Houseboat, no Brasil Tentação Morena, é um filme superlativamente ruim. Deve ser o pior filme da longa carreira de Cary Grant, o pior filme da gloriosa carreira de Sophia Loren.
Lançado em 1958, o filme foi dirigido e co-escrito por Melville Shavelson, um realizador que Jean Tulard define impiedosamente como “medíocre”. É uma horrorosa mistura de elementos da screwball comedy – as comédias amalucadas, escrachadas, nonsense dos anos 30 e 40 – com uma quantidade absurda de clichês sobre a relação pai trabalhador-filhos pequenos.
Cary Grant foi um dos grandes das screwball comedies. Em Bringing Up Baby, no Brasil Levada da Breca, que o mestre Howard Hawks lançou em 1938, ele fez o paleontologista muito competente mas inteiramente sonso, pateta, despreparado para a vida real, que se envolve com uma socialite tão rica quanto louca de pedra (interpretada pela maravilhosa Katharine Hepburn), que, entre outros hábitos peculiares, cultiva o de criar em casa um leopardo, o Baby do título original.
Em Monkey Business, no Brasil O Inventor da Mocidade, do mesmo mestre Hawks, de 1952, Cary Grant faz outro cientista, desta vez um químico muito competente mas inteiramente sonso, pateta, despreparado para a vida real, que inventa uma fórmula que faz as pessoas voltarem a ser jovens. O personagem é tão absolutamente sonso que, quando a secretária do patrão dele, interpretada por Marilyn Monroe, levanta a perna, apóia o pé numa cadeira, e deixa à mostra o início da coxa deslumbrante, tudo o que o cientista consegue ver é que ela está usando uma nova meia com um tecido que ele havia inventado.
Bringing Up Baby e Monkey Business são duas comédias absolutamente nonsense, loucas, desvairadas, sem qualquer tipo de compromisso com o mundo real. É tudo uma gigantesca brincadeira, uma fantasia. Não precisa ter lógica – é screwball comedy, e pronto.
De repente, o workaholic sonso resolve cuidar dos filhos que mal conhece
Muito provavelmente esse senhor Melville Shavelson e seu co-roteirista Jack Rose, este também o produtor do filme para a Paramount Pictures, quiseram reprisar aquela persona que Cary Grant havia incorporado nas duas comédias citadas acima.
E então criaram para ele esse Tom Winters, um sujeito que trabalha em algum posto alto no governo federal em Washington, e parece ser muito bom no que fez, seja isso o que for. Não se explica qual é exatamente a área em que Tom Winters trabalha; é citado o Departamento de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deles; depois é citado o Departamento der Comércio. Então não se sabe o que o cara faz, mas tudo indica que é muito competente como profissional – e, como os dois personagens anteriores, inteiramente sonso, pateta, despreparado para a vida real.
Teve três filhos, que, quando a ação começa, estão aí entre os 13 anos – David (Paul Petersen) e os 7 – Robert (Charles Herbert), com uma garotinha no meio, Elizabeth (Mimi Gibson).
Mas, workaholic antes de o termo se tornar conhecido, só pensando no trabalho, Tom nunca foi próximo dos filhos. Muitíssimo ao contrário. As coisas haviam piorado ainda mais nos últimos anos, quando Tom separou-se da mãe dos meninos. Via-os pouquíssimas vezes. E então a mãe morre.
Quando a ação começa, os pais da moça morta estão explicando a um tontíssimo Tom Winters que os dois meninos serão criados por eles, avós, enquanto a garotinha ficará com a tia materna Carolyn (o papel de Martha Hyer). Carolyn também está presente à reunião familiar. Os meninos estão plenamente satisfeitos com esse arranjo.
Mas Tom, o macho workaholic, o que nunca deu a menor pelota para os filhos (assim com o aparentemente não dava também para a mulher), enche-se de brio e diz que aquilo é um absurdo, que ele afinal de contas é o pai, e decide levar as três crianças para o pequeno apartamento em que vive na capital federal.
É claro que dá tudo errado entre ele e os filhos – e é claro, é óbvio que, no final do filme, tudo tudo tudo terá dado pé, e Tom Winters será amigo do peito de David, Elizabeth e Robert.
Poucas coisas são mais previsíveis do que isso, nos filmes americanos, como diria a personagem de Juliette Binoche em Fuso Horário do Amor (2002), da ótima Danièle Thompson. Quando no início da história mocinho e mocinha se odeiam, é fatal: terminarão juntos. Quando no começo da narrativa o sujeito é um bêbado de coração duro como pedra, é fatal: no final ele estará sóbrio e de coração aberto ao mundo, como acontece, para citar apenas um exemplo, no gostoso O Reencontro/The Magic of Belle Isle. Quando no começo o pai não se entende com os filhos, batata: vão se tornar os melhores amigos. Mais previsível que isso, só o fato de que vamos todos morrer.
A personagem de Sophia é grotesca, implausível, improvável
Toda essa previsibilidade da relação de Tom Winters com seus filhos se choca brutalmente com tudo, mas tudo, tudo, que diz respeito ao personagem que inventaram para Sophia Loren.
Essa Cinzia Zaccardi é – eu seria capaz de jurar – um dos personagens mais grotescos, mais implausíveis, mais improváveis, mais absurdos, mais sem sentido da história das comédias românticas. E olha que tem muito personagem sem sentido nas comédias românticas.
Cinzia tem 22 anos de idade (Sophia tinha, no ano do lançamento do filme, ridículos 24 aninhos), foi criada numa das melhores escolas para milionários da Suíça, é filha de um maestro famoso em todo o mundo, Arturo Zaccardi (Eduardo Ciannelli), e está acompanhando o pai numa turnê da orquestra que ele dirige.
Após um concerto ao livre em Washington – ao qual estão presentes Tom Winters e seus três filhos –, o maestro é convidado para um jantar “íntimo”, com apenas umas 40 ou 50 pessoas, por uma socialite de Washington. Cinzia bate o pezinho jovem e lindo e diz ao pai que não quer ir a esse jantar de jeito nenhum, que quer sair pela cidade, ver como se comportam os americanos normais.
A moça estrondosamente bela acabará encontrando o caçula da infeliz família Winters: Robert tinha dado um jeito de escapar do pai e tinha se perdido.
Na manhã seguinte, Cinzia aparece com o garotinho no apartamento de Tom. Há aí um diálogo completamente surreal, screwball, entre eles, os meninos ouvindo e palpitando…
Há até uma piada boa, aí – mas é uma inside joke, piada interna, como aquelas histórias de firma que só quem é da firme compreende. Lá pelas tantas, o sonso Tom pergunta para a deslumbrantérrima Cinzia se ela é uma G.I. bride. G.I. bride, ou war bride, era o nome que se dava às estrangeiras todas que os soldados americanos comiam durante a Segunda Guerra e, na hora da dispensa, levavam para casa. A inside joke aí é que Cary Grant fez o papel de um francês que namorou uma oficial americana e ela queria levar para os Estados Unidos ao fim da guerra, em uma comédia bastante screwball de… Howard Hawks, de 1949. O título, tanto o original quanto o brasileiro, é bastante óbvio: I Was a Male War Bride, A Noiva Era Ele.
Ao longo dos 110 minutos, há pouquíssimos close-ups do rosto divino de Sophia
Bem, então há um diálogo absolutamente sem sentido entre o sonso funcionário do governo federal e a jovem filha de maestro famoso criada em escola fina na Suíça. Ele pergunta se ela quer ser a empregada dele, para cuidar dos filhos – e ela topa!
E aí vão os cinco morar na houseboat do título original, uma casa flutuante que estava rigorosamente caindo aos pedaços.
Por que raios uma italiana rica, bem educada, toparia uma coisa dessas? Por que raios um sujeito, por mais sonso que fosse, não perceberia de cara que aquela mulher é a coisa mais maravilhosa do mundo?
Não há resposta para dúvidas como essas. É uma comédia nonsense – no que diz respeito ao personagem de Sophia Loren, apenas, porque no diz respeito ao pai Tom e seus filhinhos é tudo absolutamente clichê.
Clichê do clichê misturado com o mais absoluto nonsense. Eta mistura indigesta!
Para piorar ainda mais as coisas, o filme foi fotografado em VistaVision, que era a versão paramountiana do CinemaScope, a tela larga, comprida na base, que hoje chamamos de widescreen. A tela grande era, nos anos 50, a arma do cinema contra a competição da televisão, aquela coisa que na época era quase quadrada, e pequena. E então muitos filmes daquela época preferiam os planos mais amplos, que focalizam os personagens e seu entorno. O close-up era tido na época como coisa de televisão, e portanto evitado. Ao longo dos 110 minutos deste abacaxi, há só uns quatro ou cinco close-ups do rosto divino de Sophia.
Sophia fez uma dúzia de filmes hollywoodianos, a partir de A Lenda da Estátua Nua/Boy on a Dolphin (1952), de Jean Negulesco, entremeados com filmes europeus. Este Tentação Morena, o anterior, A Orquídea Negra (também de 1958), de Martin Ritt, e o seguinte, Mulher Daquela Espécie/That Kind of Woman (1959), de Sidney Lumet, são dos piores.
Ainda bem que houve também, em suas experiências com o cinema americano, El Cid (1961), o épioco em que Anthony Mann soube exibir em close-up a magnífica beleza de Sophia, e Arabesque (1966), uma pérola de Stanley Donen.
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4. E o filme teve duas indicações ao Oscar
O que seria do amarelo se todos gostassem só do verde? E há gosto para tudo, e então Leonard Maltin deu a esta porcaria – em que só se salva é mesmo a beleza de Sophia – 3.5 estrelas em 5. Diz o autor do guia de filmes mais vendido do mundo: “Loren vira empregada de Grant e cuida dos três filhos órfãos de mãe. Romance previsível aparece nesta deliciosa comédia. Guardino está hilariante como o faz-tudo da casa-barco.”
Guardino está hilariante! Meu Deus do céu e também da terra, viva a diferença de opiniões. O personagem de Harry Guardino, um descendente de italianos trapalhão, me pareceu absolutamente ridículo, grotesco, sem sentido.
Como mais uma prova de que as opiniões podem ser 180 graus distantes uma da outra, aí está: o roteiro original que eu achei o fim do mundo, a coisa mais idiota já feita, teve indicação ao Oscar. E a canção “Almost in your arms”, de Jay Livingston e Ray Evans, também foi indicada ao Oscar.
Fico me perguntando: será que, se eu tivesse visto este filme quando tinha ali uns 14 anos, época em que vi e adorei, por exemplo, Quando Setembro Vier/Come September (1961), de Robert Mulligan, teria achado maravilhoso? E aí continuaria achando maravilhoso agora, por uma questão de afetividade? Revi Quando Setembro Vier alguns anos atrás e achei o filme uma absoluta delícia, apesar de ter muita coisa datada e, claro, boboca…
Será?
Pode até ser. Não se deve negar nenhuma possibilidade. Mas, sei não, sei não. Acho que até o Sérgio Vaz daquela outra encadernação, o garoto que via mais de 150 filmes por ano nos cinemas de Belo Horizonte em 1963, 1964, 1965, teria torcido o nariz para essa besteirada aqui.
Anotação em setembro de 2015
Tentação Morena/Houseboat
De Melville Shavelson, EUA, 1958
Com Cary Grant (Tom Winters), Sophia Loren (Cinzia Zaccardi),
os meninos Mimi Gibson (Elizabeth Winters), Paul Petersen (David Winters) e Charles Herbert (Robert Winters)
e Martha Hyer (Carolyn Gibson), Harry Guardino (Angelo Donatello), Eduardo Ciannelli (Arturo Zaccardi), Murray Hamilton (Alan Wilson), Madge Kennedy (Mrs. Farnsworth), John Litel (Mr. William Farnsworth), Werner Klemperer (Harold Messner)
Argumento e roteiro Melville Shavelson e Jack Rose
Fotografia Ray June
Música George Duning
Montagem Frank Bracht
Produção Jack Rose, Paramount Pictures.
Cor, 110 min
1/2
Eu gosto dos filmes do Melville Shavelson, sempre gostei. Obrigada por encerrar meu 2015 com o MARAVILHOSO Cary Grant (cuja beleza também salva qualquer abacaxi) e a bella ragazza Sophia.
Um ótimo 2016 para você e todos os leitores 🙂
Um filme com Cary Grant e Sophia Loren nunca pode ser tão ruim quanto sua crítica faz crer. Apesar do excesso de cenas sentimentalóides, há bons momentos. Um filme nota 6 (de 1 a 10). Como curiosidade, vale lembrar que esse foi o filme que provocou a relação amorosa entre os astros que quase fez Sophia romper seu casamento com Carlo Ponti.