista e autoritária do regime – e mesmo assim não é ela que mais importa.
Seus filmes são dramas que têm por trás, como pano de fundo, a situação específica do Irã ditadura teocrática. Mas é de fato pano de fundo, lá atrás. De resto, são histórias e situações universais, que poderiam acontecer em qualquer lugar, em qualquer metrópole do mundo.
Este O Apartamento é, dos quatro filmes dele que já vi, talvez o que mais acentua esse lado universal. O que mais se descola da realidade social específica do Irã.
Há duas ou três rápidas menções a censura. Há muito cuidado para não usar os termos e a noção relativos a prostituição – fala-se que a mulher que ocupou o apartamento de Babak antes do casal Emad e Rana era promíscua, não mais que isso. Há um pouco de falatório (como já foi dito) sobre o fato de Rana ter aberto a porta para o agressor e o fato de ela ter sido vista sem roupa – coisas de uma sociedade forçada a ser especialmente conservadora, apegada demais a noções de que tudo relativo a corpo humano é pecaminoso. Mas é só. Não é nada mais que isso.
O Irã prende e persegue vários de seus cineastas. Farhadi não quer sair do país
Como registrei no comentário sobre A Separação, Asghar Farhadi sempre deixa muito claro que não quer abandonar seu país, se exilar.
Quando os jornalistas ocidentais tentam extrair dele um ataque frontal à ditadura, ele escapole como um peixe ensaboado.
Quer – é o que fica claro por suas atitudes – continuar lá, fazendo seus filmes, escapulindo como peixe ensaboado da censura férrea, rígida, dizendo as verdades que quer dizer, usando os subterfúgios que forem necessários. Quer – como diz Leonard Cohen em “First we take Manhattan” – tentar mudar o sistema lutando por dentro dele.
Artistas e cineastas iranianos partiram para o exílio. Marjane Satrapi, por exemplo, fez no Ocidente, com dinheiro da França e dos Estados Unidos, o extraordinário Persépolis, que jamais passaria pela censura dos aiatolás. Samira Makhmalbaf preferiu usar o subterfúgio de falar de outro país, o vizinho Afeganistão, em seu Às Cinco da Tarde, de 2003, uma co-produção Irã-França, como seu pai, Mohsen Makhmalbaf, já havia feito em 2001 em A Caminho de Kandahar.
Já faz vários anos que Mohsen Makhmalbaf abandonou o Irã – ou melhor, que o Irã expulsou o diretor, e passou a fazer todo o possível para apagar sua vida e sua obra da História, como Stálin fazia com os inimigos. Desde 2009, todos os cerca de 40 filmes feitos por Makhmalbaf e por membros de sua família, assim como seus 30 livros publicados, foram proibidos no Irã. A imprensa do país está proibida de publicar seu nome. Em 2013, o governo mandou retirar do museu de cinema do Irã os 120 prêmios internacionais concedidos ao diretor e aos membros de sua família.
Jafar Panahi, o autor do maravilhoso O Círculo, foi preso; porém, teimoso feito uma mula, mesmo em prisão domiciliar, proibido de fazer filmes, fez um não-filme, o documentário Isto Não é um Filme.
Já Asghar Farhadi continua ainda e sempre fazendo filmes em seu país. Sem esticar demais a corda, sem chocar demais os aiatolás. Trying to change the system from within.
Vai ganhando um monte de prêmios no Ocidente – e continua fazendo seus filmes em seu país.
Os aiatolás seguramente detestam os filmes de Farhadi – mas eles ganham prêmios!
Lembro sempre do checo Milos Forman. Pouco depois de lançar seu O Povo Contra Larry Flynt, de 1996, Forman disse em uma entrevista que acho histórica: “Pertenci a uma geração de diretores checos que foram favorecidos por um instante de abertura” (ele não usou a expressão Primavera de Praga), “que fizeram filmes que foram aprovados no Ocidente, e os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente. E por isso pudemos continuar fazendo filmes, até que os tanques russos invadiram a Checoslováquia, em 1968, e aí eu fugi para cá.”
É exatamente a situação de Asghar Farhadi. Os aiotolás com toda certeza detestam seus filmes – mas os filmes não param de receber prêmios!
Todos os quatro últimos filmes de Farhadi – todos os quatro, sem exceção – foram escolhidos pelo governo iraniano para representar o país na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro.
À Procura de Elly e O Passado não ficaram entre os finalistas, os indicados.
A Separação conseguiu a indicação – e ganhou. O Apartamento também.
O Irã já ganhou dois Oscars, ao longo de sua História. Todos os dois para filmes de Asghar Farhadi.
Segundo o IMDb, antes dele, apenas três outros realizadores não americanos haviam recebido dois Oscars por filmes realizados em seus países de origem: Ingmar Bergman, Federico Fellini e Carlos Saura.
Não é pouca coisa, não. De jeito nenhum.
O Apartamento levou 9 prêmios, fora outras 17 indicações – entre elas, a indicação ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. (Perdeu para Elle, de Paul Verhoeven.) (Na foto, Ashgar Farhadi entre os atores Taraneh Alidoosti e Shahab Hosseini em Cannes, onde o filme foi apresentado.)
Nos EUA e em Portugal, o título foi a tradução literal do original
O Apartamento só chama O Apartamento no Brasil.
O IMDb informa que o título original em farsi, Forushande, significa “the salesman” – como na peça de Arthur Miller que os personagens principais interpretam, Death of a Salesman, no Brasil A Morte do Caixeiro Viajante. O grande site enciclopédico explica ainda que, como na França já havia um filme com o título Le Vendeur, os distribuidores franceses optaram então por Le Client.
Em Portugal, foi O Vendedor – a tradução correta do original farsi.
Forushande foi um tremendo sucesso de público em seu próprio país. Quebrou recordes nas primeiras semanas de exibição – e se tornou o terceiro filme de maior bilheteria na história do Irã.
Deve ter revirado a cabeça de milhares e milhares de iranianos. Deve seguramente ter aumentado a vontade de dezenas de milhares de iranianos de viver em liberdade.
Anotação em novembro de 2017
O Apartamento/Forushande
De Asghar Farhadi, Irã-França, 2016.
Com Shahab Hosseini (Emad Etesami), Taraneh Alidoosti (Rana Etesami)
e Babak Karimi (Babak), Mina Sadati (Sanam), Farid Sajjadi Hosseini (o homem), Ehteram Boroumand (sra. Shahnazari), Mojtaba Pirzadeh (Majid), Maral Bani Adam (Kati), Mehdi Koushki (Siavash), Shirin Aghakashi (Esmat), Emad Emami (Ali), Sam Valipour (Sadra), Sahra Asadollahe (Mojgan)
Argumento e roteiro Asghar Farhadi
Fotografia Hossein Jafarian
Música Sattar Oraki
Montagem Hayedeh Safiyari
Produção Arte France Cinéma, Doha Film Institute, Farhadi Film Production, Memento Films Production.
Cor, 124 min (2h04)
***1/2
Título nos EUA: The Salesman. Em Portugal: O Vendedor. Na França: Le Client.
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