Lá pela metade de Maridos e Esposas, de 1992, o 13º e último da Era Mia Farrow, Rain, uma garotinha de apenas 20 anos de idade (o papel de Juliette Lewis), diz uma frase que em boa parte define toda a obra de Woody Allen: – “Gosto de como você torna o sofrimento engraçado”.
Ao longo de mais de 45 anos, na imensa maior parte de seus 44 filmes, Woody Allen fez as audiências rirem do sofrimento de seus personagens.
Neste quase meio século, Allen fez apenas seis dramas, obras inteiramente sérias, sem nada de comédia. Maridos e Esposas é um desses poucos. Para o cineasta, casamento, o tema central deste filme, não é algo fácil, nem mesmo para quem sabe – como poucos outros artistas – tornar o sofrimento engraçado. Muito ao contrário, casamento é algo muito difícil, como se diz várias vezes ao longo da narrativa – e não há casamento que não tenha problemas.
Ele sabia muito bem do que estava falando: enquanto fazia este 21º filme como autor-realizador, seu casamento estava acabando. Quando Maridos e Esposas foi lançado, em 18 de setembro de 1992, ele e Mia Farrow já estavam separados, e os jornais estavam cheios de histórias sobre o escandaloso caso do diretor e ator que estava namorando a própria enteada.
Isso era o que se dizia, e sempre foi o que Mia Farrow propagou, mas não é verdade. Não há qualquer traço de incesto na história de Woody Allen e Soon-Yi Previn. A garota, nascida em 1973, na Coréia, foi adotada por Mia Farrow e seu então marido, o marido número 2, o maestro Andre Previn; Allen e Mia começaram sua história no início dos anos 1980, mais ou menos à época do primeiro dos 13 filmes que fizeram juntos, Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão (1982); o relacionamento durou até 1992, mas não houve casamento no papel nem os dois amantes viveram na mesma casa. Assim, é forçação de barra dizer que Soon-Yi é enteada de Allen.
Seria então um escândalo apenas pela diferença de idade? Seria um absurdo Allen, então com 57 anos, começar um romance com a filha adotiva da ex-mulher que estava com 19 anos?
Interessante, porque, se for assim, o casamento número 1 de Mia Farrow também teria sido absurdo, escandaloso: em 1966, quando ela se casou com Frank Sinatra, estava com 21 anos, e o ele, com 50.
O marido terá atração por uma aluna, a esposa, por um colega de trabalho
Mas voltemos ao filme.
Woody Allen e Mia Farrow interpretam marido e esposa, em Maridos e Esposas. Quando a narrativa começa, eles estão juntos faz dez anos e não parecem ter um casamento problemático. Ele, Gabe Roth, é professor de Literatura numa universidade, já publicou alguns contos, está trabalhando faz tempo no primeiro romance. Ela, Judy, trabalha numa empresa de arquitetura. Ela tem uma filha de um casamento anterior – a filha não aparece hora alguma no filme –, e gostaria de ter mais um com Gabe, mas ele não quer.
Mas isso ainda não revelou ser um grande problema. Os problemas começarão a surgir mais tarde. Judy começará a questionar a si mesma e também a Gabe sobre o casamento; vai querer discutir a relação, vai procurar com empenho qualquer tipo de pelo em ovo.
E, também mais tarde, Gabe terá uma atração fortíssima por Rain, aquela aluna de 20 anos de idade interpretada por Juliette Lewis, e Judy vai perceber e admitir que tem grande atração por Michael (Liam Neeson), um arquiteto colega de trabalho.
No momento em que a narrativa começa, o casamento que está perigando é o do casal mais próximo de Gabe e Judy: Jack e Sally dão uma passada no apartamento dos amigos uma noite, para tomar uns drinques antes de saírem para jantar. E anunciam que tomaram a decisão de se separar: Sally ficará na casa deles, num subúrbio ao Norte, e Jack vai morar num apartamento na cidade.
Jack é interpretado por Sydney Pollack (1934-2008), diretor de diversos grandes filmes e que, como John Huston, gostava muito de de vez em quando trabalhar como ator nos filmes dele mesmo e dos outros. Tinha grande talento, e teve boas atuações neste filme aqui e também em Tootsie (1982), De Olhos Bem Fechados (1999) e Um Lugar na Platéia (2006), só para dar alguns exemplos.
Sally é o papel de Judy Davis, a australiana que, ainda no início da carreira, ganhou de Sir David Lean o principal papel feminino no excelente Passagem para a Índia (1984) e depois faria cinco filmes com Woody Allen – além deste Maridos e Esposas, ela trabalha também em Simplesmente Alice (1990), Desconstruindo Harry (1997), Celebridades (1998), e Para Roma com Amor (2012).
Ter apenas 20 anos não quer dizer que a mulher seja inexperiente
Jack e Sally tentam passar para o casal de amigos a impressão de que a decisão de se separarem foi muito discutida entre eles, é um consenso ao qual chegaram com lógica e sem dor; que é uma experiência, pode não ser definitiva; e, sobretudo, é amigável. Portanto, que os amigos não se assustem, não se preocupam.
Num primeiro momento, Gabe reage com absoluta surpresa, mas em seguida parece se convencer de que a decisão dos amigos, afinal de contas, foi bem pensada e eles não estão sofrendo.
Judy, no entanto, não consegue aceitar aquilo. Acha um absurdo a decisão pela separação – afinal de contas, os dois sempre se deram bem, não há problemas entre eles.
Veremos depois, no desenrolar da trama, que, havia, sim, problemas no casamento de Jack e Sally.
E será a partir da notícia da separação do casal amigo que Judy começará a questionar seu próprio casamento com Gabe.
No meio dessa nova etapa do relacionamento com a mulher é que Gabe vai se aproximar mais e mais da garotinha Rain, que tem menos da metade da idade dele – exatamente como Mia tinha quando se casou com Sinatra, exatamente como Son-Yi tinha quando começou o caso com Allen.
Rain é uma moça rica – o pai é um banqueiro, a mãe é uma mulher finíssima (embora apareça muito pouco, ela é interpretada por uma atriz importante, Blythe Danner). A garota é rica, inteligente – e escreve bem. Gabe fica encantado com um trabalho dela, um conto bem escrito, que de forma alguma parece ter sido feito por uma pessoa tão jovem.
Só bem mais tarde, quando a narrativa já está se aproximando do fim, Gabe ficará sabendo (ao mesmo tempo que o espectador) que, apesar de ter apenas 20 anos, Rain já viveu muitas experiências. Foi amante de um amigo e colega de seu próprio pai, depois foi amante do pai de uma colega e, ao consultar um analista (feito por Ron Rifkin), seduziu o próprio psicólogo, que teve por uma paixão explosiva, dessas de perder a cabeça.
Ter 20 anos de idade – diz Woody Allen neste seu 21º filme – não significa ser inexperiente. Pode muito bem ser o absoluto inverso.
Aos 20 anos, Rain é uma mulher mais experiente do que Judy e Sally.
Juliette Lewis tinha todo para virar grande estrela. Era linda, talentosa, sexy
Não poderia haver atriz mais adequada para o papel dessa jovem capaz de despertar paixões furiosas do que Juliette Lewis. Nascida em 1973, por coincidência o mesmo ano de Soon-Yi Previn, Juliette Lewis estava com 19 anos no ano de lançamento de Maridos e Esposas, e tinha uma beleza de enfeitiçar qualquer um, garotinho ou coroa. Depois que revimos agora o filme, Mary notou que Juliette Lewis tinha uma mistura fascinante de um jeito infantil com uma imensa sensualidade, à la Marilyn Monroe.
Começou a carreira cedíssimo, num filme para a TV em 1987, quando estava portanto com apenas 14 anos. Em 1991, havia sido escolhida por Martin Scorsese para o papel importantíssimo de Danielle, a filha do advogado Sam Bowden e sua mulher Leigh (Nick Nolte e Jessica Lange) na refilmagem de Cape Fear, um suspense antológico que J. Lee Thompson havia feito em 1962. A adolescente Danielle será o alvo do criminoso psicopata interpretado por Robert De Niro, que sai da prisão disposto a tudo para se vingar do advogado que o condenou.
Um filme com Scorsese num ano, um com Woody Allen no outro – Juliette Lewis, naquele começo dos anos 1990, parecia, assim como outra jovem de talento imenso e cabelos negros como ela, Winona Ryder, fadada a ser uma estrela de primeiríssima grandeza.
Nem todas as promessas se cumprem, e, assim como Winona, Juliette Lewis faria ainda belos filmes, com ótimas interpretações, mas nenhuma das duas teria a consagração à qual pareciam destinadas.
Todo o filme é construído como se fosse um documentário
Em Maridos e Esposas, Woody Allen usou duas características formais que se destacam bastante – e as duas têm relação entre si e com o todo, o conjunto da obra. Não são gratuitas – muito ao contrário.
Em diversos momentos – como, por exemplo, ao longo de toda a longa sequência inicial, em que o casal Jack-Sally visita o casal Gabe-Judy –, ele usa e até abusa da câmara de mão. Parecia que ele se antecipava às manias do pessoal do Dogma 95 dinamarquês.
(Um dos dez mandamentos do Dogma dizia o seguinte: “A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos – ou a imobilidade – devidos aos movimentos do corpo. O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar.”)
Na sequência de abertura, no apartamento abarrotado de livros de Gabe e Judy, a câmara de mão chega a dar dor de cabeça no espectador. Gabe fala, a câmara focaliza Gabe; Jack começa a falar do outro lado da sala, a câmara corre para focalizar Jack, mas, logo que chega nele, tem que correr para focalizar Judy, que agora tomou a palavra.
A essa primeira característica formal soma-se a segunda: ao longo de todo o filme, de tempos em tempos um dos personagens centrais, ou dois deles ao mesmo tempo, está sentado bem diante da câmara (e nessas tomadas, felizmente, a câmara não está tremelicando, nervosa, e sim apoiada firmemente num tripé), e se dirigindo a ela.
Uma voz em off às vezes faz perguntas aos personagens, quando eles estão assim depondo para a câmara.
É como se tudo o que o espectador está vendo, o filme inteiro, fosse uma ampla reportagem, um documentário sobre casamentos, maridos e esposas. Com momentos de entrevistas com aquelas pessoas e outros momentos da vida deles captados por uma câmara indiscreta, intrusiva, invasiva.
Consta que Woody Allen queria inclusive filmar em câmaras de 16 mm, para que as imagens aparecessem granuladas, com jeito de documentário, nas telas dos cinemas, mas a produtora, a TriStar, da Columbia, rejeitou a idéia.
“O que eu poderia dizer? Que estava fascinado por uma menina de 20 anos?”
Essa coisa de colocar personagens confortavelmente sentados em sofás, diante da câmara, fazendo um depoimento, já havia sido usada, e muito bem, se não estou enganado, em Reds (1981), o filme em que Warren Beatty mostrou a revolução comunista de 1917 acontecendo diante dos olhos de John Reed, o jornalista americano que de fato estava na Rússia e com base no que viu escreveu o famosérrimo Dez Dias Que Abalaram o Mundo. Reds, por coincidência, ou não, é estrelado por Diane Keaton, a ex namorada de Woody Allen que naquele momento era a namorada de Warren Beatty.
O mesmo esquema de depoimentos-entrevistas para a câmara foi usado em Harry e Sally – Feitos um para o Outro/When Harry Met Sally…, que Rob Reiner fez em 1989, sobre roteiro (maravilhoso) de Nora Ephron.
Não é absolutamente por coincidência, portanto, que Nora Ephron faz uma pontinha neste Esposas e Amantes. Mal dá para reparar: ela é uma das convidadas para um jantar festivo na casa de um amigo de Jack. Três anos antes, em 1989 – exatamente o ano de lançamento de When Harry Met Sally… –, Nora Ephron havia feito outra ponta, também como convidada de uma festa, em Crimes e Pecados.
Numa dessas entrevistas-depoimentos, falando diretamente para a câmara e respondendo a perguntas do entrevistador-narrador cuja voz sempre está em off (a voz é de Jeffrey Kurland, figurinistas de vários dos filmes de Woody Allen), o personagem do autor-realizador, Gabe, mostra que está cansado de saber que sua fascinação pela garotinha Rain não iria dar em nada.
– “Como eu poderia ser completamente honesto com Judy? Eu sabia que a amava, e não queria magoá-la. E então o que eu poderia dizer? Que estava fascinado por uma menina de 20 anos? Que estava entrando numa fria? Que não aprendi nada com a vida?”
E então o entrevistador-narrador invisível questiona: – “Então por que você não se deteve?
– “Senti falta de uma coisa que não tinha mais no meu casamento, e Rain me trouxe de volta a emoção.
– “Mas ela tinha um namorado.”
– “Eu sei. Eu sabia que tudo estava errado. Mas isso não me fez me afastar dela. Ao contrário. Tornou mais interessante.”
Gabe Roth, o personagem de Woody Allen, sabia perfeitamente que não iria dar em nada sua fascinação pela menina de 20 anos. Às vezes a vida não imita a arte, porque Woody Allen e Soon-Yi, a menina de cerca de 20 anos por quem ele estava fascinado, deram mais do que certo. E estão juntos até hoje, passados 23 anos.
O filme ainda estava sendo feito quando explodiu a notícia da separação
Algumas informações objetivas sobre o filme, a maioria tirada da página de Trivia do IMDb:
* Quando estourou a notícia da relação entre Woody Allen e Soon-Yi, as filmagens ainda não haviam acabado. Mia Farrow ainda teria quatro dias de filmagens. Numa demonstração de extremo profissionalismo, ela compareceu ao set de filmagem.
* O irlandês Liam Neeson ainda estava em início de carreira quando foi escolhido para o papel de Michael; dois anos depois, em 1993, ele ficaria mundialmente conhecido com A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. Segundo Neeson, a informação sobre o rompimento entre Woody Allen e Mia Farrow chegou a ele durante as filmagens de suas cenas de sexo com Judy Davis.
* Judy Davis ganhou diversos prêmios de melhor atriz coadjuvante por seu papel como Sally: o da National Board of Review, da National Society of Film Critics, da Boston Society of Film Critics, da London Film Critics Circle, da Los Angeles Film Critics Association, da Chicago Film Critics Association Awards, do Kansas City Film Critics Circle Awards e da Southeastern Film Critics Association Awards.
* Judy Davis também foi indicada ao Oscar de coadjuvante. Foi uma das duas indicações do filme, além da categoria de melhor roteiro original. O filme não levou nenhum dos dois prêmios, mas o roteiro levou o Bafta, o Oscar do cinema britânico. O filme concorreu também ao César de melhor filme estrangeiro, mas não levou.
* Consta que Jane Fonda foi convidada para o papel de Sally. Teria sido a única colaboração entre ela e Woody Allen – mas não a primeira nem a última entre ela e Sydmey Pollack. Pollack dirigiu o filme que deu a Jane a primeira de suas sete indicações ao Oscar, A Noite dos Desesperados/They Shoot Horses, Don’t They? (1970), e fez também O Cavaleiro Elétrico (1979), um dos vários filmes reunindo Jane e Robert Redford.
* A maravilhosa Juliette Lewis não foi a primeira opção para o papel da garotinha Rain. Algumas cenas chegaram a ser filmadas com Emily Lloyd no papel, mas Allen resolveu que não estava funcionando, e foi aí que Juliette Lewis pegou o papel.
Parece, sem dúvida, que é absolutamente autobiográfico
Há quem diga – como Perry Seibert, que escreve bons textos no AllMovie – que este é um dos filmes mais autobiográficos de Woody Allen.
Há quem diga que Maridos e Esposas é a homenagem de Woody Allen a Cenas de um Casamento, que seu mestre e ídolo Ingmar Bergman fez em 1973.
No livro Conversas com Woody Allen, de Eric Lax, o cineasta diz: “Maridos e Esposas foi escrito dois anos das coisas com Mia. Não há correlação.”
Se ele afirma, então é a verdade dos fatos. Mas é fantástico, isso. Porque, quando vemos o filme, sabendo da história pessoal do autor, tudo parece de fato absolutamente autobiográfico.
Anotação em janeiro de 2016
Maridos e Esposas/Husbands and Wives
De Woody Allen, EUA, 1992
Com Woody Allen (Gabe Roth), Mia Farrow (Judy Roth), Judy Davis (Sally), Sydney Pollack (Jack), Juliette Lewis (Rain), Liam Neeson (Michael), Lysette Anthony (Sam, a namorada de Jack), Blythe Danner (a mãe de Rain), Cristi Conaway (Shawn Grainger, a call girl), Tim Jerome (Paul), Ron Rifkin (o analista de Rain), Benno Schmidt (o ex-marido de Judy), Jeffrey Kurland (o entrevistador e narrador)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Carlo Di Palma
Montagem Susan E. Morse
Casting Juliet Taylor
Produção Jack Rollins e Charles H. Joffem TriStar Pictures. DVD Classic Line.
Cor, 108 min
R, ***
Um woody allen fraco é melhor que a média dos filmes bons de muito cineasta. um woody incrível como esse é de fazer chorar só de lembrar como é bom. obrigada pelo post, lá vou eu ter que rever 😉