Anjo do Mal / Pickup on South Street

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[rating:3;5]

Anjo do Mal, no original Pickup on South Street, que o lendário, mítico Samuel Fuller lançou em 1953, é um filme fascinante por diversos motivos.

Por ser considerado o melhor de todos os filmes de Fuller, por exemplo. Pela pouco usual mistura de intriga de espionagem com filme noir. Por algumas seqüências antológicas. Pelo fato de os três protagonistas serem marginais, mais próximos do crime do que do lado de cá da lei. Pela beleza e sensualidade de Jean Peters.

Mas, para mim, o mais fascinante de tudo é Thelma Ritter e a personagem que ela interpreta maravilhosamente, Moe Williams.

Thelma Ritter-Moe Williams demora um pouquinho a entrar em cena. Os outros dois personagens centrais aparecem primeiro – estão no metrô de Nova York lotado, e a sequência é absolutamente brilhante, genial.

zzpick2O metrô está lotado, mas não tanto assim quanto a Linha Vermelha, a antiga Leste-Oeste, do metrô de São Paulo entre as 17h30 e as 19h30. Quem, como eu e tantos milhões de paulistanos já pegou o metrô de São Paulo absolutamente abarrotado na hora do rush sabe a diferença: ali não dá para se mexer, não dá para se mover. Só dá para mover quando a massa compacta se move – as pessoas são carregadas, empurradas, pela massa.

No metrô de Nova York na abertura do filme, o vagão está cheio, mas não absolutamente abarrotado. Não está sardinha na lata – e então é possível as pessoas se movimentarem entre os demais passageiros.

Há uma morena lindíssima, num vestido todo branco. O passado da dame, da doll, da babe, não é nada imaculado, mas seu vestido é todo branco. Ela é linda, o vestido mostra um corpo escultural, ela está de pé no metrô, e sua testa tem um pouco de suor – a câmara do diretor de fotografia Joseph MacDonald, trabalhando sob as ordens de Samuel Fuller, adora um close-up do rosto das pessoas naquele preto-e-branco fascinante.

Chama-se, veremos logo em seguida, apenas Candy, sem sobrenome. Candy – doce. Docinho. Delícia. Coisa gostosa. Samuel Fuller, em entrevista, disse que ela não é ou não foi prostituta, mas o filme indica que muito possivelmente era isso que ela era, essa Candy gostosa, um vulcão de vulgaridade e sensualidade apertada por mil homens no vagão do metrô.

Jean Peters era uma atriz lindérrima.

zzpick3Aprochega-se dela sujeito com cara de melífluo, de bandido – Richard Widmark fez tantos papéis de canalha que é difícil imaginá-lo no papel de um sujeito decente, cumpridor de seus compromissos, obediente às leis. Seu personagem aqui, Skip, é obviamente um meliante – o espectador percebe isso de cara, não há como não perceber. Richard Widmark faz tantas caretas, remexe tanto os lábios, entortando-os a cada uma das tomadas, que dá vontade de mandar prendê-lo pelo crime de exagero de canastrice.

Skip-Richard Widmark aprochega-se de Candy-Jean Peters, com o New York Times aberto à sua frente, como se estivesse muito interessado no noticiário politico daquele ano de 1953 – o jornalão estava, certamente, falando das audiências do maldito comitê de atividades anti-americanas do Congresso, a caça às bruxas capitaneada pelo senador Joseph McCarthy.

Veremos mais tarde que Skip não dá a menor bola para qualquer coisa que tenha a ver com política. Mas ele finge que lê o New York Times. Enquanto ele finge que lê o jornalão, suas mãos abrem a bolsa da morena gostosa de pé à sua frente. Abrem a bolsa, retiram de lá os pertences, e depois fecham de novo a bolsa.

Em entrevista muitos anos mais tarde, Samuel Fuller disse que a garota é burra. De fato, só uma garota muito burra conseguiria não perceber que estava sendo roubada.

Ou talvez não. Na mesma entrevista, Fuller faz uma frase de efeito – ele adora frases de efeito: “Para mim, um batedor de carteiras não é um criminoso – é um artista”.

O artístico batedor de carteiras não sabe onde está se metendo, coitado

As artísticas mãos de Skip subtraem da bolsa de Candy alguns dólares, um colar e um envelope.

A movimentação artística das mãos de Skip está sendo cuidadosamente observada por um senhor de cabelos brancos – Mr. Zara (Willis Bouchey) – e um assistente dele. Mr. Zara é um homem do governo, um G-men. Um agente do FBI, a naquela época ainda jovem polícia federal americana.

O batedor de carteiras Skip não sabe onde está se metendo ao roubar aquele envelope na bolsa da moça gostosa. A própria moça gostosa não sabe o que o envelope contém. Seu ex-amante, Joey (Richard Kiley), havia pedido a ela que fizesse um último favor: que entregasse aquele envelope a uma pessoa num determinado edifício de Manhattan. Joey mente para ela que era o microfilme de um segredo industrial.

Na verdade, era um altíssimo segredo militar americano que estaria sendo entregue a espiões russos! Comunistas! Vermelhos! (Usavam-se, naquela época da Guerra fria, as palavras “commies” e “reds” para designer os inimigos do American Way of Life. Elas são ditas várias vezes ao longo do filme.)

O FBI vinha seguindo a moça namorada ou ex-namorada de Joey, um bandido que prestava serviços aos russos, aos vermelhos, aos soviéticos, fazia bastante tempo. Naquele dia em que a ação começa no metrô, agentes do FBI seguiam a moça e pretendiam ir atrás dela até o sujeito para quem ela entregaria o segredo de Estado – e aí prenderiam no ato o vermelho, o comunista, o filho-da-puta.
Mas aí veio o lanceiro naquele aperto do metrô e surrupiou da bolsa da moça o microfilme que valia ouro.

Os agentes do FBI vão atrás da moça. Ela chega ao prédio indicado por Joey – mas aí abre a bolsa, percebe que foi roubada, que o envelope que deveria entregar não está mais com ela. Liga para Joey, e conta que foi roubada no metrô.

O filme de Samuel Fuller está, neste momento, com uns dez minutos. Virão em seguida mais 70 de belíssimo cinema.

O homem do FBI pede ajuda à Polícia de Nova York, que pede ajuda a Moe

zzpick4Uso palavras demais. Me estendo, me alongo. O professor A.C.Gomes de Mattos, especialista em filmes noir, resumiu a história muitíssimo melhor do que eu, em seu fascinante livro O Outro Lado da Noite: Film Noir.

“No metrô, Skip McCoy rouba uma carteira da bolsa de Candy, a amante de Joey, agente comunista. Dentro da carteira está um microfilme que a moça carregava, inadvertidamente. Quando Joey verifica o roubo, ele pede a Candy que encontre McCoy e recupere o microfilme. Tanto Candy quanto os agentes do FBI, que a estavam vigiando, localizam McCoy por intermédio de Moe, uma velha vendedora de gravatas e informante amiga dele. Porém McCoy, percebendo o valor do microfilme, prefere negociar diretamente com Joey.”

Aí: em um parágrafo enxuto, belezinha, temos uma síntese da história.

Moe, a velha vendedora de gravatas e informante, é uma personagem extraordinária – assim como a atriz que a interpreta, Thelma Ritter.

Depois de presenciar o roubo no metrô, e de ver o ladrão fugindo em uma estação, Mr. Zara, o agente do FBI, e seu ajudante prosseguem seguindo Candy. Vêem o momento em que ela, chegando ao prédio onde deveria fazer a entrega, abre a bolsa para checar se tudo estava lá, e, perplexa, atônita, percebe que foi roubada. Zara então manda o ajudante continuar seguindo Candy, e vai ele próprio pedir ajuda ao capitão Dan Tiger (Murvyn Vye), do NYPD, New York Police Department.

O capitão Tiger fornece a ele dezenas e dezenas e dezenas de fichas de batedores de carteira que operam na metrópole. Logo fica claro que aquilo seria como tentar achar uma agulha no palheiro. Zara pergunta se há um método mais rápido, mas prático, e Tiger diz que há um “character” que talvez possa ajudar. Character não tem sexo, serve para homem ou mulher. E quem aparece na sala do capitão do NYPD para ajudar um agente do governo federal é Moe, uma senhora pobre, feia, quase mulambenta.

Moe é assim uma espécie de Quem é Quem ou a Britannica do crime em Nova York

Oficialmente, Moe vive da venda de gravatas. Anda pelas ruas de Manhattan, o centro da maior metrópole dos Estados Unidos da América, vendendo gravatas, segundo ela as últimas criações da Quinta Avenida – mais ou menos como Apple Annie (interpretada por May Robson no filme Lady for a Day, de Frank Capra, de 1933, e Bette Davis na refilmagem feita pelo próprio Capra em 1961, Pocketful of Miracles, os dois no Brasil Dama Por um Dia) vendia maçãs à saída dos teatros e restaurantes da mesma Manhattan.

zzpick5Na verdade, Moe é uma espiã que age no submundo da metrópole, uma agente de inteligência a serviço de si própria. Tem na cabeça tudo aquilo que está no fichário que não termina mais do capitão Tiger. É assim a versão viva do Quem é Crime no crime de Nova York. Conhece todos os criminosos, sabe seu modus operandi.

A primeira sequência em que Moe-Thelma Ritter aparece, esta na sala do capitão Tiger, assustando o agente federal Zara, é fantástica, sensacional.

Thelma Ritter rouba o show. De repente, a gente nem fica mais tão interessado no microfilme, no batedor de carteiras que o roubou sem saber o que era aquilo, nem mesmo na moça gostosa que agora deve, a pedido de seu desesperado ex-amante Joey, sair à cata do homem que a roubou para obter de volta o pote de ouro. Tudo que se quer ver agora é Moe, a Encyclopaedia Britannica dos criminosos de Manhattan.

Pobre, ferrada na vida, mulambenta, Moe tem um sonho: quer ter um enterro elegante, num jazigo de cemitério rico, fino, chique. Mora numa espelunca, tadinha, um apartamento bem favelento numa vizinhança horrorosa, em cima de um bar de quinta categoria – mas, quando for para debaixo da terra, ser comida pelos vermes, quer fazê-lo em grande estilo.

Seu sonho é o enterro elegante – a fancy funeral, ela diz, com aquela voz que só Thelma Ritter tem. Seu maior medo, o que a apavora, é a possibilidade de ser enterrada como indigente.

Só Samuel Fuller, ex-repórter de polícia, conhecedor de malandros, bandidos, a ralé, o lixo da capital mundial do capitalismo, poderia ter criado essa Moe – e só Thelma Ritter poderia interpretá-la.

Moe conhece Skip desde que ele era criança – Skip o batedor de carteira que acaba de sair da prisão pela terceira vez e já atacou de novo no metrô, roubando o conteúdo da bolsa da morena bonita. Gosta dele como se fosse um filho – mas se sente à vontade para fornecer uma pista sobre ele ao capitão Tiger, em troca de uma graninha boa. A vida é assim, e ela, base de dados afiada, vive é de vender informações.

(Ao saber que Moe vendeu pistas também a Candy, Skip vai sorrir; não fica com raiva dela; a vida é assim mesmo.)

Moe tem um código de honra rígido: roubar, tudo bem; dar informações sobre amigos em troca de dinheiro, seja para a polícia, seja para uma moça gostosa, tudo bem. Agora, negociar com os commies, os reds, aí não, de jeito nenhum. Ela dirá a Skip: – “Qual é a sua? Fazendo negócio com os comunistas? (…) Eu conheço você desde garoto. Você sempre foi um tipo de ladrão normal, Jamais pensei que fosse um canalha. (…) Mesmo no nosso ramo de negócios existe um limite.”

Daryl F. Zanuck bateu o olho em Thelma Ritter e enxergou talento

Thelma Ritter (1902-1969) tem 44 títulos na sua filmografia. Interessante: achei que ela teria muitíssimo mais, talvez uns 150. Minha impressão de que ela trabalhou em dezenas e dezenas de filmes vem do fato de que vi filmes com Thelma Ritter demais na vida.

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Raras vezes, raríssimas vezes foi protagonista, como neste filme aqui. Nasceu para ser coadjuvante. Sem beleza, com um rosto absolutamente comum (mas uma simpatia incrível, um magnetismo fantástico), baixinha, com 1 metro e 55, interpretou muitas vezes pessoas mais humildes na escala social e secundárias nas tramas. Foi, por exemplo, a empregada da personagem de Bette Davis em A Malvada/All About Eve (1950). Foi a empregada do personagem de James Stewart em Janela Indiscreta/Rear Window (1954). Foi a empregada da personagem de Doris Day em Confidências à Meia-Noite/Pillow Talk (1959). Em Os Viúvos Também Sonham/A Hole in the Head, o penúltimo filme dirigido por Frank Capra, foi a esposa do personagem de Edward G. Robinson, o irmão simples, trabalhador mas rico do malandrão protagonista da história, interpretado por Frank Sinatra. Faz um papel menor também em Os Desajustados/The Misfits (1961), obra-prima trágica de John Huston, que seria o derradeiro filme tanto de Marilyn Monroe quanto de Clark Gable e Montgomery Clift.

Como se vê por esses poucos exemplos, Thelma Ritter quase sempre foi coadjuvante – mas era escalada para excelentes filmes, por diretores de primeiríssimo time.

E, se os papéis eram secundários, sempre tinham frases ferinas, argutas, inteligentes a dizer nos momentos precisos. Nesses filmes citados aí acima acontece isso – o personagem interpretado por Thelma Ritter tem a língua afiada e um timing perfeito.

Consta que Darryl F. Zanuck, o todo-poderoso chefão da 20th Century Fox, reparou nela quando ela fez um papel mínimo – como uma mulher que está fazendo compras de Natal numa loja – em De Ilusão Também se Vive/Miracle on 34th Street (1947), aquele do Papai Noel que aparece para a garotinha interpretada pela belíssima criança Natalie Wood. Zanuck viu a tomada, percebeu que ali havia talento, e mandou que expandissem a participação daquela figurante na história.

Thelma Ritter foi indicada seis vezes ao Oscar – inclusive por seu papel como Moe, é claro, muito provavelmente a melhor interpretação de sua vida. Não levou nenhuma estatueta para casa. Problema da estatueta e da Academia, não dela.

Samuel Fuller conta que o chefão Zanuck enfrentou o todo poderoso J. Edgar Hoover

Darryl F. Zanuck, o chefão da Fox, é citado várias vezes por Samuel Fuller numa longa entrevista que deu sobre este Pickup on South Street muitos, muitos anos após o lançamento do filme em 1953 e a conquista do Leão de Bronze no Festival de Veneza. Essa deliciosa entrevista está entre os extras da caixa Filme Noir, lançada no Brasil pela Versátil, reunindo seis filmes do período áureo do gênero, entre 1947 e 1955, mas não é dito (ou eu não percebi) o ano em que ela foi feita. Mas é seguramente dos anos 90 – Fuller já estava em idoso, os cabelos longos inteiramente brancos. (Nascido em 1912, morreria em 1997.)

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Uma figura, o tal Samuel Fuller – e uma figura que sabe que é uma figura, e aí exagera um pouco mais no exercício de ser uma figura. Nisso, ele se aproxima de Alfred Hitchcock e Federico Fellini.

Fuma um charutão gigantesco. Os cabelos estão em absoluto desalinho. Os dentes precisariam de um bom tratamento; meu amigo Bado levaria meses para dar um jeito naquilo. O gestual, o jeito de falar são de malandrão do submundo nova-iorquino que ele cobriu como repórter e retratou com realizador. Aliás, ele insiste várias vezes, durante a entrevista, em dizer que conheceu muitos bandidos, conviveu com eles.

Fuller diz, no documentário produzido por Richard Schickel, que, digam os outros o que disserem de Darryl F. Zanuck, com ele mesmo Zanuck sempre teve um comportamento irrepreensível. – “Eu queria dois ou três personagens anti-sociais, à beira da criminalidade.” E, por mais que isso fosse estranho – um filme sem heróis, sem mocinhos, em que os três personagens centrais beiram a criminalidade –, Zanuck não interferiu. Ao contrário: deu todo apoio a ele.

Fuller conta que Zanuck e ele tiveram dois encontros com J. Edgar Hoover, o criador e chefão de FBI, de quem até os presidentes da República tinham medo, conforme mostraria Clint Eastwood em seu filme J. Edgar (2011).

Mesmo com o roteiro mostrando os comunistas e os caras que trabalham para os comunistas como monstruosos, com os personagens tendo ódio dos comunistas, Hoover – diz Fuller – implicou com a história. Não queria aquele negócio de microfilme roubado do governo e pronto para ser entregue a um espião comunista. Detestou aquele negócio de um agente do FBI estar por perto quando um capitão da Polícia de Nova York paga a uma mulher da rua por uma informação.

O capitão Tiger tem o cuidado de pedir para Zara sair da sala no momento em que negocia o preço da informação que Moe tem para dar. Mas nem isso teria deixado o chefão do FBI mais tranquilo.

Os policiais localizam Skip, que havia roubado o microfilme da bolsa de Candy, e o levam para a sala do capitão Tiger. Zara, o agente do FBI, diz ao batedorzinho de carteira: – “Se você se recusar a cooperar, será tão culpado quanto quem entregou a bomba atômica a Stálin”.

Ao que Skip-Richard Widmark torce os lábios pela enésima vez e responde: – “Are you waving the flag on me?” Tipo: você está acenando a bandeira para mim?

Na entrevista, muitos anos depois, talvez exagerando um pouco, para ficar ainda melhor na foto, Fuller diz que originalmente a frase de Widmark seria: “Are you waving the goddam flag at me?” Não apenas acenando a bandeira, mas acenando a porra, a josta da bandeira.

Hoover ficou fulo com aquela frase, segundo Fuller. Nenhum americano poderia falar uma coisa dessas. A frase não podia ficar. Aí Zanuck respondeu para J. Edgar Hoover, segundo Samuel Fuller: – “Mas o personagem é assim. É o caráter dele.”

Na França e na Alemanha, tiraram fora as referências a espiões e comunistas!

Há duas informações bastante surpreendentes no IMDb. Transcrevo:

“O título francês do filme é Le Port de la Drogue (“The Drugs Port”). O filme é claramente sobre espionagem, mas na versão francesa o título foi mudado para se referir a drogas, e mesmo os diálogos que se referem a espionagem foram completamente substituídos por diálogo sobre tráfico de drogas.”

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E: “O título alemão do filme é Polizei greift ein (“Police takes over“). O filme é claramente sobre espionagem, mas na versão alemão o título foi mudado e mesmo os diálogos que se referem a espionagem foram completamente substituídos por diálogos sobre tráfico de drogas.”

Transcrevi isso bastante de pé atrás, achando muito estranho, inverossímil. Mas o Guide des Films do mestre Jean Tulard confirma! Ele diz: “Batedor de carteira, McCoy subtrai material de uma jovem espiã, contendo documentos importantes. (…) Excelente filme B ‘anti-vermelhos’. Na versão francesa, a dublagem fala de droga e traficantes, enquanto na versão original trata-se de documentos secretos e espiões comunistas.”

O verbete do Guide de Tulard só comete um pequeno equívoco ao chamar Candy, a morena linda, de jovem espiã. Ela era uma inocente, sendo usada pelo amante Joey, este sim um marginal que estava a serviço dos comunistas. Mas ela não sabia disso – fica claríssimo ao longo de todo o filme.

Jean Peters teve uma carreira fulminante, estonteante

Sim, Jean Peters, a belíssima morena que interpreta Candy – e interpreta dando a ela o que o personagem tem: sensualidade, vulgaridade e inocência. Candy é uma jovem perdida, tadinha. Tudo o que ela quer é amor, afeto.

Jean Peters teve uma carreira fulminante, estonteante. Nascida em uma pequena cidade do Ohio, em 1926, venceu um concurso de popularidade em 1946, e ganhou como prêmio uma viagem a Hollywood. No meio de tanta mulher bonita que vai para Los Angeles tentar a sorte na vida, foi vista por alguém – era impossível não ver a beleza dessa moça – e no ano seguinte era a estrela feminina de Capitão de Castela/Captain from the Castle, um filme de aventura dirigido por Henry King com Tyrone Power no papel principal. Entre 1947 e 1955, fez 18 filmes – foi a estrela em vários deles. Em dois, trabalhou ao lado de outra jovem em ascensão, só que loura, Marilyn Monroe – Páginas da Vida/O. Henry’s Full House (1952) e Torrentes de Paixão/Niagara (1953).

Aí, em meados dos anos 1950, ela sumiu: casou-se com o multimilionário Howard Hughes e desapareceu da cena. (É bom lembrar que esse senhor tinha um gosto finíssimo para mulheres: passaram por sua vida, e por sua cama, antes de Jean Peters, nada menos que Katharine Hepburn e Ava Gardner, e possivelmente também Jane Russell – entre outras, claro.)

O divórcio de Howard Hughes veio em 1971; pouco depois, ela se casou com o executivo de Holywood Stanley Hough. Entre 1973 e 1988, participou de algumas séries e filmes de TV. Morreu em 2000, aos 73 anos.

Fuller diz que não gostava de exagerar na violência. Imagina se gostasse!

zzpick6aNo documentário com a entrevista de Samuel Fuller, o diretor afirma: “Não gosto de exagerar na violência. A violência, na minha opinião, deve ser emocional, deve vir de dentro. (…) Adoro filmar brigas do alto. É fácil filmar de perto – bum, bum, bum. Mas de cima, o dublê ou o próprio ator precisa ser bom. Precisa ser muito bom, pois não tem como escapar.”

A sequência da luta física na estação de metrô (de novo o metrô!) entre Skip, o batedor de carteiros, e Joey, o malandro que está vendendo uma preciosidade aos comunistas, é em tudo por tudo antológica. Mas não tem apenas tomadas feitas do alto, em plongée. Tem muito close-up: bum, bum, bum.

Imagina se ele gostasse de exagerar na violência.

A sequência em que Joey espanca a linda Candy é bem feitíssima – tão bem feita quanto violenta.

Numa canção que escreveu quando era bem jovem, Chico Buarque fez o verso “Que vida comprida, pra que tanta vida pra gente desanimar?” O personagem dessa maravilhosa Thelma Ritter mostra desencanto semelhante: “Parece que eu não vou mesmo ter um enterro elegante, afinal. De qualquer jeito, eu tentei. Olhe, mister, estou tão cansada que me faria um favor grande se rebentasse meus miolos.”

Samuel Fuller não era fácil, não.

Anotação em março de 2015

Anjo do Mal/Pickup on South Street

De Samuel Fuller, EUA, 1953

Com Richard Widmark (Skip McCoy), Jean Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe  Williams), Murvyn Vye (capitão Dan Tiger), Richard Kiley (Joey), Willis Bouchey (Zara), Milburn Stone (Winoki), Henry Slate (MacGregor), Jerry O’Sullivan (Enyart), Harry Carter (Dietrich)

Roteiro Samuel Fuller

Baseado na história Blaze of Glory, de Dwight Taylor

Fotografia Joseph MacDonald

Música Leigh Harline

Montagem Nick De Maggio

Produção Jules Schermer, 20th Century Fox. DVD Versátil.

P&B, 80 min

***1/2

9 Comentários para “Anjo do Mal / Pickup on South Street”

  1. Cara, esse Samuel Fuller era incrível, o Widmark também era fantástico, a Jean Peters maravilhosa. Mas, hoje, eu agradeço a você por tudo que foi escrito sobre Thelma Ritter. Uma atriz desse quilate merecia muito mais reconhecimento.

    Obs: Parece que o senhor está se divertindo com a coleção da Versátil de Filmes Noir, não???

  2. Hêhê… De fato, Senhorita, estou me divertindo com a caixa Filme Noir da Versátil.
    A caixa é uma preciosidade.
    Já vi “Fuga do Passado”, “O Cúmplice das Sombras”, este “Anjo do Mal” aqui, “Passos na Noite”.
    E ainda faltam “Entre Dois Fogos” e “A Morte num Beijo”.
    Um abraço!
    Sérgio

  3. Isso tudo só no primeiro volume!!! Vi que o terceiro está já em pré-venda e tem o Bogie na capa.

  4. Vixe Maria! É muito filme pra gente ver, não dá tempo para ver tudo que a gente quer…

  5. Sérgio, só a cena do metrô, a que acabo de assistir, em sua preciosa descrição, já vale o filme. Um pouco de suor na testa de Candy…
    Brilhante, seu texto.

  6. O pior filme do Samuel Fuller que vi até agora, foi o quinto filme que vi deste cineasta. O filme é muito “forçado” em muitos aspetos. A atuação de Richard Widmark neste tipo de papel em filme “noir” não me convenceu nada. Jean Peters e Thelma Ritter estão bem melhores que Widmark. O filme é também muito politicamente correto, com os comunistas, como convinha na época, a serem os maus da fita. Apesar de tudo o filme tem algumas cenas muito bem feitas, como é o caso da cena de abertura com o roubo da carteira de Jean Peters por parte de Richard Widmark, é uma cena muito bem filmada. Nota: 5/10

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