O Beijo Amargo / The Naked Kiss

Nota: ½☆☆☆

(Disponível no YouTube em 7/2023.)

The Naked Kiss, no Brasil O Beijo Amargo, de 1964, foi “escrito, produzido e dirigido por Samuel Fuller”, como está escrito nos créditos iniciais. Realizador lendário, mítico, para usar os adjetivos que escolhi para a abertura de meu comentário sobre seu ótimo Anjo do Mal/Pickup on South Street, Samuel Fuller é adorado, endeusado pelos críticos e por ele mesmo.

“Nos seus filmes, Samuel Fuller sabe do que está falando”, diz o mestre Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores – e explica que ele foi jornalista e escreveu roteiros sobre jornalistas, que conheceu o mundo do crime sobre o qual fez filmes, que lutou na Primeira Divisão de Infantaria na Segunda Guerra Mundial, o que dá a ele boas condições de fazer seus filmes de guerra. E Tulard termina seu verbete sobre o diretor assim:

“Como também é romancista, sabe narrar. Seus filmes não se perdem em digressões, vão direto ao assunto. A moral de Fuller? ‘Para mim’, diz ele, ‘os filmes em todos os países do mundo são obras feitas para ganhar dinheiro. Acredito que 5% talvez sejam feitos porque um homem tinha uma idéia e porque essa idéia precisava ser dita. Nunca fiz um filme porque as circunstâncias me obrigavam a fazê- lo. Fiz porque queria fazer. Tinha uma história e queria contá-la.’”

Pois bem. O Beijo Amargo/The Naked Kiss, na minha opinião, desmente que Samuel Fuller (1912-1997) sabe narrar, que seus filmes não se perdem em digressões – e a história que ele conta é uma bobagem, um amontado de papo-furado. Um abacaxi dos mais azedos. Um horror.

Uma papagaiada danada, uma história idiota

É assim:

Kelly (o papel de Constance Towers), uma prostituta culta, que conhece Byron, Baudelaire, Goethe e gosta de ouvir Beethoven, rebela-se contra seu cafetão e o espanca usando a bolsa como arma; retira da carteira polpuda dele US$ 800,00, roubados dela e de suas companheiras, mas fica com apenas os US$ 75,00 a que tem direito.

Livre do homem que a explorava, e que havia cortado seus cabelos com máquina zero, passa dois anos andando de cidade em cidade, até chegar a uma pequena localidade chamada Grantville, onde de imediato conhece o cara que parece ser o chefe da polícia do lugar, um tal Griff (o papel de Anthony Eisley, na foto abaixo). Passa com ele uma noite; tendo comido a moça e achado muito bom, ele explica a Kelly que seu dever é manter Grantville sem vícios, e por isso ela deveria atravessar o rio que faz a fronteira estadual e estabelecer-se do outro lado, na casa de Irene, perdão, de Candy (Virginia Grey).

Aí acontece que Kelly se olha no espelho, e não gosta do que vê. Como mais tarde ela dirá para Griff: – “Eu ví um pedaço quebrado de uma máquina. Nada além da grana, da cama e da garrafa para o resto da minha vida. Foi isso que eu vi.”

E aí, Shazam, ela decide mudar de vida. Em Grantville há um hospital especializado em ortopedia para crianças com deficiência física, e Kelly se apresente para a enfermeira-chefe Mac (Patsy Kelly). Corta, e Kelly é a enfermeira perfeita, que toda enfermeira-chefe pediu a Deus. Trata as crianças com jeito, talento, ternura.

Como diz a bondosa Mac para o policial Griff: – “Ela surgiu das nuvens uma noite, sem uma única referência. Eu a contratei na hora. (…)

Algumas pessoas nascem para escrever livros, sinfonias, pintar quadrados, construir pontes. Mas Kelly… Ela nasceu para cuidar de crianças com muletas e bebês com aparelhos ortopédicos!”

Há até mesmo uma sequência em que Kelly rege o coral formado pelas criancinhas do hospital em uma melodia agradável e letra que parece saída de um manual de auto-ajuda para crianças pequenas: “Querida mamãe, diga-me, por favor, se a Terra é redonda. Diga-me onde encontramos o pássaro azul da felicidade. (…) Meus anjinhos, meus anjinhos, sim, a Terra é redonda, e o pássaro azul que vocês procuram certamente foi encontrado. E o céu acima de nós é de um azul tão puro. E então todos vocês vão ver o pássaro azul…”

Griff não se conforma com aquilo. Como pode, uma puta trabalhando no hospital da cidade que ele deve manter longe dos vícios? E ameaça contar para o diretor do hospital a profissão da moça. Ela suplica a ele que não faça isso, que dê a ela uma chance.

Ainda vai ter muito mais papagaiada nessa história idiota.

É daquele tipo de filme que não acaba nunca

Grantville (uma cidade fictícia, é claro) tem esse nome porque foi fundada, um século e tanto antes, por um milionário chamado Grant. O tetraneto dele, o Grant atual (Michael Dante, na foto abaixo) é tido como um grande benfeitor, um grande filantropo. A enfermeira-chefe Mac conta para Kelly: – “Ele é um trabalhador. (…) Seu nome é sinônimo de caridade. Tem o maior coração que há no mundo. Ele construiu nosso hospital, ele construiu o centro médico ortopédico, tudo custeado por ele mesmo – e ele é aberto a todas as crianças com problemas, sem barreiras raciais ou religiosas.”

Ah, sim, aqui é preciso admitir que Samuel Fuller demonstra neste filme que era politicamente correto bem antes do surgimento do politicamente correto: entre as crianças que Kelly trata com carinho e devoção, e que cantam para nós no coral, há, cuidadosamente escolhidos, um negro e um amarelo.

O Grant tetraneto do fundador de tão bela cidade livre de vícios estava viajando pela Europa. Quando ele aparece, e bate os olhos em Kelly, e Kelly bate os olhos nele, tcham-tcham-tcham! Os anjos cantam o Hino ao Amor. Coup de foudre, tremor de terra, amor à primeira vista.

Mas ainda falta mais de meia hora de filme. (Filme ruim demora a passar. Parei para olhar quanto tempo ainda faltava pelo menos umas cinco vezes.)

Tem ainda que acontecer problema.

Fácil: Griff, o tira que come as putas mas não quer saber de putas na sua cidade ameaça contar para Grant o passado da moça.

A moça se antecipa e conta seu passado para o Príncipe Encantado, perdão, para o milionário Grant.

Ele imediatamente a rejeita?

Nâni, nâni… Qual o quê! Nada disso! Ele a pede em casamento.

E ela, claro, aceita, feliz da vida?

Nâni, nâni… Qual o quê! Nada disso! Ela diz que vai pensar – e, no quarto que aluga na casa da simpática Miss Josephine (Betty Bronson), enche a cara.

Mas depois a Gata Borralheira – ufa! – diz “sim” ao Príncipe Encantado.

Olhei o tempo. Ainda faltava um tantão para a porcaria acabar. O que mais vai acontecer, meu Deus do céu?, eu me perguntava.

De repente, uma imensa, fortíssima reviravolta

Não costumo relatar os eventos da história que acontecem depois dos primeiros 15, 20 minutos de um filme. Tenho sido cada vez mais cuidadoso para não apresentar spoilers nestes meus comentários – e, quando apresento, tomo o cuidado de avisar o eventual leitor.

No caso deste The Naked Kiss, fugi das minhas normas, relatei fatos que acontecem depois da metade da narrativa – e ainda vou relatar um pouco mais –, porque entendi que é fundamental deixar claro como nem sempre o tão cultuado, incensado Samuel Fuller conta boas histórias.

Porque, diacho, eta história implausível, ridícula, esta que ele nos conta neste seu filme de 1964!

The Naked Kiss tem 93 minutos. Pouco mais de uma hora e meia – mas que longos, infindáveis, excruciantes 93 minutos!

Quando estamos com dois terços do filme, exatos 63 minutos, Kelly está saindo da casa de Miss Josephine – que, além de alugar quartos, ganha a vida como costureira – levando para mostrar para Grant o vestido de noiva que a simpática senhorinha preparou para ela.

E aí acontece uma grande reviravolta. Inesperada, imensa, fortíssima. A história, que vinha cambaleando entre climas românticos, de drama social, de musical cor-de-rosa, cai num terreno denso, pesado, amargo.

Mary comentou: – “Ué, de repente o filme melhorou!”

A sensação de que ele melhorou dura pouco, e a história volta a ter situações absolutamente patéticas, até a sequência final que me pareceu um arremedo muitíssimo mal feito do desfecho de Matar ou Morrer/High Noon, aquela obra-prima de Fred Zinnemann de dez anos antes.

“Uma mélange que só podia ter sido inventada por Fuller”

Mas é uma obra de Samuel Fuller, e de obra de Samuel Fuller não se fala mal. Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo naquele tempo pré-histórico em que se vendiam guias de filme, deu 3 estrelas em 4 para esta porcaria, e tomou como qualidade a junção desconexa de gêneros:

“Melodrama provocativo abre com um bang e nunca baixa o tom, enquanto a prostituta Towers chega a uma pequena cidade esperando começar uma nova vida, e quase consegue. Por turnos lúgubre, sentimental, romântico e surpreendente; uma mélange que só poderia ter sido inventada pelo autor-diretor Fuller.”

Bem. Opinião é opinião, não se discute, mas há um erro factual aí: Kelly não chega à cidade esperando começar uma nova vida. Fica muito claro que ela chega para continuar a mesma vida, mas aí acontece de ela se olhar no espelho, e ver – como já foi dito – “um pedaço quebrado de uma máquina, nada além da grana, da cama e da garrafa para o resto da vida”. E é aí que ela grita Shazam e vira a melhor enfermeira do mundo.

A sinopse do Guide des Films de Jean Tulard também tropeça num errinho factual. Eis o verbete sobre Police Spéciale, o título incompreensível que o filme ganhou na França:

“Uma prostituta, Kelly, tentar ficar respeitável, com a ajuda de um certo Griff…”

Erro. Griff não a ajuda, absolutamente. Griff manda ela continuar sendo puta do outro lado do rio, no outro Estado, no cabaré-prostíbulo de Candy. E, depois que ela já está trabalhando como enfermeira, ameaça revelar sua profissão anterior. Nada de ajudar a moça. Ele quer é ferrar a vida dela. Bem mais tarde, já no fim da narrativa, de repente ele fica bonzinho, é verdade… mas só depois dos 40 minutos do segundo tempo.

Vamos em frente:

“Uma prostituta, Kelly, tentar ficar respeitável, com a ajuda de um certo Griff., cuidando de crianças deficientes. Ela é seduzida por um intelectual, Grant, que propõe casamento. Ela aceita, e descobre…”

Aqui a sinopse do Guide revela o que Kelly descobre e o que acontece nos 30 minutos finais do filme. Pulo esse spoiler, e vou para o segundo parágrafo do verbete, a avaliação da obra:

“Uma descida ao inferno, um pesadelo em preto-e-branco, em que o amor romântico se desmancha no chão.”

O guia da Time Out realça a abertura do filme, e nisso ele está certíssimo. A primeira sequência do filme é forte, dura, impressionante.

“Não é o melhor de Fuller, apesar da sequência de abertura eletrizante, em que uma loura escultural (Towers) avança sobre seu cafetão, batendo nele com sua bolsa enquanto ele cambaleia bêbado até que a peruca dela cai, revelando que ela está completamente careca. Mais tarde, buscando novos horizontes em uma pequena cidade americana em que o vício é mantido cuidadosamente atrás de portas fechadas, ela se transforma em um anjo cuidador das crianças de um hospital ortopédico. Demora um pouco para se engolir, mas o domínio de Fuller sobre personagem e meio social é tão firme que o filme gradualmente se impõe como uma amostra contundente da hipocrisia, inesquecível pela selvageria afiada de cenas como aquela em que Towers calmamente marcha pelo bordel local e enche a boca de madame com notas de dólares como uma retribuição por ela tentar corromper uma inocente.”

Além de tudo, Samuel Fuller mente

É. A crítica adora, endeusa Samuel Fuller.

Gostaria de registrar alguns indícios que mostram que Samuel Fuller se endeusa.

Pouco depois que Kelly chega a Grantville, ela se senta em um banco de parque lendo um livro. O livro é The Dark Page, uma novela escrita por Samuel Fuller.

Naquelas sequências ainda no início, quando Kelly está chegando a Granville, a câmara mostra um cinema que está passando Shock Corridor, no Brasil Paixões que Alucinam, o filme de Samuel Fuller do ano anterior, 1963.

O manequim Charlie, de Miss Josephine, que fica no quarto ocupado por Kelly, tem a insígnia da Primeira Divisão de Infantaria, que ficou conhecida como The Big Red One. Foi nessa divisão que Samuel Fuller combateu na Segunda Guerra Mundial.

Acho que esses três exemplos justificam minha afirmação de que Samuel Fuller adora Samuel Fuller.

Ah, tem um detalhinho interessante. Em sua autobiografia, o realizador endeusado pelos críticos e por ele mesmo afirmou que, para aquela primeira sequência, a atriz Constance Towers raspou a cabeça.

É mentira, pura e simples. A própria atriz negou em entrevistas que tenha raspado a cabeça, e em algumas tomadas fica bem visível – como afirma o IMDb – que ela usa uma capa sobre seus cabelos, preparada pela equipe de maquiagem, para fingir que está careca.

Tsc, tsc… O cara que se endeusa… mente.

Anotação em julho de 2023

O Beijo Amargo/The Naked Kiss

De Samuel Fuller, EUA, 1964

Com Constance Towers (Kelly),

Anthony Eisley (Griff, o policial)

e Michael Dante (Grant, o milionário), Virginia Grey (Candy, a dona do cabaré-prostíbulo), Patsy Kelly (Mac, a enfermeira-chefe), Betty Bronson (Miss Josephine), Marie Devereux (Buff, enfermeira), Karen Conrad (Dusty), Linda Francis (Rembrandt), Barbara Perry (Edna), Walter Mathews (Mike), Betty Robinson (Bunny), Gerald Michenaud (Kip), Christopher Barry (Peanuts), George Spell (Tim), Patty Robinson (Angel Face), Neyle Morrow (Sam), Monte Mansfield (Farlunde, o cafetão), Fletcher Fist (Barney), Gerald Milton (Zookie), Breena Howard (Redhead), Sally Mills (Marshmallow), Edy Williams (Hatrack), Michael Barrere (jovem delinquente), Patricia Gayle (enfermeira), Sheila Mintz (receptionista), Bill Sampson (Jerry)

Argumento e roteiro Samuel Fuller

Fotografia Stanley Cortez

Música Paul Dunlap

Montagem Jerome Thoms

Direção de arte Eugène Lourié

Figurinos Einar Bourman, Hazel Allensworth

Produção Samuel Fuller, Allied Artists,

P&B, 93 min (1h33)

1/2

Título na França: “Police Spéciale” ou “L’Incorruptible”. Em Portugal: “Uma Luz no Submundo”.

 

2 Comentários para “O Beijo Amargo / The Naked Kiss”

  1. “Mas é uma obra de Samuel Fuller, e de obra de Samuel Fuller não se fala mal.”

    A crítica adora, endeusa Samuel Fuller. E EU ACHO É POUCO!

    PS: Não é só a crítica que adora e endeusa Samuel Fuller. Aqui em casa, ele faz parte do meu politeísmo. Um dia, meu filme favorito dele estará aqui, no melhor site de cinema de todos os tempos, com 4 estrelas.

  2. Senhorita, a senhorita é uma das figuras mais fantásticas de que eu já ouvi falar!
    Um abraço, e boa semana.
    Sérgio

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