
(Disponível na Imovision em 9/2025.)
Em Sem Ursos (2022), um cineasta iraniano famoso, chamado Jafar Panahi, proibido pela ditadura dos aiatolás de filmar e também de deixar o país, sai de Teerã e instala-se em um povoado distante, bem próximo da fronteira com a Turquia. Dali, em um quarto alugado, dirige remota e secretamente seu novo filme, que está sendo rodado do outro lado da fronteira, bem perto, mas já em solo turco.
Enquanto orienta seu assistente, os atores e as equipes técnicas via tela de laptop, o cineasta se vê, de repente, no fogo cruzado de uma duríssima disputa entre moradores do pequeno povoado.
Sem Ursos não é um documentário. É um filme de ficção – mas uma ficção que tem tantos pontos em comum com a realidade que parece um documentário. Foi escrito, produzido e dirigido por Jafar Panahi, um dos melhores, mais reverenciados e mais laureados cineastas das últimas muitas décadas, um incansável, corajosíssimo crítico da ditadura teocrática da República Islâmica do Irã.
E é ele mesmo que interpreta o Jafar Panahi da história – um diretor de cinema bastante, bastante parecido com ele mesmo.
O filme sobre o Jafar Panahi quase fictício, quase verdadeiro, foi rodado secretamente, sem autorização do governo, sem que as autoridades sequer soubessem. Concluído em maio de 2022, teve sua estréia mundial em setembro no 79º Festival de Veneza, onde recebeu o Prêmio Especial do Júri. Jafar Panahi não esteve presente: havia sido condenado a seis anos de prisão.
Proibido de ser visto em seu país, o filme teve uma carreira internacional de sucesso estrondoso. Depois de Veneza, foi exibido nos festivais de Chicago, Palm Springs, Trieste, Valladolid e Oslo, e amealhou excelentes críticas mundo afora.
No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, ele estava, em setembro de 2025, com 99% de aprovação em nada menos de 110 críticas consultadas. No Popcornmetter, tinha 78% de aprovação dos leitores do site. E no IMDb tinha 7,2 em 10, média das notas dadas por quase 5 mil leitores do site enciclopédico.
Essa aprovação do público é bastante alta. É uma beleza para qualquer filme, mas ainda mais, e muito mais, para uma obra séria, densa, voltada para audiências maduras – e, vamos e venhamos, não propriamente fácil de se ver.
Sim: Sem Ursos é uma beleza, uma maravilha de filme – e, além disso, um manifesto extremamente corajoso contra a ditadura, a ignorância, a submissão cega a normas rígidas, absurdas, impostas pela religião ou pela tradição. Mas não é um filme fácil nem especialmente agradável de se ver. É duro, pesado, tenso – e creio que até um tanto difícil de compreender inteiramente por quem não está ao menos um pouco familiarizado com os costumes, com o contexto social e político do Irã, e com a própria situação em que Jafar Panahi se encontra em seu país.

Nada é dito muito claramente. O espectador tem que inferir
Vou usar em parte a longa, detalhada sinopse da Wikipedia como base para apresentar a história do filme – enxertando, é claro, meus pitacos.
Vindo de Teerã, o cineasta Jafar Pahahi havia alugado um quarto na casa de um morador do povoado de Jaban, perto da fronteira. Passa a maior parte do tempo dentro de seu quarto – que é uma edícula, com entrada independente da casa do proprietário, Ghanbar (Vahid Mobasheri). Vemos que Ghanbar – um sujeito simpático, humilde, um tanto simplório – trata o homem da capital que está pagando bem pelo aluguel com um respeito quase servil. Sua mãe (o papel de Narjes Delaram), uma senhorinha também simpática, agradável, cozinha para o hóspede, oferece mimos a ele.
Fechado no quarto, Panahi conversa via laptop com seu assistente, Reza (Reza Heydari), observa o que está sendo filmado, dá instruções.
No filme que está sendo rodado, um casal de iranianos, Bakhtiar e Zara (os papéis de Bakhtiar Panjeei e Mina Kavani), está tentando obter passaportes falsificados para fugir do país rumo à Europa Ocidental.
Mas o cineasta enfrenta problema difícil: a conexão de internet – da qual ele depende – não é nada boa. É inconstante, cai a toda hora.
É importante registrar: nada é explicado claramente, abertamente, para o espectador. Dá para perceber que Jafar não pode sair do país. Mas não é dito que ele está proibido de filmar, e por isso procurou aquele povoado distante, longe dos olhos dos aparelhos de repressão. O espectador vai tendo que inferir as coisas.

Sem querer, sem saber, ele fotografou um casal proibido
A presença de um homem da capital, e um homem aparentemente rico, já que usa um utilitário caro, novo, e passa a maior parte do tempo fechado dentro do quarto que alugou de Ghanbar, naturalmente causa curiosidade entre os moradores daquele lugar pobre, atrasado, longe de tudo.
Em um dia qualquer, Jafar sai de casa com uma poderosa máquina fotográfica. Vê um garotinho, resolve tirar uma foto dele, pede que ele se sente em um determinado lugar, junto com dois outros garotos.
Ele não percebe – e o espectador também mal tem tempo de ver –, mas, longe do local em que o garoto se sentou, bem mais para trás, há um casal, um jovem casal.
É o que basta para que Jafar se veja no meio de uma guerra.
Uma moça, Gozal (Darya Alei), procura Jafar e, com uma expressão de absoluto desespero, pergunta se ele tirou mesmo uma foto dela com um rapaz, Solduz (Amir Davari). Se alguém vir essa foto – ela diz – “será o inferno”, “haverá sangue”.
Em seguida, Jafar é procurado por um trio de habitantes do povoado, e depois também pelo delegado do lugar (Naser Hashemi). Todos querem saber sobre a foto do jovem casal.
E contam para ele – e para o espectador, é claro – a história:
Quando uma menina nasce, seu cordão umbilical é cortado em nome do seu futuro marido. É a tradição, uma sagrada tradição. O cordão umbilical da moça Gozal havia sido cortado em nome de Jacob (Javad Siyahi), e Jacob pretendia se casar com ela em breve. Mas aí tinha aparecido aquele Solduz, que estaria cortejando a moça, e com isso, desonrando Jacob e sua família.
Jafar Panahi nega que tenha feito uma foto do casal. O delegado, Jacob e seus parentes e amigos não acreditam na afirmação. Exigem que o homem da capital vá até a Sala do Juramento e jure, mão sobre o Corão, que não existe a foto.

Uma câmara que, educadamente, se desvia do explícito
Sem Ursos foi o nono longa-metragem do diretor, nascido em 1960, 19 anos, portanto, antes da revolução que derrubou o regime pró-Ocidente do Xá Mohammad Reza Pahlevi e instaurou a república islâmicas teocrática comandada pelos aiatolás. Estreou na direção aos 28 anos, em 1988, com um curta-metragem. Em 1995, seu O Balão Branco o colocou na cena internacional como um dos cineastas iranianos – como Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf, Asghar Farhadi, Samira Makhmalbaf, Majid Majid, Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha – que surpreendiam o mundo com obras de grande beleza, embora feitas em condições difíceis e enfrentando a censura e a opressão da ditadura teocrática.
Seu O Círculo, de 2000, recebeu 11 prêmios internacionais – inclusive o Leão de Ouro, o prêmio Fipresci e prêmio da Unicef no Festival de Veneza. Quando vi o filme, em 2010, anotei: “É uma obra de uma força imensa, descomunal. Na minha opinião, é um dos mais fortes panfletos feitos nas artes contra a opressão. Algo assim como “Guernica”, de Picasso.”
E mais adiante: “Uma das coisas fantásticas neste filme maior é que o estilo do diretor Panahi, sua câmara, não são nunca explicitamente violentos. Ao contrário. Num mundo em que as câmaras se tornaram cada vez mais explícitas, seja para mostrar feridas, torturas, sexo, transmutação de ser humano em vampiro, o que for, a câmara do iraniano Jafar Panahi é educada. Discreta. Desvia-se muitas vezes do pior. Por exemplo: Pari (Fereshteh Sadre Orafaiy), a mulher que saiu da prisão para ser expulsa da casa da família e sai à procura de alguém que a ajude a abortar, tem enjôos, como todas as grávidas. Em 99% dos filmes do atual cinemão americano ou europeu, a câmara explicita o jorro do vômito. A de Panahi, não; educadamente, discretamente, ela se desvia do óbvio.”

Preso, proibido de filmar, o cara filma de novo
O diretor já havia sido preso pela ditadura dos aiatolás em março de 2010, juntamente com os colegas Mohammad Rasoulof e Mehdi Pourmoussa, além de outras 15 pessoas. Depois de sua prisão, a polícia invadiu a casa da família e apreendeu sua coleção de filmes, tachada de “obscena”. Naquela ocasião, ficou três meses preso.
Sem Ursos ficou pronto em maio de 2022, como já foi dito; a empresa Celluloid Dreams, com sede em Paris, adquiriu os direitos de distribuição mundial.
Depois que o filme foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Veneza, o Ministério da Cultura da República Islâmica do Irã proclamou que a obra era um jogo político, e não um filme – e que, aliás, não tinha licença para ser produzido.
No dia 11 de junho de 2022, Jafar Panahi foi preso novamente, acusado de “propaganda contra o regime”, e em seguida condenado a seis anos de prisão. Mais uma vez houve fortes protestos da comunidade cinematográfica internacional contra a prisão. Aos 65 anos, o cineasta fez uma greve de fome, e, em fevereiro de 2023, foi solto.
Jafar Panahi é uma daquelas pessoas que, por lutarem a vida inteira, Bertold Brecht definiu como imprescindíveis. Sem a autorização das autoridades, de forma secreta – como fez este Sem Ursos –, escreveu a história, roteirizou e filmou seu décimo longa, Foi Apenas um Acidente, Un Simple Accident, It Was Just na Accident, uma co-produção com França e Luxemburgo. (É preciso registrar que diversos dos filmes iranianos das últimas décadas foram produzidos com a colaboração de empresas européias.)
Foi Apenas um Acidente, concluído em 2025, tem, como todas as obras do diretor, um claro, forte tom político. Basicamente, é um thriller. O IMDb usa diversos gêneros para encaixá-lo – ação, aventura, crime, drama, mistério, suspense – e resume a trama assim: “um pequeno percalço provoca uma reação em cadeia de problemas cada vez maiores”. O percalço, o acidente do título, é o atropelamento de um cachorro – o motorista estava viajando à noite com a mulher e a filha, e seu carro pifa com a batida contra o cachorro. A partir daí, fala-se de prisão, tortura, a oportunidade de um torturado se vingar de seu torturador.
Levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2025 – e foi selecionado pela França como seu concorrente ao Oscar de melhor filme internacional na 98ª cerimônia da Academia de Hollywood, a ser realizada no início de 2026. Poderá concorrer, portanto, com O Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho, caso cheguem a ser indicados.

Panahi ousa abrir Sem Ursos com longos planos-sequências
Presto especial atenção ao início dos filmes. Acho que a forma com que o realizador abre sua narrativa é importante demais – as primeiras sequências costumam dar o tom, o jeito, a atmosfera da obra. A rigor, a rigor, os primeiros dez minutos já definem se o filme é bom ou não – e indicam para onde ele vai.
Jafar Panahi abriu este Sem Ursos com dois longos planos-sequência. O primeiro é o do filme dentro do filme, o filme que ele está dirigindo remotamente, via laptop. Bakhtiar, o protagonista masculino, está em uma rua central de uma pequena cidade; há muito movimento ali. Em um café-lanchonete daquela rua, trabalha sua mulher, Zara. (Na foto acima, os atores que fazem o casal, Bakhtiar Panjeei e Mina Kavani.)
O plano-sequência vai indo, vai indo – até que alguém diz “corta”, e o Jafar Panahi meio fictício, meio ele mesmo, começa a conversar via laptop com seu assistente e braço direito Reza.
A conexão de internet cai. O cineasta sai de seu quarto, começa a andar pelo pátio externo, à procura de algum lugar em que volte o sinal da internet. Um homem surge para ver se pode ajudá-lo – veremos em seguida que é Ghanbar, o dono da edícula que Jafar aluga. Ficam os dois tentando achar um local no pátio em que a conexão volte (na foto abaixo).
Tudo em um plano-sequência.
Plano-sequência é algo que cinéfilo de carteirinha em geral adora, sente prazer em ver, quer ver de novo. É arte pura – mas, diacho, é danado de difícil de fazer. Tudo tem que estar absolutamente certo, tudo sincronizado, tudo perfeito. Se há várias pessoas no quadro, então, se a câmara se move, complica mais ainda – se um único figurante errar, ele põe tudo a perder, tem que recomeçar.
E, se o plano-sequência é longo, refazer dá um imenso trabalho.
Agora imagine-se fazer plano-sequência se o filme está sendo rodado às escondidas, secretamente, longe dos braços fortes dos aparelhos de repressão da ditadura.
Fiquei com a sensação, enquanto via o filme, e nos dias seguintes (demorei um tanto para fazer esta anotação), de que Jafar Panahi optou por esses dois longos – e belos, esmerados – planos-sequências como um desafio para si próprio. Tipo: pô, meu, será que eu consigo?
Conseguiu. O cara não é fácil, não.

Belas obras de arte que nascem em meio à repressão
A produtora e documentarista americana Laura Poitras, três indicações ao Oscar, vencedora do prêmio por Cidadãoquatro (2015), escreveu o seguinte: “Assistir a No Bears é experimentar uma espécie de vertigem cinematográfica: um renovado diretor vai para um vilarejo rural para remotamente dirigir um filme sobre amantes fugindo de um país; ele talvez tenha fotografado jovens amantes do vilarejo desafiando as autoridades, e talvez esteja ele mesmo tentando escapar.”
Eis o início do texto do site RogerEbert.com, assinado por Glenn Kenny e publicado em dezembro de 1922:
https://www.rogerebert.com/reviews/no-bears-movie-review-2022
“’Surpreenda-me!’ era a diretiva que o grande empresário de dança Serge Diaghilev dava para aqueles que esperavam trabalhar com ele. É também o que pedimos aos nossos melhores cineastas. O diretor iraniano Jafar Panahi, que está hoje, ao que se sabe, na prisão, cumprindo uma sentença de seis anos por acusações que não valem um punhado de grãos de feijão em qualquer mundo que tenha sentido, é um cineasta de classe internacional cujo trabalho não tem surpreendido assim já há algum tempo.
“Não inteiramente por sua culpa, é claro. Fazer filmes no Irã nunca é fácil, e Panahi tem sido submetido a constante perseguição do governo do país ao longo de sua carreira, ao ponto de que ele foi oficialmente proibido de fazer filmes, e chamou seu trabalho de 2011, que mostrava sua prisão domiciliar, de This Is Not a Film (Isto Não É Um Filme). Como observei em uma análise de seu Taxi de 2015 (no Brasil Táxi Teerã), ‘necessidade e coragem têm sido as mães de sua invenção cinematográfica’. Mas os frutos daquela invenção, esclarecedora e desanimadora na mesma medida, assumiu um tom previsível com o passar do tempo.
“No Bears é uma imagem que está em sintonia com seu trabalho recente — as circunstâncias determinaram que simplesmente tinha que ser — mas que se distancia dele de maneiras que produzem uma obra de, sim, espanto.”
É impressionante – e fantástico, maravilhoso – como são corajosos esses cineastas iranianos. São um exemplo para o mundo, para todas as pessoas que vivem em uma ditadura, ou sob o governo autoritário, que demonstra querer solapar a democracia e instaurar uma ditadura.
Ao comentar sobre um destes belos filmes que batem de frente na ditadura dos aiatolás, o recente Meu Bolo Favorito (2024), da dupla Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, o crítico Peter Bradshaw, do Guardian de Londres, escreveu:
“Este filme maravilhosamente doce e engraçado vai contribuir para o debate sobre se os regimes repressivos são um berçário de grandeza artística.”
Se tirarmos os adjetivos doce e engraçado, e colocarmos no lugar duro e forte, a frase serve perfeitamente para este Sem Ursos.
Anotação em setembro de 2025
Sem Ursos/Khers Nist
De Jafar Panahi, Irã, 2022.
Com Jafar Panahi (Jafar Panahi),
Naser Hashemi (o delegado do vilarejo), Vahid Mobasheri (Ghanbar, o dono da casa que Jafar aluga), Bakhtiar Panjeei (Bakhtiar, o ator do filme), Mina Kavani (Zara, a atriz do filme), Narjes Delaram (a mãe de Ghanbar), Reza Heydari (Reza, o assistente de direção), Javad Siyahi (Jacob, a quem Gozal foi prometida), Yousef Soleymani (o tio de Jacob), Amir Davari (Solduz, o rapaz apaixonado por Gozal), Darya Alei (Gozal, a jovem prometida a Jacob), Iman Bazyar (soldado)
Argumento e roteiro Jafar Panahi
Fotografia Amin Jafari
Montagem Amir Etminan
Figurinos Hasibe Seçil Kapar, Leyla Siyahi. Ülker Çetinkaya
Na Imovision. Produção Jafar Panahi, JP Production. Distribuição Celluloid Dreams.
Cor, 106 min (1h46)
***1/2
Título em Portugal: “Ursos Não Há”. Nos EUA e Reino Unido: “No Bears”. Na França: “Aucun Ours”.

Um comentário para “Sem Ursos / Khers Nist”